a pudicicia tinge de rosas as suas faces:
Magestatica é a estatura e o porte; ninguem
pode duvidar se é, ou não, nas alturas que ella se move.
Como outr'ora Zeuxis soube figurar a Penelope,
honesta a ponto de parecer a estatua da propria castidade,
assim o feliz pincel de Hollanda faz entrever n'esta taboa
a pureza dos costumes da augusta donzella.
Se fosse dado aos olhos dos mortaes avistar
a virtude em pessoa, é essa expressão que lhe veriam.
Mas não foi possivel communicar-lhe aquella suave graça
a que não existe nada superior no mundo inteiro.
As allusões ao Livro VI da Odyssea, em que Homero descreve com inexcedivel maestria o encontro de Ulysses com Nausicaa, equiparando a joven princesa hellenica á pudica irmã de Apollo, podiam provocar em alguem a supposição de Hollanda não ter traçado um simples retrato da Infanta, em traje singelo ou festivo, mas antes uma scena mythologica, mostrando-a cercada de uma alegre comitiva de damas, radiantes de mocidade, as quaes vencia pelo esplendor da belleza, a elevada estatura e o fausto dos indumentos, quer fosse nos bosques de Cintra como Diana caçadora, quer nas praias do Oceano, figurando ahi a incomparavel filha do rei dos Pheacos.
Comtudo, se tal presumisse, andava enganado. A Infanta não era caçadora. [1] E a evocação de uma terceira figura, sempre representada a fiar, ao pé do lar abandonado pelo astuto e multivago Ulysses, embarga completamente tal interpretação.
Apenas se pode inferir o que já indiquei: que a taboa perdida dava ideia adequada da sua pudibunda e nobre formosura.
Nas epigraphes do subtil Manoel da Costa [2] não se acha exarado o nome do pintor. Mas o texto não deixa duvida a este respeito:
Exprimere ad vivum divinam Ollanda,
Mariam tentavit....
Et felix manus Ollande monstravit
Eadem Augusta mores Virginis in tabula.[3]
Volto ao retrato de Madrid, que tambem é obra de uma notabilidade artistica e respira as mesmas virtudes da Infanta, comquanto the falte a franca alacridade que emana das reminiscencias pagans do pintor e do humanista philhelleno.
11
- ↑ João de Barros assim o exarou no seu Panegyrico § 45: «deixada a caça a que muitas princesas em outros reynos são inclinadas, Vossa Alteza... em lugar de cães que desassossegão... penetra a sagacidade e ligeireza de seu espirito os cavados das pedras, desencovando aquella formosa pomba de Salamão que he a graça do Espirito Santo e os sentidos da Escritura,.... e quando o tempo lhe não dá lugar a esta caça, porque em huma ha de semear e em outra ha de colher, gasta estes intervallos no exercicio da musica...». ― Que jogos florais, ou jogos malabares, de espirito!
- ↑ De Tabella qua depicta fuit Serenissimi Joannis III Lusitanorum Regis Soror Maria Princeps Augustissima:
Expre ad viuum divinam Ollanda Mariam
Tentavit, raro dignum opus artifice.
Et talem expressit, qualis collata Dianæ est
A vate Alcinoí filia Mæonio.
Scintillare oculi stellata e fronte videntur,
Et micat in roseo viuidus ore decor.
Vultus maiestas est cui fastigia rerum
Deberi, iusta cum ratione putes.
Quod si Penelopes formam celeberrimus olim
Depinxit Zeuxis cum probitate simul,
Et felix manus Ollande 'monstrauit eadem
Augustæ mores Virginis in tabula.
Denique si posset mortali lumine cerni
Hac facie Virtus conspicienda foret.
Nec tamen ostendi potuit satis illa venustas.
Qua toto visum est gratius orbe nihil. - ↑ Pacheco reimprimiu os epigrammas e addicionou una versão de um vulto «de ingenio
subido». Ainda assim não é boa nem fiel. O traductor suppõe p. ex. que o vocabulo Ollanda (deturpado em blanda!) significa a tela sobre a qual fora traçada a pintura. (Mais provavel é que fosse sobre taboa). Tão pouco percebeu quem eram o vate Meonio e a filha de Alcinoo. Por estas e outras deficiencias privou à poesia do capitoso aroma classico que a redacção latina exhala.