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nós outrora, mais ingênuos e ardentes, nos abandonávamos a emoção. Eu mesmo sorrio hoje ao pensar nessas noites em que, no quarto de J. Teixeira de Azevedo, enchia de sobressalto e dúvida dois cônegos que ao lado moravam, rompendo por horas mortas a clamar a Charogne de Baudelaire, trêmulo e pálido de paixão:

Et pourtant vous serez semblable a cette ordure,
A cette horrible infection,
Étoile de mes yeux, soleil de ma nature,
Vos, mon ange et ma passion!

Do outro lado do tabique sentíamos ranger as camas dos eclesiásticos, o raspar espavorido de fósforos. E eu, mais pálido, num êxtase tremente:

Alors, oh ma beauté, dites a la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j’ai gardé la forme et l’essence divine.
De mes amours décomposés!

Certamente Baudelaire não valia este tremor e esta palidez. Todo o culto sincero, porém, tem uma beleza essencial, independente dos merecimentos do Deus para quem se evola. Duas mãos postas com legitima fé serão sempre tocantes — mesmo quando se ergam para um santo tão afetado e postiço como S. Simeão Estilita. E o nosso transporte era cândido, genuinamente nascido do Ideal satisfeito, só comparável àquele que outrora invadia os navegadores peninsulares ao pisarem as terras nunca dantes pisadas,