Poesias (Bernardo Guimarães, 1865)/Prólogo
Conta-se que Camões, tendo naufragado em uma praia das Indias, salvára a nado os seus Lusiadas, trazendo-os em uma das mãos em cima das ondas.
Essa tradição é bem difficil de acreditar-se, mas não é impossivel.
Aquelle rude soldado, affeito a affrontar os perigos e fadigas da guerra, e as privações da pobreza, inspirado pelo genio, e alentado pelo amor e pelo patriotismo, era capaz de tamanho esforço e denodo.
A gloria lhe mostrava além um vislumbrante futuro, que trazia seu nome até nossos dias, rivalisando com os de Homero e Virgilio, de Tasso e Milton; e o nobre e infortunado amante de Catharina de Athaide, morrendo em um hospital, podia ouvir em seu leito de morte, entre os soluços do pobre Jáo, os rumores da posteridade repetindo seu nome, e entoando seus cantos immortaes.
Com esta tirada não pensem os leitores que pretendo nem de longe comparar-me com o divino cantor dos Lusiadas...
Eu não arriscaria nem um fio de cabello de minha cabeça, — a não ser algum d’esses que começão a branquejar-me, — para salvar esse pot-pourri que ahi vai, nem das chammas, nem das ondas, nem mesmo das traças e dos ratos, nem de outros mil perigos a que estão sujeitos todos os papeis d’este mundo.
Principalmente na época que atravessamos o papel está sujeito a toda sorte de avarias.
Cumpre que renasça o tempo dos pergaminhos, que erão mais duros e compactos, emquanto não se inventa um papel impermeavel, e uma tinta indelevel.
Entretanto, apezar de não ser eu nenhum Camões, nem meus versos nenhuns Lusiadas, não foi comtudo para mim pouco ardua a tarefa de colleccionar a trochemoche, e salvar essas poucas producções que hoje offereço ao publico, fructos de quadras mui differentes de mais de quinze annos de vida errante, inquieta e agitada...
— Pois devéras!.. perguntará o leitor com toda a razão, em perto de 20 annos de trabalhos poeticos apenas nos apresentais esse misero punhado de poesias mal ataviadas, incompletas e incorrectas?.... Sois muito tardo em produzir!...
Para responder-vos, amigo leitor, me é preciso estender-me mais algum pouco, bem a meu pezar.
Deveis saber primeiramente que a minha vida não tem sido, nem podia ser inteiramente consagrada ao culto das musas. Prouvera a Deos que o fosse!..
A cultura das lettras e da poesia não estando por ora assaz vulgarisada entre nós, não póde constituir uma profissão, um meio de viver ao abrigo das necessidades, segundo as exigencias da época e do paiz em que vivemos.
Portanto... a conclusão é clara.
Demais, amigo leitor, minha vida, posto que não ociosa, tem sido inquieta e errante, meu destino incerto, e vagas minhas aspirações.
Ora tudo isto não é muito consentaneo com a indole do poeta, do verdadeiro adorador das musas, — se bem que eu, ainda que indigno d’ellas, não consinto que ninguem me lance a barra adiante no ardor do culto e veneração que lhes consagro.
— Mas Camões, mas Byron, mas Châteaubriand, Tasso, não têm tido a vida triste, errante, inquieta?!... E entretanto que de obras esplendidas não nos legárão!......
— Por piedade; não me acabrunheis com o peso de tão gloriosos nomes!
A isso, amigo leitor, para não desculpar-me com a minha insufficiencia, pois que a modestia não é hoje de bom tom, e seria parvoice de minha parte não me inculcar por um genio, — a isso sómente responderei: — Outros tempos, outros costumes, outros paizes, outras condições, e mil cousas outras, que seria longo enumerar.
Espero que o leitor não me fará mais perguntas embaraçosas, e portanto tratemos de concluir quanto antes este prologo, que já vai longo.
Vou pois explicar a razão por que não tenho amontoado volumes sobre volumes, posto que tenha rabiscado muito papel.
Em primeiro lugar entendo que nem tudo quanto se escreve merece as honras de ser editado em livro.
Em segundo lugar o pouco que tenho escripto existe disperso e solto, como as escripturas da sybilla, ao capricho dos ventos revoando.
Ora é o esboço de um drama, que lá fica nas gavetas sem chave do estudante de S. Paulo.
Ora são folhas soltas de um ensaio de romance, que o vento, entrando pelas janellas abertas, entorna pelo páteo, e as faz rebolcar-se na lama.
Ora é uma ode esquecida entre as paginas de um livro.
Ora um madrigal, que foi para a fonte ensaboar-se com a roupa.
Ora são artigos de periodicos, litterarios, que se imprimem depois de muitas fadigas e despezas, e depois se distribuem alguns raros exemplares, indo o resto para as tavernas servir de embrulho.
Ora são folhetins n’este ou n’aquelle genero; e todos sabem que o folhetim é por sua natureza ephemero.
Ora é um folheto, que se imprime com muita difficuldade, e do qual se tirão apenas algumas centenas de exemplares, e se esvaecem como um vapor por esse espaço immenso.
Ora é uma composição ligeira, que se confia a um amigo, e que este, tão descuidoso como o autor, vai passando de mão em mão, até que se he perde o rasto.
Ora é um drama, que se confia a um theatro com toda a fé e esperança, e que fica enterrado na poeira dos archivos, sem que se lhe tenha lido uma só palavra, — fossil que algum dia talvez os geologos desenterraráõ.
E por estes e varios outros modos o autor tem perdido não pequena porção de seus manuscriptos.
Já se vê que se não salvei a nado as minhas poesias, não sou menos heróe do que Camões, fazendo-as escapar de todos esses naufragios e perdições de toda sorte. Se o publico e mesmo a posteridade me não ler, não será portanto por minha culpa.
Felizmente a publicação da presente collecção está agora confiada á casa do Sr. Garnier, que tantos serviços tem prestado á litteratura brasileira, editando nitidamente em Paris os escriptos de nossos autores mais notaveis, quer poetas, quer prosadores. E’ uma garantia de que estas producções, que agora o autor entrega á publicidade, ficaráõ para sempre a salvo de tantos naufragios e perdições.
O autor agradecendo ao publico e á imprensa da côrte e das provincias as palavras lisonjeiras com que até aqui tem acolhido as folhas esparsas de suas poesias, compromette-se a ir fazendo esforços para salvar mais algumas e compôr novas.