Os Trabalhadores do Mar/Parte II/Livro II/III
III.
A OBRA PRIMA DE GILLIATT AJUDA A OBRA PRIMA DE LETHIERRY.
Alguns dias depois, o pescador que fosse assaz tonto para ir perlustrar aquellas paragens, em semelhante estação, teria pago a sua ousadia com a visão de uma cousa singular entre as Douvres.
Veria isto o pescador: quatro roubustas pranchas com espaços iguaes entre si, indo de uma Douvre á outra, e como que forçadas entre os rochedos, o que é a melhor solidez deste mundo. Do lado da pequena Douvre as suas extremidades pousavam e fincavam-se nas fendas da rocha; do lado da grande Douvre, essas extremidades deviam ter sido violentamente espetadas na columna com um martello por um robusto trabalhador trepado na propria prancha. Essas pranchas eram um pouco mais longas que o intervallo das Douvres; dahi, a segurança e o plano inclinado em que estavam, formando uma ladeira. Tocavam a grande Douvre em angulo agudo e a pequena em angulo obtuso. Era suave o declive, mas desigual, o que se tornava defeito. A essas quatro pranchas prendiam-se quatro polés guarnecidas todas de corda e boça, e tendo esta singularidade e ousadia, que a polé de rodas estava em uma extremidade da prancha e a polé simples na extremidade opposta. Este desvio de arte, tamanho que era perigoso, era provavelmente exigido pela necessidade da operação. As polés compostas eram fortes e as siraplices eram solidas. A essas prendiam-se cabos que de longe pareciam fios, e por baixo desse aparelho aereo de guindastes e taboas, o massiço casco da Durande parecia suspenso a esses fios.
Ainda não estava suspensa. Perpendicularmente por baixo das pranchas, oito aberturas foram praticadas no casco, quatro a bombordo e quatro a estibordo da machina, e mais oito debaixo dessas, na carena. Os cabos desciam verticalmente, entravam no convez, depois sahiam pela carena, pelas aberturas de estibordo, passavam por baixo da quilha e da machina, entravam outra vez no navio pelas aberturas de bombordo e subindo, atravessando, o convez, voltavam a prender-se nos quatros guindastes das pranchas, onde um guincho prendia-os e fazia um rolo de um cabo unico podendo ser dirigido por um só braço. Um gancho e um carretel por cujo centro passava e dividia-se o cabo unico completavam o apparelho, e em caso de necessidade, continham-no. Esta combinação obrigava as quatro polés a trabalharem juntas, e, verdadeiro freio de forças pendentes, leme de dynamica na mão do piloto da operação, mantinha a manobra em equilibrio. O ajustamento engenhoso do guincho tinha alguma das qualidades simplificadoras do guindaste Werton de hoje, e do antigo polypastono de Vitruvio. Gilliatt descobrio isso, sem conhecer Vitruvio, que já não existe, nem Werton, que não existia ainda. O comprimento dos cabos variava segundo o desigual declive das pranchas, e corrigia um pouco a desigualdade. As cordas eram perigosas, o maçame branco podia quebrar; era melhor empregar correntes, finas as correntes não poderiam passar com facilidade nas polés.
Tudo isso, cheio de defeitos, mas feito por um só homem, era sorprehendente.
De mais, abreviemos a explicação. Comprehender-se-ha que ommittimos muitos pormenores que tornariam a cousa clara para as pessoas do officio, e obscura para as outras.
O cimo do cano da machina passava por entre as duas pranchas do meio.
Gilliatt, sem dar por isso, plagiario inconsciente do desconhecido, refez, a tres seculos de distancia, o mechanismo do carpinteiro de Salbris, mechanismo rudimentario e incorrecto, assustador para quem ousasse manobral-o.
Digamos aqui que os defeitos mais grosseiros não impedem que um mechanismo funccione. O obelisco da praça de S. Pedro de Roma foi levantado contra todas as regras da statica. O coche do czar Pedro era construido de tal modo que parecia tombar a cada passo; entretanto andava. Quantas difformidades na machina de Marly. Tudo alli era mal feito. Nem por isso deixou de dar de beber a Luiz XIV.
Fosse como fosse, Gilliatt tinha confiança. Contava até com o successo ao ponto de fixar na borda da pança, no dia em que lá foi, dous pares de argolas de ferro, diante um do outro, nos dous lados da barca, nos mesmos espaços que as quatro argolas da Durande ás quaes se prendiam as quatro correntes do cano.
Gilliatt tinha evidentemente um plano muito completo e definitivo. Tendo contra si todas as probabilidades, queria pôr todas as precauções do seu lado.
Fazia cousas que pareciam inuteis, signal de uma premeditação attenta.
A sua maneira de proceder desviava um observador, e mesmo um conhecedor.
Uma pessoa que o visse, por exemplo, com exforços inauditos e em risco de quebrar o pescoço, pregar com um martello oito ou dez grandes pregos que elle forjou, no esvasamento das duas Douvres, na entrada da garganta do escolho, comprehenderia difficilmente o motivo desses pregos, e perguntaria provavelmente porque razão fazia todo aquelle trabalho.
Se visse Gilliatt medir o pedaço da amurada da prôa que ficára pendurada, depois prender uma forte corda na borda superior desta peça, cortar com um machado as madeiras deslocadas que a retinham, arrastal-as fora da garganta, com auxilio da maré que descia, e emfim prender laboriosamente com a corda essa pesada massa de taboas e vigas, mais larga que a entrada da garganta, aos prégos mettidos na base da pequena Douvre, o observador comprehenderia menos ainda, e diria que, se Gilliatt quizesse para facilidade da manobra, desempedir o intervallo das Douvres, bastava deixar cahir aquelle pedaço de taboas na maré que o levaria á flor d’agua.
Gilliatt provavelmente tinha lá as suas razões.
Gilliatt, para fixar os prégos na base das Douvres, tirava partido de todas as fendas do granito, alargava-as quando era preciso, e mettia ao principio tocos de páos, nos quaes introduzia depois os prégos. Emboçou a mesma preparação nas duas rochas que se levantavam n’outra extremidade do escolho, do lado de leste; guarneceu de cavilhas de páo todos os buracos, como se as quizesse ter promptas para receber ganchos; mas isso pareceu ser uma simples reserva, porque Gilliatt não metteu prégos nessas fendas. Comprehende-se que, por prudencia na sua penuria, elle não podia gastar materiaes senão á proporção que tivesse necessidade, e no momento em que a necessidade se manifestasse. Era mais uma complicação no meio de tantas difficuldades.
Acabado um primeiro trabalho, surgia um segundo, Gilliatt passava sem hesitar de um a outro e dava resolutamente esse pulo de gigante.