V.


UMA PALAVRA A RESPEITO DAS COLLABORAÇÕES SECRETAS DOS ELEMENTOS.


A fórma de um escolho não é cousa indifferente para os que, nos riscos das viagens, podem ser condemnados á habitação temporaria de um escolho no oceano.

Ha o escolho pyramide, um cimo fóra da agua; ha o escolho circulo, cousa semelhante a uma roda de pedras grandes; ha o escolho corredor. O escolho corredor é o peior de todos. Não somente por causa da angustia das ondas entre as rochas e do tumulto das aguas apertadas, mas tambem por causa das propriedades meteorologicas que parecem desprender-se do paralellismo das duas rochas em pleno mar. As duas paredes rectas são um verdadeiro aparelho de Volta.

Orienta-se o escolho corredor, e isso é importante. Resulta dahi uma primeira acção sobre o ar e a agua. O escolho corredor actua na agua e no vento mecanicamente, pela forma, galvanicamente, pela attração diversa dos seus planos verticaes, massas sobrepostas e contrariadas umas pelas outras.

Esta especie de escolhos atrahe todas as forças furiosas esparsas no furação, e tem sobre a borrasca uma singular força de concentração.

Donde resulta que nas paragens desses cachopos, ha uma certa accentuação da tempestade.

Cumpre saber que o vento é composito. Acredita-se que o vento é simples; engano. Essa força não é sómente dynamica, é chimica; não é sómente chimica, é magnetica. Tem alguma cousa que é inexplicavel.

O vento é tão eletrico como aereo. Certos ventos coincidem com auroras boreaes. O vento do banco das Arguilles, rola vagas de cem pés de altura, espanto de Dumont d’Urville. A corveta, disse elle, não sabia a quem havia de attender.

Debaixo das lufadas austraes, verdadeiros tumores doentios sopram no oceano, e o mar torna-se tão horrivel que os selvagens fogem para não vêl-o.

As lufadas boreaes são outras; misturam-se de pontas de gelo, e esses furações irrespiraveis impellem para a neve os trenós dos esquimós. Outros ventos queimam. É o simoun da Africa, é o typhon da China e o samiel da India. Simoun, Typhon, Samiel; parece que são demonios estes nomes. Fundem o cimo das montanhas; uma tempestade vitrificou o vulcão de Tulucea. Este vento quente, turbilhão côr de tinta atirando-se sobre as nuvens encarnadas fez dizer aos Vedas: Eis ahi o Deos negro que vem roubar as vaccas encarnadas. Sente-se em tudo isto a pressão do mysterio eletrico.

O vento é cheio desse mysterio. Do mesmo modo o mar. Tambem elle é complicado; debaixo das suas vagas de aguas, que se veem, ha outras vagas de forças, que se não veem. Compõe-se de tudo. De todas as misturas, a do oceano é a mais invisivel e a mais profunda.

Tentai conhecer esse cahos, tão enorme que vai ter ao nada. É o recepiente universal, reservatorio para as fecundações, cadinho para as transformações. Amassa, depois dispersa; accumula, depois semêa; devora, depois produz. Recebe todos os esgotos da terra, e aferrolha-os. É solido no banco, liquido na agua, fluido no eflluvio. Como materia é massa, e como força é abstracção. Iguala e consorcia os phenomenos. Simplifica-se no infinito pela combinação. É a força da mescla e da turvação que chega á transparencia. A diversidade soluvel prende-se na sua unidade. Tem tantos elementos diversos que é identico. Uma das suas gottas é todo elle. Como é cheio de tempestades, torna-se equilibrio. Platão via dansar espheras; cousa estranha, mas real na collossal evolução terrestre á roda do sol, o oceano, com o seu fluxo e refluxo, é o pendulo do globo.

No phenomeno do mar, todos os phenomenos estão presentes. O mar é aspirado pelo turbilhão como um siphon; uma tempestade é um corpo de bomba; o raio vem da agua como do ar; nos navios sentem-se abalos surdos, depois um cheiro de enxofre sahe do poço das correntes. O oceano ferve. O diabo poz o mar na sua caldeira, dizia Ruyter.

Em certas tempestades que caractensam os movimentos das estações e as entradas em equilibrio das forças genesiacas, os navios battidos de escuma parecem evaporar uma luz, e flammas de phosphoro corrêm pelo cordoame, tão misturadas aos cabos que os marinheiros estendem a mão e procuram apanhar esses passaros de fogo. Depois do terremoto de Lisboa, um halito de fornulha impellio para a cidade uma vaga de sessenta pés de altura. A oscillação liga-se ao estremecimento terrestre.

Essas energias incommensuraveis tornam possiveis todos os cataclysmas.

No fim de 1864, a cem leguas das costas de Malabar, sossobrou uma ilha, como se fôsse um navio. Os pescadores que tinhão sahido de manhã voltaram á noite e não acharam nada; apenas puderam ver as suas aldêas de baixo de agua; e desta vez foram os barcos que assistiram ao naufragio das casas.

Na Europa onde parece que a naturesa sente-se constrangida em respeito à civilisação, taes acontecimentos são raros até á impossibilidade presumivel.

Todavia, Jersey e Guernesey fizeram parte da Gallia; e, no momento em que escrevemos, um vento equinocio acaba de demolir na fronteira da Inglaterra e de Escossia o penedio da praia chamado Primeiro dos Quatro, First of the Fourth.

Em parte alguma essas forças panicas apparecem mais formidavelmente amalgamadas do que no sorprehendente estreito boreal chamado Lyse-Fiord. O Lyse-Fiord é o mais temivel dos escolhos-boreaes do oceano. Ahi a demonstração é completa. É o mar da Noruega, a visinhança do tremendo golpho Stavanger, o quinquagesimo nono gráo de latittude. A agua é pesada e negra com uma febre de tempestatade intermittente.

Nessa agua, no meio da solidão, ha uma grande rua sombria. Não é rua para pessoa alguma. Ninguem passa alli; nenhum navio se arrisca nesse lugar. Um corredor de dez leguas de comprido, entre duas muralhas de tres mil pés de altura: eis a entrada. Esse estreito tem cotovellos e angulos como todas as ruas do mar, que nunca são rectas pois que são feitas pela torção da vaga.

No Lyse-Fiord, a vaga é quasi sempre tranquilla; o céo é sereno; lugar terrivel. Onde está o vento? Não está em cima. Onde está o trovão? Não está no céo. O vento está debaixo do mar; o trovão está debaixo da rocha.

De tempos a tempos ha um estremecimento debaixo da agua. Em certas horas, sem que haja uma nuvem sequer no ar, no meio da altura do penedio vertical, a mil ou mil e quinhentos pés acima das vagas, mais do lado do sul, que do norte, o rochedo rebôa subitamente, rompe dahi um relampago, que fende o ar, e recolhe-se logo, como esses brinquedos que se alongam e contrahem nas mãos das crianças; tem contracções e ampliações esse relampago, fere a rocha opposta, entra outra vez, torna apparecer, recomeça, multiplica as suas cabeças e as as linguas, erriça-se, fere onde póde, recomeça ainda, até que se apaga sinistramente. Fogem os bandos de passaros. Nada é tão mysterioso como essa artilharia sahindo do invisivel. Um rochedo attaca outro. Fulminam entre si os cachopos. É uma guerra que nada tem com os homens. Odio de dous penedos no golphão.

No Lyse-Fiord o vento torna-se effluvio, a rocha desempenha as funcções de nuvem, e o trovão tem arrojos de volcão. É uma pilha aquelle estranho estreito; tem por elementos as suas duas fllas de rochas.