III.


SÃ, MAS NÃO SALVA.


Gilliatt não esperava achar sómente metade do navio. Nas indicações, aliás tão precisas, do capitão do Shealtiel, nada fazia presentir aquella divisão do casco pelo meio. Foi talvez na occasião em que o navio partio-se, debaixo da immensa espessura da espuma, que houve aquelle estallo diabolico ouvido pelo capitão do Shealtiel. O capitão affastava-se sem duvida no momento do ultimo sopro do vento, e não vio que era uma tromba que impellia o navio. Mais tarde, approximando-se para observar o desastre, vio apenas a parte anterior do casco, ficando-lhe escondido pelo rochedo o lado fracturado donde se rompera metade do navio.

Excepto isto, o patrão do Shealtiel disse tudo exacto. O casco estava perdido, a machina estava intacta.

São frequentes estes acasos nos naufragios como nos incendios. Não se pode comprehender a logica do desastre.

Os mastros quebrados tinham cahido; o cano nem mesmo envergou; a grande placa de ferro que amparava o mecanismo manteve-o intacto e completo. O revestimento de taboas das rodas estava destruido como as laminas de uma persiana; mas atravez das fendas viam-se as rodas em bom estado. Apenas faltavam alguns raios.

Além da machina, tinha resistido o grande cabrestante da popa. Tinha ainda a corrente, e graças ao seu robusto encaixe em um quadro de tabuões, ainda podia prestar serviços, uma vez que se não rompesse a prancha. O pedaço do casco mettido entre as Douvres estava firme, já o dissemos, e parecia solido.

A conservação da machina tinha um que de irrisorio e acrescentava a ironia á catastrophe. A sombria malicia do desconhecido mostra-se ás vezes nessas especies de zombarias amargas. A machina estava salva, o que não impedia que estivesse perdida.

O oceano guardava-a para demolil-a aos poucos. Divertimento de gato.

A machina ia agonisar e desfazer-se peça por peça. Ia diminuir dia a dia, e por assim dizer, derreter-se. Ia servir de brinco ás selvajarias de espuma. Que fazer? Que aquelle pesado montão de mecanismos e encaixes, massiço e delicado a um tempo, condemnado á immobilidade por seu peso, entregue na solidão ás forças demolidoras, posto pelo cachopo a discrição do vento e do mar, podesse, sob a pressão daquelle lugar, implacavel, escapar á destruição lenta, era até loucura imaginal-o.

A Durande estava prisioneira das Douvres.

Como tiral-a dali?

Como libertal-a?

A evasão de um homem é difficil; mas que problema não é este: a evasão de uma machina!