Recuerdo...
(AO DR. ASSIS LIMA)

«Guadeamus igitur
Juvenes dum sumus...
»

Para ti, bella filha da terra voluptuosa de Hespanha ! escrevo nesta pagina intima as loucuras d'aquella noute enluarada de Julho.

Ao teu arrulhoso coração de pomba, Carmem de Guadelupe, estas linhas saudosas o apaixonadas, que resumem o nosso amor de uma unica só noite, na Paulicéa excitante e idéal...



Baixava a cortina esbrazeada das illuminuras do occaso, sobre a grande arteria da vida academica de São Paulo, a rua 15 de novembro.

Era a hora em que se confundem ás portas magnificas dos cafés e das confeitarias, dos bazares e das casas de joias—na mais alegre e importante das ruas da bella capital do progresso e do dinheiro—o arfar barulhento dos custosos vestidos de seda das elegantes como rinchar da botina lustrosa do leão; o lindo olhar das sultanas do donaire com os rebrilhos afogueiados das pedrarias que as enfeitam.

Millionarias e pallidas paulistanas, louras inglezinhas dellicadas, catitas filhas d'aquella nova Italia e as soberdas e fogosas rainhas do bolero, por alli se crusavam misturadamente, atravez dos largos passeios da calçada, e fazendo zig-zags por entre o maçotes debochantes da bohemia rapaziada.

Bandos sensuaes de formosas costureiras se recolhiam das officinas e por alli passavam. unas faceiras e provocadoras, outras semi-cerrados os meigos olhos traidores dos sonhos de volupia em gue nadavam...

Subito, na multidão suffocante dos transeuntes, pelo meio d'aquelle vae- em continuo, eu te divisei, cacan a fora an a uza, com as tuas seducções irresistiveis de anjo ou deusa, não sei.

Mais de um em ti encarou lubricamente esfaimado, como a tentar um beijo destes teus labios polpudos, roseos. divinaes, como a querer a caridade de um de teus imperiosos e incendiarios olhares.

Embriagado, segui-te.



Lembro-me ben do modo como me notaste no teu encalço...

Reverberava o argenteo creszente pallidas claridades sobre a esquina da rua de São João, e tu caminhavas em direcção ao Mercado.

O magico semblante amorenado e fresco, envolto na mantilla preta; o teu passo sereno e rapido—denunciador do mais bonito e adoravel pé; os menetos tremulos de teu corpo nervoso e sadio, na florescencia de 15 annos; tudo, emfim, annunciava a mulher nova por mim sonhada em utopias de gôso...

Mas alli estavas, tentadora e real, prompta talvez ame cederes a magestade de teu collo de andaluza ;

Approximei-me...

Levava o medo de uma repulsa ingrata; porém, viste e advinhaste quanto é incomparavelmente sublime crêr a mulher nas carícias do homem enton tecido pelo amor, ..



Possui-te, em adorações allucinadas de indiano...

Tu, fogosa filha de Hespanha! soubeste me captivar, com aquelle teu delicioso e terno enleio de mulher, que accorda ás inspirações, aos ardores de um primeiro affecto, simples e harmonioso !

Jamais se apague do teu espirito, o formosa Carmem de Guadelupe, a recordação tão mansa, tão saudosa de nossas loucuras, naquella noute entuarada de Julho!...

1894.

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.