Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro I/II
II.
AS PERFEIÇÕES DO DESASTRE.
As Douvres eram differentes de fórma como de altura.
Na pequena Douvre, recurvada e aguda, via-se ramificar-se, da base ao cimo, longas veias de uma rocha côr de tijolo, relativamente tenra, que fechava com as suas laminas o interior do granito. Nessas laminas avermelhadas havia, de espaço a espaço, fendas próprias para subir. Uma dessas fendas, um pouco acima do navio, foi tão bem trabalhada pelos arremeços do mar, que tornou-se uma especie de nicho, onde podia guardar-se uma estatua. O granito da pequena Douvre era arredondado na superficie e macio como pedra de toque, o que não lhe tirava a dureza que tinha. A pequena Douvre terminava om ponta como um chifre. A grande Douvre, polida, unida, lisa, perpendicular, e feita como por desenho, era de um só jacto e parecia feita de marfim preto. Nem um buraquinho, nem um relevo. Trepar por ella era impossivel: não podia servir nem á fuga de um criminoso, nem ao ninho de um passaro. No cume havia como no rochedo Homem, uma plata-fórma; era porém inaccessivel.
Podia-se trepar pela pequena Douvre, mas não ficar lá, podia-se ficar na grande Douvre, mas não se podia subir.
Gilliatt, depois de lançar os olhos por tudo aquillo voltou á pança, descarregou-a na mais larga das cornijas á flôr d’agua, fez de todo o carregamento, aliás pequeno, uma especie de pacote, atou-o n’um panno alcatroado, depois içou-o por meio de um cabo até um ponto da rocha onde o mar não podia chegar; feito isto, abraçou-se á pequena Douvre, e com pés e mãos, de fenda em fenda, trepou por ella até a Durande que estava no ar.
Chegando a altura das caixas das rodas saltou dentro.
O interior do navio era lugubre.
A Durande apresentava todos os vestigios de um arrombamento medonho. Era a violação tremenda da tempestade. A tempestade comporta-se como um pirata. Nada assemelha-se mais a um attentado que um naufragio. Nuvens, trovão, chuva, vagas, tufões, rochedos, horrivel multidão de cumplices é esta.
No meio daquelles destroços, pensava-se em alguma cousa semelhante ao tripudio furioso dos espiritos do mar. Tudo eram vestigios de raiva. As torções estranhas de certos ferros, indicavam a acção impectuosa dos ventos. O convéz assemelhava-se á célula de um louco; tudo estava despedaçado.
Nenhum animal estrangula uma pedra como o mar. A agua regorgita das garras. O vento morde, o mar devora, a vaga é um queixo. É um sacar e um esmigalhar ao mesmo tempo. O oceano tem um golpe igual á pata do leão.
O descalabro da Durande apresentava esta particularidade: era minucioso. Era uma especie de terrivel descascamento. Muitas cousas pareciam feitas de proposito. Que maldade! podia dizer-se. As fracturas das amuradas eram feitas com arte. Este genero de destruição é proprio do cyclone. Retalhar e adelgaçar tal é o capricho desse desvastador enorme. O cyclone usa das averiguações do carrasco. Os seus desastres parecem supplicios. Dissera-se que algum rancor o anima; é requintado como um selvagem. Disseca examinando. Tortura o naufragio, vinga-se, diverte-se; é mesquinhamente cruel.
Raros são os cyclones em nossos climas, e tanto mais terriveis quanto que são inesperados. Um rochedo encontrado póde fazer andar á roda a tempestade. É provavel que a borrasca tivesse feito espiral sobre as Douvres, voltando-se subitamente em tromba ao choque do escolho, o que esplicava o salto do navio a tamanha altura naquellas rochas. Quando o cyclone sopra, um navio peza tanto como a pedra de uma funda.
A Durande tinha a chaga que fica ao homem cortado pelo meio; era um tronco aberto deixando ver um molho de destroços semelhante a entranhas. O cordoame fluctuava e estremecia; as correntes balançavam e tiritavam; as fibras e os nervos do navio estavam nús e pendiam no ar. O que não estava quebrado estava desarticulado; a pregadura do casco assemelhava-se a uma almofada eriçada de pregos; em tudo havia a fórma de ruina; uma barra de pé de cabra não era menos que um simples pedaço de ferro; uma sonda era apenas um pedaço de chumbo; uma drissa era apenas uma ponta de canhamo; uma tralha era apenas um fio de debrum; por toda a parte a inutilidade lamentavel da destruição; nada havia que não estivesse despregado, desenganchado, rachado, roido, recurvado, aniquilado; nenhuma adhesão naquelle feio montão de destroços; em tudo o deslocamento e a ruptura, esse aspecto de inconsistente e liquido que caracteriza todas as confusões, desde as refregas dos homens que se chamam batalhas, até ás refregas dos elementos que se chamara cahos. Tudo esboroava, tudo cahia, e uma torrente de taboas, de lonas, de ferro, de cabos e de vigas tinha parado na grande fratura da quilha, donde o menor choque podia precipitar tudo ao mar. O que restava daquella poderosa carena tão triumphante outr’ora, toda aquella parte suspensa entre as duas Douvres e talvez prestes a cahir, tudo estava roto e dilacerado, deixando ver pelos buracos o interior sombrio do navio.
Debaixo cuspia a espuma sobre aquella cousa miseravel.