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lado, [1] mal chegou a completar dezaseis annos. [2] Segundo elles, foi ahi em uma constellação de intelligentissimas bellezas que o cantor dos Lusiadas encontrou as suas Tagides, e se desenrolaram parte das desgraças e venturas da sua juventude, assim como outros successos notorios, alegres e tristės, da vida amorosa de vates palacianos. [3]

O intuito artistico de altear a estatua da Infanta, de fazer d'ella a personificação feminina mais brilhante da cultura classica, e de pôr em contraste os seus dotes liberaes com o obscurantismo dos protectores da Inquisição e do Jesuitismo, levou-os a proceder com alguma arbitrariedade. Exagerando, e muito, de um lado a austeridade dos costumes e o rigor do regimen repressivo que vigorava no paço real, e do outro lado a liberdade e o esplendor mundano da Infanta, pintam D. João III e a Rainha D. Catharina como completamente faltos de intelligencia e saber, sombrios, antagonicos ás artes e a divertimentos, gastando os seus dias em novenas, ladainhas e autos da fé; e transformam a Infanta que na verdade foi mais seria do que graciosa, mais erudita do que artista, e devota como os reinantes, de formosa Pallas-Atheneia em jucunda Venus, ou Musagete feminina. [4]

Tentarei restabelecer a verdade, que fica, a meu vêr a meio-caminho, como de costume.



Os Estudos da Infanta. — E' thema não menos controvertido do que o dos Serões.

Segundo uns, D. Maria de Portugal fora de uma precocidade e intelligencia pasmosa. Lições de mestres e leituras proprias haviam-lhe aberto um horizonte amplissimo. Todos os auctores classicos lhe eram familiares. Quasi brincando penetrara os mais reconditos segredos da erudição. Fallava e escrevia a lingua latina perfeitamente bem, não só com fluencia e correcção, mas até com graça e singular elegancia, tal qual sua lingua materna [5] — como se todo o mundo, então e sempre, soubesse bem a sua lingua materna! Em segredo, muito em segredo, redigia obras volumosas nos dois idiomas mortos. [6] Do seu enthusiasmo pela litteratura patria dava provas diarias, estimulando e recompensando a actividade dos melhores auctores.

Segundo outros, que já conhecemos, foi apenas para poder rezar com entendimento os officios divinos que se dedicara ao estudo. Os volumes manuseados dia e noite, eram a Escritura e28

  1. 89 A Infanta residiu primeiro modestamente na Alcaçova Velha; em seguida no campo de S. Clara; e finalmente com ostentação perto de Santos o Novo, no bairro aristocratico de Xabregas. (Pacheco f. 126). No tempo provavel dos Serões (1538 ou 1540 até 1555), o seu domicilio era no segundo dos paços citados.
  2. 90 Já sabemos que, obrigados por contrato a entregarem-lhe a sua legitima, quatro annos depois do fallecimento de D. Manoel, ou segundo outros aos dezaseis, os reinantes não haviam cumprido, e nunca cumpriram esse dever, sob varios pretextos, entre os quaes avultam o seu estado de filha adoptiva, a inconveniencia de a deixar sahir do paço, emquanto não estivesse casada, as duvidas àcerca da importancia da somma devida... e a falta de dinheiro.
  3. 91 Nos poemas e dramas, nas novellas, e nos romances historicos, dedicados a Camões, um logar proeminente é em geral concedido à Infanta. Sirva de exemplo, entre muitos, o drama de Cypriano Jardim, publicado por occasião do centenario.
  4. 92 Alguns costumes, quer delicados, quer primitivos, da corte portuguesa, como por ex. o de as damas não tomarem parte em banquetes, ou ainda o de não se sentarem em cadeiras altas, mas antes rente ao chão, em cadeiras e estrados baixos, são erroneamente considerados por alguns auctores como outros tantos indicios de reacção austera contra o esplendoroso mundanismo do Renascimento italiano.
  5. 93 Nem mesmo sabemos, ao certo, qual era a lingua materna de D. Maria. Filha de uma infanta castelhana, entregue aos cuidados de outra castelhana, que a confiou a aios da mesma naturalidade (D. Francisco de Guzman e sua esposa), é quasi certo que fallava castelhano muito cedo. Mas, portuguesa de nação, servia-se sem duvida, diariamente, tambem da lingua patria. Pacheco, que redigiu a sua obra em castelhano, não só allega, naturalmente, todos os seus ditos nesse idioma, mas mesmo o testamento, sem indicar, se o traduziu. Uma carta apenas está redigida em português. Por um acaso singular, essa é dirigida ao Imperador Carlos v. Acho estranhavel este procedimento, se realmente o castelhano lhe era absolutamente familiar.
  6. 94 O primeiro que a metteu na lista dos escritores portugueses foi Faria e Sousa. Sem provas, bem se vê. Nicolas Antonio seguiu o exemplo. E outros o repetiram.