Excommungado...
(A VICTORINO DIAS.)

Escutae-me, ó pallidas creanças ! tremei de horror, ó castas donzellas ! que todas passaes vida piedosa e santificada, no regaço vigilante de carinhosas mães — prudentes em vos ensinar a lér as paginas bemdictas dos manuaes e cathecismos de religião.

Ouvi, amedrontadas e torvas de espanto, a lugubre historia desse misero peccador, que, horas mortas, e nas ermas, ennevoadas ruas de Chrysopolis, peregrina, mudo, desolado, immenso de dór e agonia !

Sei que uma de vós, nubil ainda e menos ajuizada, costuma abrir a assignalada gelozia e entregar, sem susto, sem malicia, o rubro labio virginal ao leal namorado, cujas felinas passadas se perdem, alta noite, nos pedraes gelados...

E que outra, mais imprudente e louca, transpõe do lar os humbraes, attrahida pelo braço depravado de um cynico, que a conduz — louçã e mimosa — por entre os respingos agudos da alvorada, de regresso ao estofado e alegre quartinho de moça, onde — rica, adorada e feliz — guarda, como Vestal, o fogo semi-apagado da innocencia...

Fugi, ó incautas meninas, de noctivagas vos aventurardes pelas pavorosas viellas de Chrysopolis.

Não temeis a Zonilio — o excommungado e cuja historia desejaes vos conte?

Alguma dentre vós será por elle enlaçada, pór inquietas madrugadas, quando os uivos irritantes da canzoada perdida se confundem — ó funereo, triste duetto ! — com os guinchos estridulos da ventania atravez as frestas das pesadas ogivas das egrejas...

Zonilio apostata da sua fé — foi um padre que parochiou esse alvacento e pequeno eremiterio de S. Braz, que todas conheceis e avistaes, lá naquella esteril collina do Renegado.

Oh! sim, conheceis de nome essa esteril colina, onde vicejam as bellissimas e ingenuas aldeans, que vos trazem, pela Paschoa e Natal, as lindas condeças de folhas de-palmas trançadas.

Elle (ó pelo bom e martyr Jesus, não griteis de pavor), o criminoso amante de Enóe, -- a formosa, a divina, — peccou...

E, satrilego attentado! abjurou as suaves doutrinas do santo e meigo Nazareno, bandeando para a negra legião do perfido Satan.

Fulminante excommunhão o acolheu nas austeras fortalezas do Papado.

o Enóe — a formosa, a civina — conspurcou aquelles frescos esplendores juvenis de sua alma, com os impuros labios maldictos de Zonilio...

Enóe morreu e, horror dos castigos! — : os impetuosos vendavaes da morte a carregaram, mansamente, triumphalmente, para as lobregas prisões infernaes, onde existe incognito exílio de mysteriosos, inquisitoriaes supplicios, para as virgens transviadas...

Zonilio padeceu, vasquejou em mortaes agonias.

Medonho, na soidão horrivel do seu impio amor, caminha, caminha sempre o solifugo, pelas ruas sombrias de Chrysopolis, e mais de uma vez, por plangentes vibrações de meia-noite, tem roubado, em atremeços brutaes, descuidadas donzellas.

Depois -- grande, espantoso crime ! desce com ellas em invisiveis degraus de compridissimas escadas, que tocam o desterro de Enóe, e — feroz, com esgares de reprobo — as precipita para igneos abysmos...

E sempre, odioso sempre como Caim, esprei avos, ó pallidas creanças, arrebatando-vos, com alegrias de demonio, toda vez que alguma de vós — mais imprudente e louca — se atira pelos labyrinthos de Chrysopolis, protegida por dubias escuridades de noites altas.

Evitae-o agora, que já o conheceis, ó castas e travessas borboletas, que vos educaes nesse ambiente finamente religioso dê rosarios, jaculatorias e confissões.

Fugi de crestar os aurinos ocellos fugazes das vossas iriantes azas de virgens, com a peçonha fatal que vos póde assaltar, em um dado encontro com Zonilio — o excommungado !

1895.


Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.