Pelo Sertão
(SCENAS E COSTUMES)
A MEU PAE

« Arriba, aqui,
Olá da canôa!
Larga o giqui[1]
Não me deix'atôa...
Eh ! lê... oh ! lá... eh ! lô... »

« Vira de banda
Qui' evem a piranha :
O'ia lá se não anda,
Pr'u casa de manha...
« Ai! oi...ai! oi...ai!»



« Longe já vae meu amor...
Quero ir pr'u rio afóra,
Chorando esta minha dor!
Ai! qui'a canôa foi s'imbóra... »
Eh! lêrê... aué...lêró... »

E, ternamante, cheia de modulações saudosas, esmorece na garganta afinada do sertanejo a voz entristecida e abarytonada, que vem de cantar as coplas acima escriptas, emquanto de manso voga, aguas além, ao impulso vigoroso da corrente, a canôa atulhada de gente e cargas.

E quem ouve, á margem do S. Francisco, esta e outras canções singellas e encantadoras, soltas ruidosamente, daquelles robustos pulmões de remadores, e que se perdem ao longe, de envolta com os sopros perfumades dos silvedos ribeirinhos — jámais as poderá esquecer.

Com que dulcissimas tonalidades musicaes por lá se cantam essas modinhas, tão ternas e tão saudosas ao mésmo tempo, só o conseguirá dizer aquelle que já tenha convivido, demoradamente, com o valente e fiel povo do sertão.

Principalmente nas proximidades dos pontos limitrophes dos dous Estados, bem longe, quando a correnteza do S. Francisco, em espumarentas impetuosidades, banha de commum a terra das Minas e o solo de Paraguassú ; quando as fortissimas gavinhas dos cipoaes, brotados nas ribanceiras do rio, amarram e seguram, em natural amplexo de paz e estima, as franças dos arvoredos nascidos no ultimo pedaço de dominio mineiro, ás ramagens vicejantes da mattaria esparsa pelos primeiros terrenos do sul bahiano : — é que então se confundem as tendencias poeticas do sertanejo de cá e do de lá, que se emprestam mutuamente as habilidades de talento e imaginação, para com mais graça e sabor se inspirarem na creação daquelle suave canto, de um rythmo amollecido e sonoro, de uma quente vibração tropical.


O bateleiro do sertão, quer esteja na faina do leme das grandes barcas fluviaes de longo curso, quer se ache de costas núas, largo chapeo de palha ou burity á cabeça, viola ao lado e comprido cigarro de fumo virgem preso ao canto direito da bocca, fazendo mansamente deslizar na caudal a sua leve canôa — a bordo da qual são imprescindiveis o cuité de sal, o garrafão de cachaça e o canudo da rubra giquitaia[2], para o fabrico da saborosa moqueca, que, além do mais, exige peixe excellente e fresco, e tem de ser comida por entre frequentes libações do aperitivo e liquido producto da canna — não se dispensa da obrigação de saudar o sol que nasce, que culmina e que morre.

Pela manhã, ao meio dia e pela tarde não é raro encontrar, dispersas pelo rio, canõas tripoladas por um e mais homens, os quaes fazem ouvir de seus largos peitos os sons harmoniosissimos das cantarolas sertanejas, vibradas á distancia pelas conductoras ondas daquelle amplissimo e luminoso lençol de aguas.

E' o habito tradicional do filho dos tropicos : amar a luz, nas esplendencias bemfazejas do astro, cujo surgir e occaso elle canta na sonora lyra ingenua do seu fogoso e poetico temperamento.


A Lapa! — eis um ponto de mira e ultimo da directriz porque se guiam os olhos crentes do sertanejo, quando, atacado por alguma molestia, ou sob a imminencia de um grande mal, invoca a protecção do Senhor Bom Jesus da Lapa, lá na sua imponente egreja levantada no seio liquido do S. Francisco, em aguas bahianas.

A Lapa é a Mecca do mineiro nortista e do bahiano meridional.

Uma romaria ao famoso templo, a respeito do qual factos tão extraordinarios se contam, é o ardente desejo de ambos.

E quando não lhes é permittido irem cumprir o voto feito á santa imagem do Salvador, lançam mão do expediente de confiar ás calmas e velozes correntes do giganteo rio o objecto promettido, em instante de acerba afilicção.

Assim não é difficil a quem navega, vindo para O Guaicuhy, que é o porto onde se realiza a confluencia do Rio das Velhas com o magestoso Volga Brazileiro, ou indo mesmo da cachoeira do Pirapóra, procurando, rio abaixo, os portos da Manga, Angicos, Januaria e outros — distinguir pequenas batêas ovaes ou gamellas, impellidas desde longe pela agua, e levando dentro offerendas simuladas em cêra, que têm de ser recolhidas no sanctuario da Lapa.

A fé ardente e christan do sertanejo é tal, que, ao vêr no marulho cavo de um remanso, retida a promessa ou « milagre de cera », elle diz que o Bom Jesus da Lapa desse modo evita a submersão do precioso objecto, nalguma cataracta fluvial ou em aspera guinada das ondas espumosas...


Pelas compridas chapadas do sertão, em dadas estações do anno, caravanas numerosas de romeiros e negociantes se dirigem em demanda dos portos do baixo S. Francisco, onde se separam, indo uns dar cabo á inviolavel peregrinação religiosa que encetaram, sob mil atribulações e sacrificios varios, emquanto outros vão guiados pelo interesse mercantil de suas feiras e grossas vendas, em caminho dos logares onde melhor consumo encontram os generos e rebanhos que conduzem.

Penosissimas são essas viagens atravez dos extensos e deshabitados chapadões, desprovidos de mananciaes, em que se possem desalterar os magros e esguios cavallos sertanejos, tão valentes para as constantes jornadas de doze e quatorze leguas, de sola sol, quão atilados para descobrirem no uniforme oceano verde-escuro dos hispidos capinzaes rasteiros do sertão, os trilhos confusos e enganadores, que pertencem á via real entre as distantes povoações.

Pela noite alta, quando por sob o vasto ceu immovel da canicula abrazadora, já os caminhos forrados de uma areia fina e escorregadia, perderam o ardor causticante, devido ao frigido borrifo de orvalho que nelles cahiu, é que se desarmam as leves barracas de descorado e ardido panno, levantadas em pleno campo pelos viajantes, que acham então propicia a hora para se transpôr a amplidão das distancias no sertão.

Tudo arreado, alceado, carregado e disposto para a marcha, reenceta a caravana a jornada, visando além, nas dobras de uma lombada de morro, a muitas leguas do ponto da precedente pousada ao relento, novo descampado, menos exposto á rijeza das frias nortadas, e conveniente ao descanço dos fatigados ginetes, de cujas ventas sahem continuos e humidos resfôlegos para o ar morno e quieto, denunciadores de grande cansaço.

Ahi, deitados por cima dos macios baixeiros[3] e couros extendidos na relva, repousam ligeiramente os da tropa, emquanto ao lado crepitam os tições de um fogo para o preparo da matutina refeição, frugal e nutritiva, com o soccorro da qual o estomago daquelles fortes sertanejos vae aguentar a penuria de alimento durante a longa marcha do dia seguinte.


Ao longo do baixo esteiro fluvial vê-se a agua rispidamente aljofarada pela força da quilha do vapor, que vem arfando, com o ronco cavernoso de seus pulmões de aço, atravez do denso nevoeiro que cobre o grande rio mineiro de origem.

De quinzena em quinzena, pequenos navios mercantes ancoram nos commodos portos das importantes e bellas cidades norte-mineiras de Januaria e S. Francisco, e de outros logares, como S. Romão, Manga, Pindahybas, ao sul, e Jacaré, Manga do Amador, que são estações fluviaes ao norte de Januaria, já na parte mineira confinante com o municipio bahiano de Carinhanha.

E essa carreira de franca navegação intero-fluvial, é feita por optimos e modernos vapores, que trazem áquella região a promessa risonha do estreitamento crescente das complexas relações commerciaes, economicas e amistosas, que ligam os centros populosos e de maior vida activa do septentrião de Minas Geraes, ao torrão generoso e bravo, onde se feriram as campanhas patrioticas de Pirajá, e de tantos outros reductos de glorias para a historia nacional, nos tempos heroicos e calamitosos da independencia da Patria.

Oxalà que não tardios venham os tempos do mais completo progresso para essa larga faixa do territorio brazileiro, que abrange riquissimo pedaço de Minas e uma das mais opulentas zonas da Bahia—a velha metropole da civilisação em Santa Cruz !

Lá, bem longe, em dominios do ultimo municipio mineiro[4] pelas bandas boreaes, correm as apoucadas aguas do rio Verde Pequeno, banhando os districtos de Lenções e Cachoeirinha, pelos quaes se limita este Estado com a comarca de Monte Alto, no solo natal de Cayrú e de Rio Branco...

Augmente, pois, é se avigore com a mutua estima e lealdade de tracto, essa ligação natural, que transmitte, atravez da corrente inevitavel das relações inter-estadoaes dos dous povos irmãos, os seus habitos e tendencias communs, as suas crenças e praticas ethnologicamente radicadas.

1894.


  1. O giqui é um balaio de fórma funicular, tecido com taquara e que se deita á agua com uma bóia, ou preso á margem do rio por uma corda, afim de pegar pequenos peixes.
  2. Pimenta malagueta secca ao sol, depois de bem madura, e reduzida a pó, para ser melhor conservada.
  3. O baixeiro é a manta inferior, de algodão grosseiramente tecida, que se põe no dorso peltudo dos animaes de montaria, sob o sellim.
  4. E' o municipio de Boa Vista do Tremedal.— Tirando-se uma linha curva de N. O. para S. E., acompanhando as ligações e aspecto naturaes do solo mineiro, vê-se que o territorio dos actuaes municipios do Rio Pardo, Santo Antonio de Salinas, Arassuahy (antigo Calháu) e Philadelphia (hoje baptisada cora o nome illustre de Theophilo Ottoni), defronta justamente com as circumscripções municipaes do Caeteté, Santo Antonio da Barra, Victoria da Conquista, Condeúba, Belmonte, Villa Verde e Caravellas, que pertencem ao prospero Estado da Bahia.
 

Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.


 
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.