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nuntius antiquus

Belo Horizonte, v. X, n. 2, jul.-dez. 2014
ISSN: 2179-7064 (impresso) - 1983-3636 (online)

por ele todos os manuscritos descobertos ou disponibilizados depois de 1930, o que provê um considerável volume de leituras e informações novas.

Esta é uma das razões de minha tradução, o dispormos agora de um novo texto crítico, o que exige, em certo sentido, que todas as traduções sejam refeitas, a outra, dela decorrente, sendo a possibilidade de traduzir não um apanhado de textos distintos muitíssimo fragmentados a fim de apresentar um fio narrativo mínimo, como se fez no passado, mas um poema inteiro, o que se intitula Ele o abismo viu, de que conhecemos inclusive o “autor”, Sîn-lēqi-unninni.

Evidentemente se deve falar de autoria com todas as precauções necessárias quando lidamos com o mundo antigo, da mesma forma, por exemplo, como devemos nos precaver ao afirmar que Homero é o “autor” da Ilíada. Todavia, se há uma grande possibilidade de que este que se chamou de Homero fosse antes um “aedo”, tendo em vista as peculiaridades de composição oral dos poemas (o elemento cujo conhecimento seria mais empolgante escapando-nos definitivamente: a passagem do oral para o escrito), no caso de Sîn-lēqi-unninni temos uma certeza: trata-se de um escriba. A versão da “gesta” de Gilgámesh que a ele se deve, como acontece com relação a ciclos poéticos semelhantes, não constitui uma obra “original” (no sentido moderno), pois trabalha ele com uma tradição escrita em sumério e acádio que já contava, em sua época, com mais de meio milênio. Portanto, é lidando com essa tradição escrita que Sîn-lēqi-unninni, ele próprio um escriba, compõe a nova versão do poema, entre os séculos XII e XI a.C., trabalho destinado a tornar-se a versão clássica (ou, como preferem os autores ingleses, standard) da épica sobre Gilgámesh. Nela, a mão do “poeta” deixa-se perceber sobretudo pela profundidade que imprime à antiga saga, ao trazer para primeiro plano a pergunta sobre a mortalidade do homem, que transforma o seu herói, de simples aventureiro, num verdadeiro sábio.

A tradução que ofereço pretende-se bastante próxima do original babilônico, observando as convenções poéticas dele próprias. Registre-se que a poesia acádia, como a de outras línguas semíticas antigas, não tem como base algum esquema métrico fixo, mas constrói um ritmo baseado em unidades sintáticas, um verso comportando, em geral, duas dessas unidades. Além disso, pode-se dizer que, dentre outros recursos poéticos, os mais relevantes são os de natureza paralelística, envolvendo expressões, versos, trechos e mesmo falas e cenas inteiras, o que também marca, no seu nível, o ritmo do texto. Assim, não sendo esta uma tradução poética, tem, contudo, a pretensão de não tolher a percepção dos torneios que garantem ao leitor ser um poema o que ele tem sob os olhos.

Essa pretensão se desdobra e completa nos comentários, que abrangem também outros problemas e aspectos do poema. Trata-se de

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