Página:A infanta D. Maria de Portugal e suas damas.djvu/23

apenas a mulher recatada e submissa, forte por taes virtudes, prompta a todos os sacrificios, fecunda em obras boas. Poucos adivinhavam luctas e angustias debaixo d'aquellas apparencias de sosiego e grandezza que herdara do pae, sem nunca assumir a exagerada sobranceria que tornou mal vista sua meia-irman, D. Beatriz de Saboia.

Cumpre-me explicar agora quaes motivos me levam a aceitar a antiga tradição artistica, que designa com o nome Infanta D. Maria a bella dama pintada por Moro, dizendo porque reconheço no vulto a filha de D. Manoel, comquanto nem no proprio quadro nem tão pouco em documento algum relativo a Moro haja noticias elucidativas. E tambem, por que razão regeito e considero inconsistentes as duvidas levantadas por certos criticos escrupulosos. [1]

De onde essas duvidas nasceram, bem o sei. Da coexistencia de tres damas diversas de nome igual, que, nascidas no terceiro decennio do seculo XVI de allianças entre a casa de Austria e a dynastia manoelina, e casadas ou promettidas em casamento a principes do mesmo sangue, tinham jus a figurar nas galerias de retratos dos Felipes, e deviam, segundo todas as previsões, apresentar certo ar de familia, ostentando trajes de estylo parecido.

Ei-las pela ordem chronologica: Primeiramente temos a nossa Infanta, filha de D. Manoel de Portugal e D. Leonor de Austria (1521-1577). Em segundo logar, a filha de D. João me D. Catharina, a qual nasceu a 21 de maio de 1527, casou em 1543 com seu primo Felipe, e falleceu ao cabo de dois annos, ao dar á luz o Infante D. Carlos, de triste memoria. De passagem seja dito, que os dois nubentes eram de idade igual e celebravam o seu anniversario no mesmo dia, como os reinantes actuaes de Portugal. A terceira é a filha de Carlos v e da Imperatriz D. Isabel de Portugal. Essa nasceu em 1528. Casando em 1548 com o Imperador Maximiliano II, conservou-se todavia na Peninsula até 1551. [2]

E' impossivel que Antonio Moro pintasse a segunda, se realmente veio de Flandres depois de 1550, no que todos concordam. [3] Impossivel tambem que o quadro em questão represente uma joven de 17 ou 18 annos. Tambem não póde representar a terceira D. Maria, pois o retrato d'ella conservou-se e lá está hoje no Prado, ao lado do que nos occupa (com a numeração que indico nas Notas), mas tambem sem inscripção comprovativa. Resta portanto a hypothese que defendo e outros impugnam, por confundirem as tres Marias. [4]

A estada do pintor flamengo — pintor das noivas regias, como um dos mais entendidos criticos de arte costuma nomeá-lo — na côrte portuguesa, em 1552, com cartas de recommendação da

13

  1. No Catalogo de los Cuadros del Museo del Prado, D. Pedro de Madrazo dizia singelamente, tanto na edição de 1833 como na de 1850: «N.o 1376, Retrato de la infanta doña Maria, hija de don Manuel rey de Portugal. Posteriormente substituiu a forma affinnativa pela dubitativa, pondo: «Retrato de una dama joven desconocida. La tradicion la supone hija del Rey D. Manuel de Portugal, pero no hay fundamiento que la abone». (Ed. 1873, N. 1489). Na Revista de Archivos está em via de publicação um Catalogo de Retratos que talvez nos ministre esclarecimentos.
  2. A filha de Carlos v viveu até 1603. Cf. Nota 198 205.
  3. E' costume affirmar que Moro veio à peninsula em 1552. Todavia, se pintou ao natural a filha de Carlos V, na corte do pae, o pintor deve ter chegado a Madrid em 1551, a mais tardar. A Portugal é que passaria no anno immediato.
  4. Para comprovar a alludida confusão entre a filha e a meia-irman de João III, remetto o leitor não só novamente á obra de Raczynski, mas tambem ao Diccionario Historico de Cean-Bermudez (III, 202). Ahi se affirma que Moro, tendo retratado em Madrid ao Principe Felipe, seguiu para Portugal a pintar la princesa D. Maria (o que pode ser exacto, tomando nós princesa em sentido generico) y primera muger de Felipe II (o que é impossivel, visto essa ter fallecido em 1545). Cf. p. 42 e. Nota 52.