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mãe, e foi para Alexandria, onde viveu durante dezasete annos entregue a todos os excessos da luxuria, sem acceitar outra recompensa senão a satisfação dos seus insa­ciaveis apetites. Embarcando alli em companhia de alguns mancebos de vida desregrada, que iam para Jerusalem as­sistir á festa da Invenção da Santa Cruz, tanto durante a viagem como na santa cidade, excedeu muito os seus passados desvarios. No dia da festa da Invenção da Santa Cruz, quando ia entrar na egreja da Resurreição com os outros christãos, foi repellida da porta por uma força irresistivel; então, tocada da graça divina, reconheceu que a causa, que a impedia de entrar na egreja. era a sua estragada vida; e cheia de sincero arrependimento implorou a intervenção da Virgem Maria, cuja imagem estava á sua vista; e prometteu que, se alcançasse entrar na egreja e adorar o Lenho da vera Cruz de Jesus Christo. abandonaria o mundo, e iria para onde ella ordenasse. A sua supplica foi attendida; Maria entrou depois sem difficuldade na egreja, adorou o Lenho da vera Cruz, e recebeu o sacramento da eucharistia; em seguida saiu da egreja, deixou a cidade, atravessou o rio do Jordão, e foi para o deserto, onde durante dezasete annos fez asperrima peni­tencia para remissão das suas passadas culpas. Maria vi­veu depois no deserto durante trinta annos, na oração e na contemplação, e falleceu sem ninguem a assistir nos seus ultimos momentos.

Os successos da vida de S. Maria Egvpcia não são narrados singelamente e pela ordem chronologica da sua successão, desde o seu nascimento até á sua morte; mas por um artificio, que revela um alto grau de cultura intellectual e não vulgar aptidão litteraria do auctor da hagiographia, a narração começa pelos successos do penul­timo anno da vida da santa penitente, e é ella mesma, que. depois de muito instada e com grande constrangi­mento, mas tambem com grande nudez, refere todos os extraordinarios acontecimentos da sua longa e accidentada vida a um virtuoso monge, chamado Zosimas, o qual depois os conta ao auctor.

A Vida de S. Maria Egvpcia não é a narração de factos realmente succedidos, mas tão sómente um romance composto para edificação dos fieis[1], com o fim de demons­trar que na mais completa renunciação do mundo, que o


  1. Amélineau, Contes et romans de l’Égypte chrétienne, Paris, 1888, t. 1, p. LXXI; cfr. Analecta Bollandiana, t. XX, 1902, p. 101.