Reflexões sobre a Vaidade dos Homens (1980)/XVI
Todos fazem vaidade de ter malícia; nem há quem diga, que a não tem, antes é defeito, que reconhecemos com gosto, e confessamos sem repugnância; a razão é porque a malícia consiste em penetração, por isso não nos defendemos de um defeito, que indica o termos entendimento. A vaidade faz, que não há cousa, que não sacrifiquemos ao desejo de parecer entendidos, ainda que seja à custa de um vício, ou de uma culpa. Quando nos queremos dar por uma bondade sem exemplo, dizemos, que não temos malícia alguma; porém este pensamento não dura muito em nós; porque a vaidade nos obriga a querermos antes parecer maus com entendimento, do que bons sem ele; verdadeiramente a falta de malícia é falta de entendimento; porque malícia propriamente é aquela inteligência, ou acto, que prevê o mal, ou o medita; por isso é diferente o ter malícia, e o ser malicioso: tem malícia quem descobre o mal para o evitar; é malicioso quem o antevê para o exercer; a malícia é uma espécie de arte natural, que se compõe de combinações, e consequências, e neste sentido a malícia é uma virtude política. As mais das cousas têm muitos modos, em que podem ser consideradas; por isso, a mesma cousa pode ser pequena, e grande; pode ser má, e também boa; pode ser injusta, e justa; a vaidade porém sempre se apropria o modo, ou o sentido, em que a cousa em nós fica sendo superior, e admirável.