Delirio de Ebrio
(A J. FELICIO JUNIOR.)
I

Era alli para a frente d'uma tasca immunda do Macáu, onde á alta noite se conglobava em libações de alcool uma gente suspeita de garimpeiros esfarrapados,soldados desertores da guarda, e horizontaes somnolentas, que encontravam o Paulo, o terror nocturno dos raros e solifugos transeuntes, que faziam naquelles tempos coloniaes suas sortidas criminosas là pelas então escuras e desertas viellas do[1] Tijuco. O céu chumbado largava descargas medonhas e a calçada lamarenta attestava o furor tempestuoso da estação.

Deitado na lagea humida da porta, os cabellos em nado na poça de agua, o corpo enregelado e tremulo a poder da fraqueza pela cachaça; emquanto dentro, no antro do vicio, havia um tilintar de copos sujos e gordurosos, com berros tonitroantes de bebedos e jogadores esquentados.

Assim vivia o pobre Paulo, um desgraçado de cuja existencia infeliz e excentrica todos se compadeciam.

Viera do alto sertão, acompanhado da mulher - uma forte e guapa morena, de largos quadris e olhos arrebicados, por quem elle morria, soffrendo as suas cruelidades e desdens, com um heroismo ridiculo.

Quando menos esperava, eis que a perdida o larga, a elle, doente e de cama, para acompanhar um cabo de cavallaria, pertencente ao regimento dos terrenos diamantinos, que ia a Villa-Rica, na escolta conductora d'uma partida da preciosa pedra.

II

A ingratidão ea perfidia lhe produziram um começo de loucura odienta, logo que se capacitou de que a Chica, como elle a chamava, partira, bem contente e safada, ao lado d'aquelle biltre de mochila e cantil, cuja seducção unica eram uns meneios furtivos de olhos, lançados quando pinicava a viola,á moda de sua terra.

Ahia origem d'aguella reclusão diurna do Paulo, detestando a luz e os homens, para emergir-se da furna immunda em que morava, no Burgalháu, só quando à deshoras ia beber, estupida e vorazmente na taverna do Macáu, onde fazia com a sua força de bruto um chinfrim damnado de urros, cabeçadas e lamentações.

Vida indolente e de miseria, aquella de mendigar á noite avançada o pifão maldicto do restillo, que já o consumia incendiariamente. — Do seu corpo sahia um bodum azedo de canna fermentada em parol sujo, o que impunha para com elle a mais decidida repugnancia; e por isso nem já a mão caridosa da compaixão se dedicava a apanhal-o dos charcos mortiferos da rua, deixando que o misero por si proprio fosse a caminho de casa, com os membros gelados e roxos, e onde era real o delirium tremens.

Minava-lhe o organismo ossificado e corrompido as saudades infernaes da Chica, de quem elle queria, allucinado e febriimente nervoso, receber ofrescor esplendido dos labios capitosos, em um ultimo adeus, pondo depois em acção o seu plano de desforra com a adultera e traidora...

III

Chovera a valer e amanhecera carrancudo e vetrico aquellé dia escuro de Outubro.

A natureza enfezada, o vento uivando agoureiramente, presagiavam algumas das espantosas e phantasticas tragedias, que o cerebro doentio de Edgar Pöe nos descreveu, com a sua imaginação demasiado viva e exaltada.

Paulo assemelhava-se a uma fera enjaulada que afia os colmilhos ponteagudos, com furia e ancia, para atirar depois o bote mortal e vingativo no seu algoz. — Hirto, horripilante, terrivel, percorre com a vista desvairada o ambito desolado da caverna em que habita. Delira, solta beijos vagos, rasga convulsivamente as carnes entumescidas e parece cevar no incognito a animalidade da revanche.

Na vespera soubera do regresso da Chica, já sem o farrancho do cabo, mas agora seguida d'um bando empestado de bufarinheiras de goso e vicio...

Que ruminava elle, quando um sorriso feroz lhe tisnou negramente o rosto transfigurado, ao sahir mysteriosamente do seu covil...

Paulo d'esta feita não procurou a taverna, e' gesticulando, marchou para o açougue infame, onde a Chica e companheiras vendiam, no balcão da libertinagem, a preço infimo, a carne depravada.

Cego de raiva, elle cahe como um raio no bordél e arrebata a pérfida, fulminada pelo horror que lhe inspira aquelle esqueleto sanguisedento e desgrenhado, em pleno delirio...

IV

Olhando para o oriente, vê-se a serra de Santo-Antonio dominando «a rainha do norte», que descança, poeticamente, ao sopé das rampas verdurosas da Grupiára.

Ahi vae se desenrolar o mais tragico dos quadros, para cuja descripção a penna rustica do sertanejo vae lhe tremer na mão.

Paulo, vertiginoso na corrida como o genio das trevas amedrontado com o fragor das ondas dum oceano de maldicção, que lhe marchasse ao encalço grimpa pelos rochedos até o cimo lugubre da serra, onde depõe a inditosa Chica.

O ebrio vinga os supplicios da existencia miseravel que arrastou, extinguindo a criminosa peccadora, aos poucos, em cannibalesco sacrifício...

Sorve, entontecido de odio e prazer, a desforta abominavel, no corpo martyrisado da adultera.

Aquella scena delirante e furiosa prolonga-se... e termina quando o louco se despeja pela garganta larga do abysmo, arrastando a Chica, e rolando pelas profundezas os dous cadaveres!...

Eis porque no alto desolado da serra, lá em Diamantina, existe plantada entre pedras uma cruz tosca de madeira, que ainda hoje recorda o pavoroso drama, representado ante o céo chumbado d'aquelle dia escuro de Outubro.

Março — 1894.



Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.
  1. Hoje a opulenta e formosa Diamantina, cidade norte mineira.