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No entanto, nos Estados Unidos, o livro apenas entrará em domínio público em 2031 (95 anos contados da publicação[1]), por conta do prazo de proteção previsto legalmente.

De acordo com publicação do New York Times[2], alguns dias após a notificação, o Projeto Gutenberg Austrália removeu o acesso ao conteúdo do livro. Mas a contenda com os herdeiros de Margareth Mitchell era apenas um dos potenciais problemas do Projeto Gutenberg na Austrália, já que muitas outras obras (tais como “Mein Kampf”, de Adolf Hitler, e “1984”, de George Orwell) já estavam em domínio público pelas regras locais, mas não nos Estados Unidos.

Este caso nos leva a algumas considerações bastante interessantes. Em primeiro lugar, se “... E o Vento Levou” estava em domínio público na Austrália, deveria mesmo ter sido retirado do website? Afinal, não havia qualquer violação do ponto de vista da lei australiana. Em seguida, como é possível, em um mundo globalizado digitalmente, dar eficácia a leis com prazos de proteção distintos?

A primeira questão parece razoavelmente simples de ser respondida: não, a obra não deveria ter sido retirada do website. No entanto, como já apontado por terceiros[3], o Projeto Gutenberg é composto por voluntários e não tem fins lucrativos, de modo que não conta com muitos recursos para enfrentar uma disputa judicial[4].

A segunda questão é mais sensível. Inicialmente, porque nos parece que qualquer download não autorizado de “... E o Vento Levou” por um americano residente nos Estados Unidos, em violação à lei autoral norte-americana, consiste em uma infração cometida pelo usuário que realiza o download ilícito — e não pelo website que disponibiliza a obra.

Além disso, para respeitar a lei estrangeira (naturalmente, não só a norte-americana), iniciativas como o Projeto Gutenberg teriam que lidar com as seguintes possibilidades: investir valores consideráveis para gerenciar downloads de acordo com as leis autorais dos países de cada um dos diversos usuários ou, alternativamente, colocar à disposição apenas as obras que estejam em domínio público em todo o mundo[5].

De toda a forma, ainda em 2004, a Austrália celebrou com os Estados Unidos um acordo comercial — o Australia-United States Free Trade Agreement — que, a exemplo da

  1. Disponível em http://blog.librarylaw.com/librarylaw/2004/11/emgone_with_the.html. Acesso em 12 de julho de 2010.
  2. Disponível em http://www.nytimes.com/2004/11/08/technology/08newcon.html?_r=2. Acesso em 12 de julho de 2010.
  3. Disponível em http://blog.librarylaw.com/librarylaw/2004/11/emgone_with_the.html. Acesso em 12 de julho de 2010.
  4. Esse tipo de conduta é compreensível, mas estimula o chamado “marketing do medo”, cujo objetivo é fazer a notícia do processo judicial ser mais eficaz do que a sentença do juiz. Este é também o motivo substancial por que tantas limitações e exceções previstas legalmente não são respeitadas pela indústria cultural, que muitas vezes se vale de práticas abusivas para manter modelos de negócios ultrapassados. Ver, sobre o assunto, BRANCO, Sérgio. A produção audiovisual sob a incerteza da lei de direitos autorais. Cit.. Ver, ainda, de FALCÃO, Joaquim. A Indústria Fonográfica e o Marketing do Medo. Disponível em http://www.culturalivre.org.br/wp/pt/ . Acesso em 12 de julho de 2010.
  5. Como bem aponta Antony Taubman, diferenças na lei, em políticas públicas, prática e costume significam que os domínios públicos nacionais se diferenciam vastamente entre países vinculados aos mesmos tratados. Tradução livre do autor. No original, lê-se que “[d]ifferences in law, policy, practice and custom mean that national public domains dif- fer widely between countries bound by the same treaties”. TAUBMAN, Antony. The Public Domain and International IP Law Treaties. Intellectual Property — The Many Faces of the Public Domain. Cheltenham: 2007; p. 82.