como uma “limpeza social”. Em A Chave do Tamanho, o apequenamento assume essa mesma face eugenista, legitimada pelo discurso científico do século XIX, ainda em voga. Monteiro Lobato, nascido em meio a isso, é, ao mesmo tempo, produto e agente do racionalismo do século XIX. E sua personagem mais famosa, Emília, alcança o auge da razão em A Chave do Tamanho, quando sugere que a redução do tamanho traria benefícios à humanidade:

O mundo já andava muito cheio de gente. A verdadeira causa das guerras estava nisso
– gente demais, como Dona Benta vivia dizendo. O que eu fiz foi uma limpeza. Aliviei
o mundo. A vida agora vai começar de novo – e muito mais interessante. (p. 44)

A imagem de uma boneca convencional, simulacro da figura humana feminina, evoca para muitos a idéia de brincadeira. Brincando de ser mãe e de ser filha, de ser amiga e inimiga, de chorar e de sorrir. Para a arte-educadora Fanny Abramovich,[14] no ato de brincar, a criança representa papéis sociais e psicológicos que ela observa entre os adultos, recriando a realidade que está à sua volta – através de instrumentos poderosos como a fantasia, a sensibilidade, a afetividade e a criatividade –, transformando o espaço da brincadeira em um mundo próprio, onde realiza os seus desejos e vivencia as suas emoções mais profundas.

E uma boneca – talvez o mais importante simulacro da infância no mundo industrializado – é quem assume gradativamente o papel principal na saga do Sítio do Picapau Amarelo e também em A Chave do Tamanho. Seu “protagonismo” mostra-se logo no co-meço da história, quando, depois de ouvir a explicação de Dona Benta sobre o que estava acontecendo na Europa – a tragédia da Segunda Guerra –, não se conforma com o drama mundial e se põe a refletir:

Na noite daquele dia, em sua caminha de paina, ela perdeu o sono. Quem entrasse em
sua cabeça leria um pensamento assim: “Esta guerra já está durando demais, e se eu
não fizer qualquer coisa os famosos bombardeios aéreos continuam, e vão passando
de cidade em cidade, e acabam chegando até aqui. Alguém abriu a chave da guerra. É
preciso que outro alguém a feche. Mas onde fica a chave da guerra? Pessoa nenhuma
sabe. Mas se eu tomar uma pitada do superpó que o Visconde está fabricando, poderei
voar até o fim do mundo e descobrir a Casa das Chaves. Porque há de haver uma Casa
das Chaves, com chaves que regulem todas as coisas deste mundo, como as chaves da
eletricidade no corredor regulam todas as lâmpadas de uma casa”. (p. 9)

Segundo Walter Benjamin,[15] os pólos do mundo das bonecas são o amor e o jogo. Mesmo que sejam feitas artesanalmente e se tornem velhas e feias, elas simbolizam sen-timentos que estão próximos do amor, do carinho, da amizade e da ternura, tal como as

Proj. História, São Paulo, (32), p. 371-383, jun. 2006
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