Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/II
II. DE QUE MODO SHAKESPEARE PODE ENCONTRAR-SE COM ESCHYLO
Gilliatt tinha uma idéa.
Desde aquelle carpinteiro de Salbris que, no VI seculo, na infancia da sciencia, muito antes que Amoutons tivesse achado a primeira fricção, Labire a segunda, e Coulomb a terceira, sem conselho, sem guia, sem mais auxiliar que um menino, filho delle, com uma ferramenta informe, resolveu em massa, arreando o grande relogio da igreja de Charité-Sur-Loire, cinco ou seis problemas de statica e de dynamica, todos juntos, como as rodas de carros embaraçados; desde esse trabalhador extravagante que achou meio de, sem quebrar um fio de latão e sem desfazer um encaixe, arrear de uma só vez, por uma simplificação prodigiosa, do segundo andar da torre ao primeiro, aquella massiça gaiola de horas, toda de ferro e cobre, grande como uma guarita, com o seu movimento, cylindros, tambores, ganchos, mostrador, pendula horisontal, ancoras de escapamento, meada de corda, pesos de pedra dos quaes um pesava quinhentas libras, tympano, carrilhão; desde esse homem que fez esse milagre, e cujo nome já se não sabe, jámais houve nada igual á empreza que Gilliatt commettia.
A operação de Gilliatt era talvez peior, isto é, mais bella ainda que a outra.
O peso, a delicadeza, o conjuncto das difficuldades, não eram menores na machina da Durande que no relogio de Charité-Sur-Loire.
O carpinteiro gothico tinha um auxiliar, o filho; Gilliatt era só.
Havia uma população, vinda de Menug-Sur-Loire, de Nevers, e mesmo de Orleans, a qual podia, em caso de necessidade, ajudar o carpinteiro de Salbris, e animal-o com os seus rumores benevolos; Gilliatt só tinha á roda de si o rumor do vento e a multidão das ondas.
Nada se compara á timidez da ignorancia, a não ser a sua temeridade. Quando a ignorancia começa a ousar é que tem uma bussola comsigo. Essa bussola é a intuição da verdade, mais clara ás vezes num espirito simples que n’um espirito complicado.
Ignorar convida a tentar. A ignorancia é um devaneio, e o devaneio curioso é uma força. Saber, desconcerta ás vezes, e desaconselha muitas. Se Vasco da Gama soubesse recuára ante o Cabo das Tormentas. Se Christovão Colombo fosse bom cosmographo não teria descoberto a America.
O segundo que subio ao Monte Branco foi um sabio, Saussure; o primeiro foi um pastor, Balmat.
Taes casos, digamol-o de passagem, são a excepção, e tudo isto não tira nada á sciencia, que fica sendo a regra. O ignorante póde achar, só o sabio inventa.
A pança continuava a estar ancorada na angra do Homem, onde o mar a deixava tranquilla. Gilliatt, como se sabe, arranjou tudo de modo a ficar em livre pratica com a barca. Foi alli e mediu-a em diversos pontos. Depois voltou á Durande e mediu o grande diametro da machina. O grande diametro, sem as rodas, bem entendido, era mais curto dous pés que o espaço da pança. Portanto, a machina podia entrar na barca.
Mas como metel-a ahi?