Poesias posthumas do Dr. Aureliano José Lessa/O poeta
Elle é o sacerdote do Universo
Que o livro d’alma e coração folhêa,
Onde o mysterio habita:
Canta amôr e virtude em doce verso,
E de piedosas lágrimas prantêa
Uma existencia afflicta.
Su’alma é como a flôr que o sol desbrocha,
Exhala cantos, como a flôr perfumes,
Como o sol resplendores;
E qual vulcão nas visceras da rocha,
Ruge seu coração, vibra em cardumes
Relampagos, clamôres.
Quando elle scisma, ondeam-lhe no aspecto
Os echos do profundo pensamento
Desfeito em mil imagens;
E a mente alçando-se ao ceruleo tecto,
Penetra de Adonai o aposento
Lá do espaço nas margens.
Elle passa gemendo entre os humanos
Qual triste mocho, que piando passa
Nas salas do festim;
A elle a noite, e os aquilões vesanos,
Aos outros, de prazer em flórea taça
Embriaguez sem fim.
Oh! deixai que o poeta em paz deplore
Na solidão seu fado, e se lastime
Da poesia nos braços;
Deixai que o proprio coração devore
Onde o fogo do céo caindo, imprime
Incendiados traços.
Nos caminhos da vida elle sentado
Em ferreo marco, vê passar ruïdosa
A caravana dos vivos;
Ao ouvil-o estaca o viajor cançado,
E expande o sonho da feição rugosa
Da lyra aos sons altivos.
E’ que essa lyra canta uma esperança,
Primogenita alegre da desgraça,
Que conduz pela mão;
Que a conduz ao porvir, que sempre avança
Qual fugaz nuvem, té que se desfaça,
Nuvem, e illusão.
De crépe o vate a doce lyra cobre
Se mais um crime a Divindade affronta
Ensanguentando a historia:
Elle abençôa o obolo do pobre,
Mostra a cruz á virtude, e além aponta
Um hemispherio á glória.
Porque ri co’a virtude, e porque chora
Sôbre alheio soffrer, e sôbre sceptros
Que ha pouco eram alfanges.
Sabe que é glória vã a que se escora
Em ossos nús;— são seu cortejo espectros,
Seu pedestal phalanges.
Elle ama o sol— da Providencia imagem,
Ama o oceano—imagem do infinito,
E a noite, irmã da morte;
Ouve um perfume no espirar da aragem,
E dos trovões no rabido conflicto
Ouve a voz de Deus, forte.
Cada existencia canta-lhe uma nota
Repassada de mystica harmonia,
Alegre ou melancolica;
Musica mysteriosa ao vulgo ignota,
Como a que matinal além nos guia,
Como de harpa colica.
Entretanto seu fado é bem medonho,
O abysmo de su’alma não tem fundo,
Mesmo aos olhares seus:
O mundo para elle é como um sonho,
Elle crêa em seu cáhos um outro mundo,
Que povôa de Deus.
E’ que a fonte da vida um Deus sómente
Póde lavar-lhe a sêde do infinito
Que su’alma devora;
Su’alma é como a lampada pendente
No altar, ou como a myrrha em sacro rito,
Que ardendo se evapora.
Cumpre, ó vate, cantando, o teu degrêdo;
E um hymno sólta em teus finaes momentos
Do mundo entre os baldões;
Qual bellico cantor que exhala quêdo
Na mavorcia tuba os ultimos alentos
Ao troar dos canhões.