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temperada com sua garantia como direito fundamental), o ponto de vista se inverte, e a propriedade será protegida na medida em que o exercício concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela[1].

Sendo assim, a função social da propriedade não deve ser entendida “como uma intervenção ‘in odio' à propriedade privada, mas torna-se ‘a própria razão pela qual o direito de propriedade foi atribuído a um certo sujeito'”[2]. Por isso é que é claro que sobre a coisa física na qual a obra se insere indissoluvelmente haverá legítimo direito de propriedade (se, de fato, for legítimo). Mas estando a obra em domínio público, poderá o proprietário do corpus mechanicum impedir o acesso à obra, que não lhe pertence — que, a essa altura, não pertence a ninguém?

Conforme aponta Pietro Perlingieri, “[e]m um sistema inspirado pela solidariedade política, econômica e social e pelo pleno desenvolvimento da pessoa, o conteúdo da função social assume um papel promocional, de maneira que a disciplina das formas proprietárias e a sua interpretação deverão ocorrer de forma a garantir e promover os valores sobre os quais se funda o ordenamento”[3].

Em um ordenamento como o nosso, onde a solidariedade é objetivo fundamental da República[4] e a propriedade não só não é absoluta como deve atender sua função social, impedir que terceiros tenham acesso a obra em domínio público simplesmente por se exercer direito de propriedade sobre o meio físico onde a obra se encontra parece-nos abuso do direito.

Por outro lado, não há que se imaginar que o proprietário do bem físico onde a obra se insere está sujeito ao disposto no art. 24, VII, da LDA, com relação a qualquer interessado, após a obra ingressar no domínio público. Advogar tal opinião seria dar à lei efeito maior do que o nela previsto, bem como onerar excessivamente o proprietário do suporte físico da obra. Afinal, toda e qualquer pessoa poderia pleitear o acesso à obra para fazer dela registro fotográfico ou audiovisual. Dependendo do grau de  notoriedade



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131 “Diante de tais reflexões críticas, construiu-se o entendimento de que a função social da propriedade consiste em elemento interno do direito de propriedade, aspecto funcional que integra o conteúdo do direito, ao lado do aspecto estrutural. A partir daí, transforma-se a concepção segundo a qual o proprietário deteria amplos poderes, limitados apenas externa e negativamente, na medida em que o legislador imponha confins para o exercício regular do direito. Diversamente, os poderes concedidos ao proprietário adquirem legitimidade na medida em que o exercício concreto da propriedade desempenhe função merecedora de tutela, tendo em conta os centros de interesse extra-proprietários alcançados pelo exercício do domínio, a serem preservados e promovidos na relação jurídica da propriedade, como expressão de sua função social”. TEPEDINO Gustavo. A Função Social da Propriedade e o Meio Ambiente. Cit.; p. 187.

132 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; p. 852. Conforme lembra Francisco Eduardo Loureiro, citado por Renan Lotufo, “a função social não pode ser encarada como algo exterior à propriedade, mas sim como elemento integrante de sua própria estrutura. Os limites legais são intrínsecos à propriedade. Fala-se não mais em atividade limitativa, mas sim conformativa do legislador. São, em última análise, características do próprio direito e de seu exercício, que, de tão realçadas, compõem o próprio conteúdo da relação”. LOTUFO, Renan. A Função Social da Propriedade na Jurisprudência Brasileira. Direito Civil Contemporâneo — Novos Problemas à Luz da Legalidade Constitucional. Gustavo Tepedino (org.).São Paulo: Atlas, 2008; p. 346.

133 PERLINGIERI, Pietro. O Direito Civil na Legalidade Constitucional. Cit.; p. 940. 134 CF/88, art. 3º, I.