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uma das damas mais illustres e mais dignas d'admiração do renascimento italiano, tão fecundo em celebridades femininas. Comparar fidalgas portuguesas, de espirito culto e costumes impeccaveis, com a Marquesa de Pescara, chamar-lhes por meio d'este simile pensadoras profundas, poetisas excelsas, afamadas não menos pela bondade e nobreza de um caracter privilegiado em que tudo era genuino, do que pelo sangue, engenho e erudição, era uma homenagem primorosa que gostavam de tributar ás suas patricias os quinhentistas de cá que haviam entrevisto e admirado o original em Ischia, Napoles e Roma. [1]

Pena é que não nos seja dado verificar, até que ponto o Miguel Angelo português, o pensamento fito em Vittoria Colonna, e á luz da renascença italiana, sondou e reconstruiu a mais fina organização da renascença nacional.

Com livros não a rodeou, de certo. Seu principal empenho era, mostrá-la bella, casta e intelligente, digna de ser amada por Felipe de Hespanha, seu pretendente nos annos de 1549 a 1552. (O pretendente, é bom notá-lo entre parentheses, contava seis annos a menos do que a noiva.) E' o que resulta da referencia ao senhor do mundo nuns disticos latinos que hoje são quanto resta da obra de Hollanda. [2]

Eis os breves mas finos encomios que um douto jurisconsulto, admirador do pintor e do modelo, distribue a ambos: [3]

Venus depois de ter avistado o retrato de Maria,
foi levando-o para o mostrar a seu filho. E disse:
Não ignoras que de ha muito os fados andam á procura
de um esposo digno d'esta dama e que não o encontram.
Larga o arco; deixa as settas; leva sómente esta taboa,
e novos titulos de honra juntarás á tua gloria.
Reduzindo a captiveiro o monarcha do mundo,
ganharás um só mas ingente tropheu.

[4]

O segundo epigramma do mesmo humanista é mais explicito, e mais descriptivo:

Representar ao vivo a divina Maria
tentou Hollanda — empresa altissima, digna do artista.
Do mesmo modo a representou como pelo vate meonio
foi figurada a filha de Alkinoos, igual
em virginal gentileza a deusa Artemis.
Os olhos parecem fulgurar na fronte astral;

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  1. O primeiro escritor português que nomeou Vittoria Colonna foi o grande reformador da poesia lyrica em sentido italiano. Ao trocar com D. Leonor de Mascarenhas uns versos á maneira antiga, num dos Serões Manoelinos (ou antes no acto de os copiar em 1551, a favor do Principe Real), Francisco de Sá de Miranda juntou ao nome d'essa dama do paço a nota seguinte: «polo d'ela que é cousa rara, pus aqui isto, porque se veja que tambem Portugal teve a sua Marqueza de Pescara». ― Vid. Poesias de Sá de Miranda, Ed. Carolina Michaelis de Vasconcellos, pag. 40 e 744. D. Leonor de Mascarenhas sahiu de Portugal em 1526 como dama da Imperatriz D. Isabel, meia-irman da nossa Infanta, vindo ser a primeira educadora de Felipe II e posteriormente a do infeliz principe D. Carlos. ― Mais tarde, outros escritores que cultivaram o ideal italiano, entre elles: Gaspar Barreiros, Frei Heitor Pinto, Duarte Nunes de Leão e Hollanda, seguiram o exemplo de Miranda. ― Eis o que disse de Vittoria Colonna o pintor português: «E' polo conseguinte a senhora Vittoria Colonna (Marqueza de Pescara e irman do senhor Ascanio Colonna) uma das illustres e famosas damas que ha em Italia e em toda a Europa, que é o mundo, casta e inda fremosa, latina e avisada e com todas as mais partes de virtude e clareza que numa femea se podem louvar. Esta, depois da morte de seu grão marido, tomou particular e humilde vida, contentando-se do que já em seu stado tinha vivido, e agora só Jesu-Christo e os bons stados amando, fazendo muito bem a proves mulheres, e dando fructo de verdadeira catolica». Dialogos, pag. 12.
  2. Raczynski, ao fallar do retrato perdido ― por informação do Visconde de Juromenha ― confunde a nossa Infanta com a outra D. Maria, filha de D. João III, a que me referi numerosas vezes neste estudo. (Vid. pag. 13 e 43, e Notas 40, 41, 42, 50, 52 e 68.) Além d'isso parte de uma data inexacta (1532, em vez de 1552). Dictionnaire, pag. 152.
  3. Os versos são do Dr. Manuel da Costa. As obras d'este varão appareceram em primeira edição em Lyon de França, no anno 1552. Ha outra de Salamanca 1584: Emanuelis Costa Lusitani Jurisconsulti Commentarii. E' d'ella que me sirvo. O original (a p. 492), diz:

    Vidit Mariæ pictam Cytherea figuram
    Abstulit et nato sic ait illa suo:
    Scis ut consortem iam dudum fata laborent
    Huic Mariæ, et dignum vix reperire queant?
    Pro pharetra atque arcu solum hanc fer nate tabellam,
    Accedet titulis gloria summa tuis,
    Vnum etenim referes sed summum immane trophæum
    Captiuo summi principis imperio.

  4. Não creio que o monarca alludido fosse um dos Imperadores da Austria (Fernando II, Maximiliano I, ou Carlos V), comquanto os primeiros dois fossem, com efeito, temporariamente noivos de D. Maria, e o ultimo tambem appareça no rol dos pretendentes, tal qual historiadores modernos o elaboraram. Desconheço as provas da affirmação e julgo que se deixaram illudir por uma liberrima paraphrase de um poema latino de André de Resende, impresso na obra de Pacheco. No original uma phrase, relativa á Infanta, diz que seu excelso irmão a destinava ao imperio do globo e ás culminancias do poder ― frater quem maximus orbis destinat imperio ac rerum ad fastigia summa. O traductor substituiu essa proposição vaga pelas hyperbolicas asseverações seguintes:

    La infanta augusta de quien ya predica
    Dichoso vaticinio que el imperio
    De todo el emisferio
    Emperatriz la llama,
    Que suena ya la trompa de la fama
    Que Carlos Quinto esposa la destina
    A la Infanta Maria su sobrina.

    Confesso não perceber bem. Haverá erros de escrita? Será preciso lermos:

    Que Carlos Quinto esposa ya destina
    Al principe Felipe su sobrina?