Relatório da comissão mista brasileiro-peruana de reconhecimento do Alto Purus/A Viagem
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Cumprindo o expresso nestas instruções, as comissões de reconhecimento, reunidas na cidade de Manaus, depois de verificados os seus títulos, compararam os seus cronômetros, como se vê das atas anexas; e prolongaram a sua estadia até ao dia 5 de Abril, em que a Comissão Mista de Reconhecimento do Alto Purus seguiu em demanda do seu destino. Esta demora obrigatória foi ocasionada pela das Instruções, recebidas poucos dias antes da partida; de sorte que o tempo despendido em Manaus nos desalentava, tornando problemático o chegarmos ao termo da viagem de que nos encarregáramos, sobre aumentar grandemente as suas dificuldades, porque a vazante começava naquela quadra e as facilidades da navegação a vapor diminuiam ao mesmo passo que aumentavam as distâncias que deveríamos transpor em canoas num rio de tão dilatado curso.
Apesar disto, aproveitou-se o tempo em predispor os elementos de mobilização do melhor modo possível — e ambas as comissões, anelando um exato e rápido cumprimento do dever, estiveram prontas ao mesmo tempo para seguirem, conjuntamente, desde que se cumpriram as preliminares das referidas instruções.
Partíamos na quadra mais imprópria, precisamente quando ia cessar a navegação regular para o Alto Purus, subordinada, como se sabe, aos períodos das vazantes e das enchentes que todos os anos se sucedem de Abril e Novembro e de Novembro a Março.
Entretanto a subida até a confluência do Acre se fez com a maior regularidade, ainda que excessivamente morosa.
Reunida toda a comissão mista na confluência do rio Purus, às 7 horas da manhã do dia 9 de Abril, concertaram os dous comissários, peruano e brasileiro, quanto às linhas gerais dos processos que deviam adotar para o início dos trabalhos, o que tudo consta da ata que na ocasião se lavrou:
Deveriam continuar navegando dia e noite, efetuando-se o levantamento hidrográfico somente durante o dia, de modo que as seções percorridas à noite, e que, portanto, não poderiam ser marcadas, se incluiriam no contra-levantamento, que se realizaria na volta.
Esta medida visava, essencialmente, ressarcir o tempo que se perdera e aproveitar uns restos da enchente, que seriam de todo perdidos com as demoras impostas por um trabalho regular.
Estávamos, além disto, ainda nas regiões mais bem conhecidas do Purus e devíamos fazer quanto em nós coubesse para atingirmos os longínquos pontos de suas cabeceiras, que constituiam o objecto essencial da nossa missão. Estes lineamentos gerais modelando os nossos trabalhos futuros seriam, ademais, como realmente o foram, modificados consoante as circunstâncias e uma experiência maior das coisas.
Assim, desde logo, a comissão peruana, a quem uma embarcação única facultava mobilização mais regular, iniciou o levantamento ininterruptamente, dia e noite, no que foi a breve trecho acompanhada pela brasileira, desde que se contratou o reboque do batelão Manoel Urbano pelo vapor Tracuá no dia 13 de Abril, em Boa Vista do Bacury.
Até este ponto a viagem fora extremamente morosa. Melhorou depois, navegando ligadas as duas lanchas brasileiras, por maneira a estabelecer-se maior uniformidade na marcha e verificar-se com maior exação o levantamento contínuo acima referido. Infelizmente o vapor, que rebocava aquele batelão, dando sobre um pau e ficando a pique de um naufrágio, muito contribuiu para maior demora da marcha; de sorte que somente a 5 de Maio, exatamente um mês depois da nossa partida de Manaus, prosseguimos da boca do Acre para as cabeceiras.
Ali aproveitando uma parada de três dias, de 2 a 5 de Maio, se fizeram pela primeira vez, os regulamentos dos cronômetros, assim como as primeiras observações acerca do regímen e caracteres físicos dos rios. Como estes trabalhos requerem longa demora, acordamos (já que as instruções só exigiam um ligeiro levantamento do Baixo Purus e os motivos expostos nos impunham uma avançada célere) em começar as observações de coordenadas e de outros pormenores somente do Acre para montante. Havia também a causa fundamental de estar bem estudado o trecho que percorremos, além de existirem, mais para cima, pontos de posição bem determinada que permitiriam com mais segurança a definição das marchas cronométricas, sujeitas não só às causas ordinárias de variação como a outras, acidentais, que, certo, ofereceriam as [con]dições especiais em que realizávamos a viagem.
Combinaram-se novos dispositivos, de acordo com a vazante crescente e menor volume do Purus depois da perda do seu maior tributário — ficando estabelecido que só viajássemos durante o dia, dados os perigos da subida, à noite, em virtude dos paus que começavam a repontar em maior número à flor das águas. Ao mesmo tempo convencionou-se um código de sinais de modo que os dous elementos da comissão se correspondessem facilmente, consoante as circunstâncias. E a viagem prosseguiu sem incidente digno de nota, adstrita às paradas obrigatórias para compra de lenha, e aos resguardos, cada vez maiores, no sentido de se evitarem os choques perigosíssimos dos paus que, num crescendo, iam aparecendo em vários pontos nos canais.
A fim de uniformizar melhor a navegação e, conseqüentemente, o levantamento que se operava, dependente em parte da regularidade da marcha, ligaram-se as duas lanchas, Cahuapanas e n. 4, acompanhando-as a Cunha Gomes com o batelão rebocado.
Depois da embocadura do Iaco, que foi alcançada a 11 de Maio, em cujas cercanias encontramos o "Neptuno" (o último vapor que conseguira descer livrando-se da vazante excessiva do rio) e singradura tornou-se irregularíssima, impondo constantes sondagens e paradas, em virtude não somente dos paus, que avultavam, numerosíssimos, desde Novo Destino, como também nos baixios de argila vermelha endurecida, que com os nomes locais de "torrões" e "salões" iam continuamente tornando mais duvidosa a travessia. Em Terruan e Catiana a "Cunha Gomes" imolilizou-se encalhada nesses bancos.
Prevíamos o fim da navegação na foz do Chandless, de onde não poderiam avantajar-se as nossas embarcações, pois os seus calados cada vez mais se impropriavam à escassez das águas. Mas precisamente no dia em que deviamos alcançá-la, quando nos achávamos pela manhã de 21 de maio na volta de S. Brás, um acidente desastroso modificou todo o curso da viagem. A passagem ali, a exemplo de outras que já se tinham transposto, oferecia a alternativa do encalhe ou do naufrágio — quer procurássemos a convexidade da praia, onde derivava a corrente, rasa, sobre as areias, quer navegássemos pela parte côncava, da barranca, onde a vantagem de uma maior profundidade se anulava completamente ante numerosos madeiros de pontas ameaçadoras que dificilmente poderiam ser evitadas.
Preferia-se, naturalmente, o último caso, em que pese aos perigos. Foi o que realizaram a Cahuapanas e a n. 4, atravessando, incólumes, o trecho perigoso, mas sem se forrarem ao encalhe (às 7h50min AM), na curvatura extrema da volta — de onde escaparam depois de algumas manobras.
A Cunha Gomes rebocando pesado batelão, vinha ligeiramente atrasada; de sorte que ainda lutavam, aquelas, por se livrarem do baixio em que se tinham imobilizado, quando a última, às 9 horas, apareceu e penetrou pela passagem única do canal, onde a violência da corrente e os paus submersos, ou repontando salteadamente, tornavam tão precária a navegação. Apesar disto atravessou-o sem incidente. Ao montar a volta da praia, porém, como — apesar de uma sondagem preliminar — encalhasse ligeiramente num baixio, deu atrás a fim de safar-se, o que conseguiu sem dificuldades. Mas sendo a corrente muito impetuosa a lancha, logo depois de retroceder, devia seguir avante, vencendo prontamente as águas, de modo que ela e seu pesado reboque não fossem sobre os paus ainda próximos. Não se conseguiu isto, falhando a máquina no momento em que devia agir mais poderosamente; de sorte que a lancha, com o batelão Manoel Urbano a jusante, derivou à feição da corrente indo a breve trecho esbarrar num enorme madeiro de cumarurana, onde o último, onde o último, arrombado, quedou preso, fazendo logo água e afundando num naufrágio irremediável.
Grandemente auxiliada pela tripulação da lancha peruana, Cahuapanas, a comissão brasileira, depois da faina tumultuária, própria de tais ocasiões, conseguiu salvar pouco mais de metade dos gêneros que levava, não havendo nenhum desastre pessoal a lamentar.
Deste modo a comissão mista, imobilizada toda, um dia antes de alcançar a confluência do Chandless — porque a Cahuapanas, por sua vez não conseguira desencalhar teve que se reorganizar e ao mesmo passo traçar novos dispositivos que lhe favorecessem a missão.
Assim se reduziu a brasileira, numerosa demais para recursos que repentinamente diminuiram de metade.
As medidas combinadas foram prontas: a brasileira apenas formada pelo comissário, o auxiliar técnico, o médico, o subalterno da força, 11 soldados e trabalhadores, prosseguiu no dia seguinte, 22, para o Chandless, onde a alcançou, a 23, a peruana, que se não modificou, diminuida apenas da tripulação da Cahuapanas.
Ficara em S. Brás o resto do pessoal da primeira, sob a direção do ajudante substituto.
Reunidos no dia 25 de Maio na boca do Chandless, combinaram as comissões acerca das medidas que a situação exigia, e entre estas a de uma comunicação circunstanciada aos governos peruano e brasileiro, apresentando-lhes o quadro real das dificuldades que se lhes antolhavam e que pelo seu caráter imprevisto talvez justificassem ou originassem novas instruções.
Era uma medida indispensável. As notícias do estado do rio, a montante, chegavam desanimadoras. O Purus grandemente esgotado impropriara-se à navegação. Tinham parado, poucas milhas adiante, em abarracamentos provisórios, as Comissões Mistas administrativas peruano-brasileiras. Três vapores — o Santos Dumont, a Fênix e o Cassianã — jaziam não muito afastados, presos pelas areias. Diariamente desciam em canoas e em montarias, para Manaus, os seus tripulantes ou passageiros, e o que deles se colhia, sem variantes, era a mesma certeza do regímen desfavorável das águas.
Tudo isto justificava uma comunicação urgente, de que foi encarregado o subalterno da força brasileira, que no dia 26 de Maio desceu para Manaus, levando também a incumbênciade adquirir novos gêneros para a comissão respectiva.
Entretanto, feita a comunicação meramente preventiva, não cogitamos em parar ali ou voltar — mas sim no avançar quanto antes, organizando-se em canoas e pequenos batelões a flotilha de subida.
Não nos aludíamos quanto às dificuldades que nos aguardavam.
Aparentemente, à simples inspeção de um mapa, já havíamos avançado muito. Estávamos cerca de 1.500 milhas itinerárias da foz, ou sejam, aproximadamente, três quartos de todo o Purus já percorrido.
Restavam-nos no rumo médio de sudoeste apenas pouco mais de 2˚ em longitude e menos de 2˚ em latitude, numa distância itinerária inferior a 450 milhas. Mas o novo meio de transporte, imposto pleos acontecimentos, ligado ao estado do rio, tornava de todo e em todo ilusória esta aparente aproximação do nosso objetivo, que devíamos, demais, atingir ao arrepio da corrente.
De fato, argumentando com a velocidade média de 5 milhas diárias, e não era pequena dada a natureza dos nossos trabalhos que seriam maiores à medida que nos internássemos, concluimos que somente em 90 dias de navegação esforçada chegaríamos às nascentes.
Assim nos dispusemos para esta viagem dilatada, deixando a confluência do Chandless no dia 30 de Maio, ao meio-dia, com uma marcha de todo contraposta ao dilatado do nosso rumo: no dia 30, 3200 metros (1 milha, 7); no dia 31, 8200 metros (4 milhas, 40); a 1 de Junho, 9992 metros (5 milhas, 3).
Esta morosidade era sobretudo oriunda do processo que adotáramos para o levantamento hidrográfico, em que os rumos tomados com a bússola se ligavam às distâncias indiretamente conseguidas com a luneta de Lugeol — o que nos impunha paradas obrigatórias em todas as inflexões. O persistirmos no sistema acarretaria a extinção dos gêneros que levávamos, muito antes do nosso objetivo. Modificamo-lo, substituindo as medidas indiretas da luneta pelas que obtínhamos, avaliando as velocidades das canoas, por meio de repetidas bases medidas diretamente ao longo das praias mais afeiçoadas a esta operação. E graças a esta deliberação a nossa marcha aumentou, progredindo numa aceleração crescente até às cabeceiras.
No dia 2 de Junho, a uma hora da tarde, chegávamos ao acampamento do Refúgio, onde acampara a comissão administrativa, peruana, dirigida pelo Sr. Coronel Manoel Bedoya, imbilizada pelo encalhe da lancha Fênix que a transportara; e no dia seguinte, à noite (depois de um rápido avançamento, passando pelos barracões de Triunfo Velho, Porto Mamoriá, Cassianá e Triunfo) a Novo Lugar, onde, pelos mesmos motivos, estacionara provisoriamente a comissão administrativa brasileira, dirigida pelo Sr. capitão-tenente Borges Leitão, depois do encalhe do Santos Dumont, em que viera de Manaus.
Normalizara-se a nossa viagem e firmara-se de vez o rude regímen que nos impuséramos para cumprir a nossa missão: as jornadas iniciadas invariavelmente ao primeiro alvorecer, só se encerravam, feitas duas pequenas escalas para as refeições, quase à boca da noite.
Acampados geralmente uns ao lado de outros, na mesma praia, peruanos e brasileiros estimulavam-se deste modo pelo exemplo recíproco, numa emulação que nunca degenerou em discórdia e só trazia como conseqüências uma rapidez excepcional, que nunca prevíramos. De fato, ao cabo de alguns dias decampava-se desde que o primeiro alvor da ante-manhã permitia a leitura da bússola e avançava-se até a noite. Ao mesmo tempo, de pronto adestradas no manejo dos varejões, as tripulações das canoas porfiavam numa sulcada que dia a dia lhes exigia maiores cuidados e maiores esforços, pelos perigos crescentes dos abatises submersos e extensos bancos de areias exigindo, não raro, o arrastamento, a pulso, das canoas. A estes estímulos mútuos, que nunca diminuíram, devemos a rapidez da nossa viagem, sem embargo das escalas obrigatórias que a natureza dos trabalhos nos impunha. A primeira foi em Novo Lugar, de onde a comissão brasileira só decampou a 7 de Junho pela manhã (demorada pela necessidade de transportar 30 volumes que tinha a bordo da Fênix), precedendo de dous dias a peruana, que partira a 5 e seguira vagarosamente a fim de aguardá-la em caminho.
Em Novo Lugar estava emergente a epidemia de beribéri, que tantos estragos fez, depois, naquele posto, e esta circunstância engravecida pela moléstia do médico da comissão administrativa, falecido poucos dias depois, fez que o comissário brasileiro atendesse ao pedido que lhe fez oficialmente, o Sr. comandante Borges Leitão, para que ali ficasse o médico da brasileira. As comissões reunidas novamente a 9, além do sítio do Funil, prosseguiram até Sobral, onde chegaram no dia 11, depois de terem passado a 7 pelo sítio do Cruzeiro, a 8 pelo barracão Hosana, posto peruano abandonado, e a 9 pelo impropriamente denominado Furo do Juruá, igarapé de onde se passa por um varadouro para o Jurupari, afluente do Tarauacá.
Passado o sítio de Sobral, último barracão brasileiro do Alto Purus — agravaram-se as dificuldades da navegação, sucedendo-se, mais numerosos, os choques nos paus e encalhes nos bancos ou ou salões. No dia 13, a duas horas de canoa de Sobral, chegamos a Muronal, primeira barraca peruana do Alto Purus.
Felizmente nenhum caso sério de enfermidade aparecera até então nos dous acampamentos, enrijadas as tripulações pelo próprio regímen severo a que se submetiam, e também pela sensível melhora do clima a despeito de repentinas variações de temperatura, sucedendo-se aos dias ardentíssimos as noites enregeladas e úmidas, nas quais, às vezes, se tornavam penosíssimas as observações, sem embargo da serenidade dos céus.
Assim no dia 14 de Junho tivemos de acampar às 3 horas, violando o programa preestabelecido. A manhã rompera fria depois de chuva torrencial que despertara, à noite, os dous acampamentos, arrancando-lhes as barracas em fortíssimas lufadas, e contra o que era de esperar-se a temperatura, ao em vez de subir, começou a descer pelo correr do dia. Marcando 24˚ às 9 horas da manhã, indicava o termômetro 21˚5 às 11 horas e 21˚ às 2 da tarde, continuando nesta descenção até a noite, em que deve ter caído consideravelmente, porque reatamos a marcha, na manhã de 15, às 6 e 20 minutos, com a temperatura absolutamente anômala em tal latitude, de 13º,8 C.
Passamos a 16 de Junho pelo sítios abandonados por peruanos, de União e Fortaleza, chegando no dia 17 a 1 hora da tarde, a outro "tambo" de caucheiros peruanos, Santa Rosa, na confluência do rio que se indica na carta de William Chandless sob a denominação de Curynahá.
Prosseguimos no mesmo dia.
Entre Santa Rosa e Cataí, a região é aparentemente deserta: só caucheiros trabalham internados na mata. Nada revela antigas barracas ou postos. Atravessamo-la em pouco mais de quatro dias, reunindo-nos a 22 de Junho em Cataí, sede das Comissões Fiscais administrativas peruano-brasileiras.
Falhando naquela escala o dia 23, prosseguimos a 24, chegando no dia 25 pelas 10 horas da manhã ao sítio de San Juan, habitado por índios piros e peruanos loretanos que se dedicam à extração do caucho. Em todos estes trechos os encalhes e súbitas esbarradas nos paus já se tinham tornado coisas triviais, sem causarem os alarmes ou contrariedades do princípio.
A 25 a comissão brasileira ficou reduzida a 9 pessoas apenas, inclusive o comissário e o engenheiro auxiliar, tendo sido remetidos presos para Cataí 5 soldados, que se revelaram pouco obedientes às ordens que lhes foram dadas. Entretanto este desfalque de pessoal, que reduziu aquela comissão a 9 homens, não alterou sensivelmente a marcha, que prosseguiu na ordem primitiva até a chegada em Curanja, no dia 28 de Junho à tarde. Curanja é o Curumaha, de W. Chandless.
Demoramo-nos 5 dias nesta escala obrigatória, onde pela primeira vez depois do naufrágio, se compararam os cronômetros das duas frações das comissões, efetuando-se as observações indispensáveis. Ali se confirmaram, mercê de informes plenamente fidedignos, as previsões que fizéramos em Manaus quanto à impropriedade da quadra em que havíamos partido, e outros empeços perturbadores. Era muito tarde, porém, para recuar; e uniformes no mesmo pensamento, resolvemos prosseguir na subida, o que se realizou no dia 6 de Julho.
Mas contra o que esperávamos, as dificuldades naturais não aumentaram muito, tornando-se mesmo pouco sensível a enorme redução das águas do Purus, depois da perda de um tributário do porte do Curanja. De sorte que a nossa viagem se manteve com a celeridade primitiva, como se verifica à simples consideração das escalas que fomos percorrendo: a 10 de Julho, pela manhã, passamos em Santa Cruz; a 11 em Cocama; a 13, em Independência; a 14, por Chambuiaco; a 15, pelo povoado campa de Tingoleales; a 16, por um outro, Kaki; a 17, pelo posto denominado Ordem; chegando finalmente a 18 na Forquilha do Purus; onde se erige o sítio Alerta, o mais avantajado posto de todo o rio na direção do sul.
Ai nos quedamos até o dia 23 de Julho, principalmente para se efetuarem as observações indispensáveis ao novo regulamento dos cronômetros, aproveitando-se a situação, que é de coordenadas definidas. E embora palpássemos, por assim dizer, as sérias dificuldades da subida (gravíssimas sobretudo para a Comissão Brasileira, cujos gêneros eram demasiado escassos, não havendo na localidade como supri-los), resolvemos afetuá-la, seguindo no dia 24 para as cabeceiras, pelo rio Cujar.
Compreendem-se as dificuldades que tivemos a vencer, neste avançar por um dos últimos galhos do grande rio, precisamente na quadra do seu máximo esgotamento; e se considerarmos além disto que ele, em virtude do caráter geognóstico do terreno, é como uma corredeira unica, tão numerosos e sucessivos são os pequenos rápidos que o perturbam, avaliam-se bem todos os esforços despendidos até ao dia 30, ao anoitecer, em que se reuniu a comissão mista na confluência do Cavaljane, na última das divisões dicotômicas tão características do Purus (Vide a planta anexa.)
Estávamos, finalmente, no ponto do grande rio de onde avançaríamos para lugares nunca científicamente explorados. De fato William Chandless, com a sua prodigiosa tenacidade, chegara até ali; mas no prosseguir tomara rumo diverso daquele que deveríamos seguir. Avançara pelo ramo extremo do norte, do qual apenas percorreu mui poucas milhas, ao passo que nós prosseguiríamos pelo que investe francamente com o sul. Esta circunstância não pouco contribuiu para que nos refizéssemos de alentos. Tratava-se, realmente, de longo trecho do Purus, por certo bem conhecido de todos os caucheiros daquelas bandas, mas não apresentado ainda à ciência geográfica, como o revela a mesma circunstância de termos deparado ali o primeiro, e talvez o único erro do ilustre Chandless no traçar o Cavaljane com o rumo de todo falso de leste para oeste.
O estado do pequeno tributário, porém, extremamente esgotado, exigiu outros dispositivos à sulcada. Assim a comissão peruana se aparelhou com as pequenas ubás do correio de Iquitos, que lá encontráramos, o que lhe permitiu ceder à brasileira uma de suas antigas ubás, muito mais afeiçoada à subida que as pesadas canoas de itaúba em que aquela navegara. Mas apesar destes resguardos a viagem se fez com extraordinárias fadigas. Salvante bem poucos trechos, nos poços que salpitam o rio, pode-se afirmar que as embarcações foram levadas a pulso, em um moroso arrastamento sobre as areias até a confluência do Pucani, o ramo mais meridional do Purus. Mas para isto, em muitos pontos tivemos de substituir os remos e varejões pelas alavancas, sendo as embarcações lentamente empurradas pelo rio acima, nos longos trechos esgotados.
Deste modo a distância itinerária percorrida no Cavaljane, de pouco mais de 20 quilômetros, exigiu três dias e meio (de 31 de Julho a 3 de Agosto), o que corresponde a cerca de três milhas diárias.
Chegados no dia 3 de agosto à confluência do Pucani, que certamente define a mais meridional de todas as nascentes do Purus, não nos demoramos em realizar o reconhecimento do "varadouro". Efetuamo-lo facilmente nos dias 3 e 4,15 e voltamos logo, com a rapidez imposta pela escassez crescente de víveres, para a Forquilha, onde, reunidas outra vez no dia 10 de agosto, as duas frações das comissões concertaram quanto à execução da última parte do seu objetivo — a subida do Curiúja.
A vazante deste rio, porém, ia na sua fase mais intensa, e dificilmente poderia admitir-se que os integrassem outras embarcações, além das ubás apropriadas ás suas aguas rasas. A exemplo do que acontecera antes da nossa subida no rio Cujar, todas as opiniões firmavam de modo concludente a impossibilidade da subida — e vimos para logo, diante do progresso da vazante, que não poderíamos contrariá-las vitoriosamente, como o havíamos feito na sulcada anterior. Estavam, além disto, francamente esgotados os víveres da comissão brasileira, que na localidade só pôde refazê-las com as iúcas (mandiocas), de duração limitada e impróprias como alimentação exclusiva.
Apesar disto foi tentado o último esforço, partindo a comissão mista para o último e pequeno trecho que lhe restava conhecer, no dia 14 de Agosto pela manhã. A braços com o sério problema da alimentação do seu pessoal, mui escassamente garantida para cinco dias, no máximo, o comissário brasileiro levava o intento de uma avançada célere capaz de lhe permitir, em tão estreito prazo, a subida e a descida. Era a solução única à dolorosa e irremediável conjuntura em que se achava.
Ela, porém, só se verificaria na hipótese de uma navegação franca ao Curiúja, que absolutamente não podia existir naquela quadra. O rio esgotado e intermitentemente repartido em extensos baixios, quase ganglionado, às vezes, pelos bancos que se avantajavam dominando-lhe o leito e apertando-o em estreitos canais acompanhando-lhe as barrancas, patenteava para logo dificuldades de que irrompiam duas conseqüências deploráveis: o esgotamento das últimas energias de um pessoal longamente sacrificado e a morosidade obrigatória de uma viagem que devia ser rápida para que se garantisse a própria vida dos que a realizavam.
Ora, desde as primeiras horas do primeiro dia de viagem verificou-se impossível a celeridade indispensável e a Comissão Brasileira voltou, sendo-lhe materialmente impossível continuar uma viagem que na hipótese mais favorável duraria no mínimo dez dias, o dobro, portanto, do tempo que os seus recursos facultavam.
Tendo a comissão peruana formado o seu depósito de víveres em Curanja, dispunha somente dos necessários para chegar ao varadouro, e a fundada presunção de perder parte deles em uma navegação perigosa, não lhe permitiu oferecê-los a seus colegas. Assim impossibilitada, a comissão brasileira contramarchou e se lavrou a ata respectiva, e como segundo as instruções os trabalhos feitos separadamente careciam de valor oficial, se empreendeu o regresso em rumo para Manaus, continuando-se sempre as observações e o contralevantamento, que deviam comprovar os trabalhos feitos na subida.
Felizmente a parte que ficou sem ser estudada não era grande nem de importância, pois se tratava do varadouro do Curiúja aberto recentemente pelo caucheiro Sr. Sharff, sem resultado prático, porque além das dificuldades que oferece à navegação daquele rio, tem mais o inconveniente de ser o caminho por terra muito acidentado e com tantos obstáculos que bem se pode dizer — está abandonado.
Julgamos necessário explicar o que se chama varadouro. Assim se denominam as veredas ou trechos rapidamente abertos e que tem por objeto passar de um rio para outro em curtíssimo tempo. Às vezes encurtam distâncias, comunicando seções de um mesmo rio. O varadouro deve oferecer a vantagem, pelo menos na região que temos andado, de ter o seu declive suave e plano, de modo que permite ao caucheiro trasladar-se com embarcações e carga. Tal sucede com o do Cujar. O viajante que o atravessa, passa das águas do Ucaiale para as do Purus, e vice-versa, e continua navegando na mesma embarcação que passou por esse istmo. Isto, que ele só com muitas dificuldades praticaria no do Curiúja, faz que este perca por completo toda a sua importância. Abandona-o, preferindo dar uma grande volta para atravessar o do Cujar, que se acha situado mais para o sul.
Felizmente existindo acerca do diminutíssimo trecho a percorrer, as mais seguras e pormenorizadas informações, este contratempo não teve importância apreciável no remate dos nossos trabalhos, volvendo definitivamente a comissão mista para Manaus, onde chegou nos últimos dias de Outubro.
Ai se dedicou aos trabalhos de escritório, enfeixando-se as suas observações nos resultados que vamos sucintamente apresentar.