VI.


CAVALLARIÇA PARA O CAVALLO.


Gilliatt era sabedor de cachopos e não tomava as Douvres ao serio. Antes de tudo, já o dissemos, tratou elle de pôr a pança em segurança.

A dupla fileira de arrecifes que se prolongava sinuosamente por traz das Douvres, fazia grupo com os outros rochedos, e advinhava-se cavas e saccos sahindo da viela, e prendendo-se á garganta principal como ramos a um tronco.

A parte inferior dos escolhos estava tapetado de sargaço e a parte superior de lichen. O nivel uniforme do sargaço em todas as rochas marcava a linha da flutuação da maré cheia. As pontas que a agua não attingia tinha o prateado e o dourado que dá aos granitos marinhos o lichen branco e o lichen amarello.

Cobria a rocha em certos pontos uma lepra de conchas corroidas.

Em outros pontos, nos angulos reentrantes, onde se accumulára uma arêa fina, ondeada na superficie antes pelo vento que pela vaga, havia tufas de cardo azul.

Nos redentes pouco batidos pela espuma, reconhecia-se as pequenas covas furadas pelos ursos do mar. Este urso-concha, que anda, bola viva, rolando-se nas pontas, e cuja couraça compõe-se de mais de dez mil peças artisticamente ajustadas e soldadas, o urso marinho, cuja boca se chama, ninguem sabe porque, lanterna de Aristoteles, cava o granito com os cinco dentes que tem e aloja-se nos buracos. Nessas alveolas é que os pescadores de fructas do mar dão com elle. Cortam-n’o em quatro partes e comem-n’o crú como ostra. Alguns metem o pão naquella carne mólle. Dahi o nome de ovo do mar.

As cumiadas dos bancos descobertas pela maré que vasava iam ter mesmo debaixo do rochedo Homem a uma especie de angra murada quasi por todos os lados. Havia alli evidentemente um ancouradouro possivel. Gilliatt observou a angra a forma de uma ferradura, e abria-se de um ao vento Este, que é o menos máo daquellas paragens. O vento alli estava preso e quasi adormecido. Era segura aquella bahiazinha. Nem Gilliatt tinha muito onde escolher.

Se Gilliatt quizesse aproveitar a maré vasante devia apressar-se.

O tempo continuava a ser magnifico. Estava de humor aquelle insolente mar.

Gilliatt tornou a descer, calçou os sapatos, desatou a amarra, entrou na barea, e navegou para fóra. Costeava com o remo a parte externa do cachopo.

Chegando perto do Homem examinou a entrada da angra.

Um certo ondeado na mobilidade da agua, ruga imperceptivel a qualquer que não fosse marinheiro, desenhava aquelle passo.

Gilliatt estudou alguns instantes a curva, lineamento quasi indistincto na vaga, depois tomou ao largo, afim de virar a gosto, e entrar bem, e vivamente, de um só movimento de remo, entrou na angra.

Sondou.

Era excellente o ancouradouro.

A pança estaria protegida alli quasi contra todas as eventualidades da estação.

Os mais temiveis arrecifes teem desses recantos tranquillos. Os portos que se acham nos escolhos assemelhara-se á hospitalidade do beduino; são honestos e seguros.

Gilliatt arranjou a pança o mais perto do Homem que lhe foi possivel, em ponto que não podesse perder-se, e poz ao mar as duas ancoras.

Feito isto, cruzou os braços e reflectio.

A pança estava abrigada; era um problema resolvido; mas apresentava-se o segundo. Onde abrigar-se Gilliatt?

Offereciam-se dous pontos; o primeiro era a propria pança, com o seu camarote mais ou menos habitavel; o segundo era o cimo do rochedo Homem, facil de escalar.

De qualquer destes dous angulos podia-se ir a pé nas vasantes, saltando-se de rocha em rocha, até ás Douvres, onde estava a Durande.

Mas a vasante dura apenas um momento, e no resto do tempo ficava elle separado, ou do asylo, ou da Durande, por umas duzentas braças. Nadar no mar de um escolho é difficil; com qualquer agiatação é impossivel.

Era preciso desistir da pança e do Homem.

Nenhuma estação possivel nos rochedos visinhos.

Os cimos inferiores dasapparecem duas vezes por dia debaixo da enchente da maré.

Os cimos superiores eram constantemente cuspidos pelos saltos da espuma. Inhospita lavagem.

Restava o casco da Durande.

Podia-se viver alli?

Gilliatt teve essa esperança.