XII
Junho 1871.
O sr. ministro do reino fez entregar por um empregado de policia ao sr. Zagallo, director do Casino, um papel — reaccionario pela intenção, mas de magogico pela grammatica — em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferencias democraticas.
Conheces já decerto, leitor sensato e honrado, o protesto dos conferentes, a adesão de outros cidadãos, a opinião da imprensa...
E achas certamente na tua consciência que este acto do sr. marquês de Ávila, não tendo de certo modo equidade, não tem de modo algum legalidade; que é sobretudo profundamente inábil; e que o sr. marquês, dando um golpe de Estado contra alguns escritores que no Casino faziam crítica de história e de literatura, foi criar uma atitude política onde só havia um intuito científico.
Homens que numa sala, com senhoras na galeria, movem questões científicas e literárias, numa alta generalização de ideias, são tão inofensivos na política do seu país como um livro de matemática. São motores de pensamento e de estudo, que não vão tocar a rebate no sino das Mercês.
— Mas homens que o Governo obriga a fazer um protesto num café, na agitação de trezentas pessoas; a percorrerem as redacções dos jornais, seguidos de uma multidão indignada; a colocarem-se como defensores da consciência ofendida — esses parecem-se terrivelmente com homens de uma acção política! As conferências desceram assim da sua serenidade filosófica; estão na luta, estão na discussão da Carta, estão na prosa da
Gazeta do Povo!
Vejamos a legalidade do facto. Num país constitucional, tem-se sempre aberta sobre a mesa a Carta Constitucional — ou para descansar nela o charuto, ou para tirar dela um argumento. Diz a Carta no seu artigo 145º:
A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos portugueses.., é garantida pela Constituição do Reino, pela maneira seguinte:
§ 3º Todos podem comunicar o seu pensamento por palavras e escritos, e publicá-los pela imprensa sem dependência de censura, contanto que hajam de responder pelos abusos que cometerem no exercício desse direito.
Temos, pois, adquiridos à certeza dois pontos:
1º Que todo o cidadão pode publicar o seu pensamento falando ou escrevendo;
2º Que o cidadão fica responsável pelo abuso do seu direito.
Por consequência, logo na primeira conferencia:
1º O Sr. Antero de Quental podia falar sobre a religião em toda a liberdade da sua opinião;
2º Se abusasse, o Sr. Antero de Quental respondia pelo abuso.
É lógico. Ora quem torna efectiva a responsabilidade desse abuso?
Em primeiro lugar: O comissário que deve assistir a todas as reuniões públicas, na ideia do decreto com força de lei de 15 de Junho de 1870. «As reuniões públicas (diz este decreto) podem ser dissolvidas pela autoridade... quando por qualquer forma perturbarem a ordem pública. A dissolução da reunião só pode ser intimada à assembleia — depois da autoridade advertir em voz alta os directores da reunião (neste caso, o prelector)». O comissário assistente das conferências, o Sr. Rangel, não intimou, e não advertiu o Sr. Antero de Quental, nem em voz alta, nem com gestos. Talvez o
O sr. ministro do Reino fez entregar por um empregado de polícia ao Sr. Zagalo, director do Casino, um papel — reaccionário pela intenção, mas demagógico pela gramática — em que se notificava que, por ordem superior, estavam fechadas as conferências democráticas. tivesse feito por suspiros — mas esse caso não está na lei. Portanto o sr. comissário não achou, na sua consciência, que o Sr. Antero de Quental abusasse da liberdade de expor o seu pensamento.
Em segundo lugar: O ministério público querelou do Sr. Antero de Quental? Não.
Por consequência nem o comissário presente à conferência, nem o ministério público, encontraram na conferência do Sr. Antero de Quental abuso punível.
As conferências que se seguiram foram, uma sobre crítica literária contemporânea, outra sobre o realismo, como nova expressão da arte, a terceira sobre o ensino e as suas reformas. Em que atacavam estas a religião ou as instituições políticas?
Fazer a crítica da literatura contemporânea é ofender (segundo a linguagem rococó da portaria) o código fundamental da monarquia? Nesse caso pedimos a cabeça do Sr.
Pinheiro Chagas, o crânio do Sr. Júlio Machado, e uma grande porção do Sr. Luciano
Cordeiro! Quem o diria!? Quando se escrever que o Sr. Vidal é um poeta lírico ligeiramente inferior a Lamartine, o trono de Sua Majestade ficará bambaleando um quarto de hora!
Mas vejamos! A última conferência foi feita no dia 19 de Junho; a portaria foi dada no dia 26 do mesmo mês, antes da conferência que ia ser feita. Por consequência o sr. marquês de Ávila fechou, não as conferências que se tinham feito, o que seria um pouco inútil — mas as conferências que se iam fazer.
Ora, segundo o citado artigo da Carta, só se pode coibir a liberdade de pensamento quando houver abuso: e como esse abuso não existia, pelo simples motivo que a conferência ainda não fora feita, e por consequência o pensamento não fora manifestado — segue-se que o sr. ministro do Reino violou a Carta, se esta palavra violar ainda se pode empregar a respeito da Carta, sem atrair sorrisos maliciosos sobre tão insensata metáfora.
Ao ministro cabia unicamente o direito de fazer processar o Sr. Antero de
Quental. Isso era a lógica, o bom senso, a legalidade.
Do que o ministro não tem o mínimo direito é da rude supressão da palavra a prelectores de literatura, de arte e de pedagogia. Fazendo, como fez, tal supressão está fora da lei, fora do espírito do tempo, quase fora da humanidade.
Com direito igual pode amanhã o sr. ministro mandar suprimir As Farpas, os romances do Sr. Camilo Castelo Branco, os volumes de historia do Sr. Alexandre
Herculano, os jornais, a conversação, esta simples pergunta — «Como está? passou bem?» Pode suprimir ainda um sorriso ou um olhar expressivo. Pode fulminar o espirro!
Ora o artigo 103º da Carta diz:
«Os ministros são responsáveis... § 5? Pelo que obrarem contra a liberdade dos cidadãos.»
E o § 28 do artigo 145º acrescenta:
«Todo o cidadão poderá fazer apresentar reclamações, queixas... e ATÉ expor qualquer infracção da constituição, requerendo... a efectiva responsabilidade do infractor.»
Seria portanto possível responder à portaria do sr. marquês de Ávila com o instrumento seguinte:
— «Requeiro à Câmara dos Deputados que torne efectiva a responsabilidade do sr. ministro do Reino, procedendo contra ele como infractor do § 3º do art. 145º da Carta
Constitucional — segundo me é permitido pelo § 28 do citado artigo.»
Tanto em relação ao prelector que abusou da liberdade, segundo a Carta, como para o ministro que infringiu a lei, segundo a mesma Carta, temos até aqui argumentado com a legalidade.
Agora a equidade:
Que se quis fazer calar nas conferências? Foi a crítica política? Para que se deixa então circular no País os livros de Proudhon, de Girardin, de Luís Blanc, de Vacherot?
Foi a crítica religiosa? Para que se consente então que atravessem a fronteira ou a alfândega os livros de Renan, de Strauss, de Salvador, de Michelet?
Sejamos lógicos; fechemos as conferências do Casino onde se ouvem doutrinas livres, mas expulsemos os livros onde se lêem doutrinas livres. Ouvir ou ler dá os mesmos resultados para a inteligência, para a memória, e para a acção: é a mesma entrada para a consciência por duas portas paralelas. Façamos calar o Sr. Antero de
Quental, mas proibamos na alfândega a entrada dos livros de Vítor Hugo, Proudhon,
Langlois, Feuerbach, Quinet, Littré, toda a crítica francesa, todo o pensamento alemão, toda a ideia, toda a história. Dobremos a cabeça sobre a nossa ignorância e sobre a nossa inércia, e deixemo-nos apodrecer, mudos, vis, inertes, na torpeza moral e no tédio.
Nós não queremos também que num país como este, ignorante, desorganizado, se lance através das ambições e das cóleras o grito de revolta! Queremos a revolução preparada na região das ideias e da ciência; espalhada pela influência pacífica de uma opinião esclarecida; realizada pelas concessões sucessivas dos poderes conservadores; — enfim uma revolução pelo Governo, tal como ela se faz lentamente e fecundamente na sociedade inglesa. É assim que queremos a revolução. Detestamos o facho tradicional, o sentimental rebate de sinos; e parece-nos que um tiro é um argumento que penetra o adversário — um tanto de mais!
Seríamos pois nós os primeiros a pedir o encerramento das conferências do
Casino, se a ciência dos conferentes se resumisse a dizer:
— A barricada, meus senhores, é amanhã na Rua da Bitesga! Quanto ao petróleo, está lá em baixo no bilheteiro!
Mas que se faça calar, pondo-lhe a mão na boca, a ciência, a critica literária, a história, contra isso, do fundo deste livro, pequeno mas honrado, em nome do respeito que nós devemos a nós mesmos, e do exemplo que devemos a nossos filhos, protestamos e apelamos, não para a Europa, o que seria sofrivelmente inútil, mas para o próprio sr. marquês de Ávila, para uma coisa que ele deve ter debaixo da sua farda, uma coisa que se não cala, ainda quando em redor a intriga e o interesse fazem um ruído horrível — a consciência!
Pois quê! Podem ler-se nas Bibliotecas e no Grémio, jornais republicanos, jornais da Comuna, toda a sorte de livros materialistas, racionalistas e socialistas — e não há-de ser permitido falar do que há de mais abstracto na política, de mais estranho e superior
às agitações humanas e às violências partidárias, a História?
Pois é permitido à Nação publicar, em prosa impressa e permanente, ataques rancorosos à liberdade constitucional e à realeza constitucional — e não pode ser permitido ao Sr. Antero condenar as monarquias absolutas, e ao Sr. Soromenho condenar os romances eróticos?
Pois o marquês de Pombal expulsa os jesuítas e a sua política, e não é permitido a um conferente do Casino fazer a crítica da política dos jesuítas?
Argumentemos! Eu posso comprar um livro de Proudhon que combate o catolicismo, as monarquias, o capital: estou na legalidade. Posso lê-lo em voz alta aos meus amigos, ou aos meus criados: estou nos limites da Carta. Posso decorá-lo: haverá alguma lei que me proíba este exercício de memória? Posso recitá-lo, à luz do Sol ou à luz do gás, com gestos moderados ou com gestos descompostos: tudo isto é legal. Que eu trate no Casino de algum dos pontos de que se ocupa esse livro, proíbem-mo!
Concordo em que mo proíbam, mas proíbam também aos livreiros a venda de
Proudhon!
Quando se proibiu em França que Renan falasse, obstou-se ao mesmo tempo que
Renan fosse lido.
Antes de haver conferências no Casino havia ali cançonetas. Mulheres decotadas até ao estômago, com os braços nus, a pantorrilla ao léu, a boca avinhada, cantavam, entre toda a sorte de gestos desbragados, um repertório de cantigas impuras, obscenas, imundas! Num verso bestial, a um compasso acanalhado, ridicularizava-se aí o pudor, a família, o trabalho, a virgindade, a dignidade, a honra, Deus! Eram também conferências. Eram as conferências do deboche. E havia muitos alunos!
Pois isso que era a obscenidade, a infâmia, a crápula, parecia ao sr. marquês de
Ávila compatível com a moral do Estado!
As conferências, que eram o estudo, o pensamento, a crítica, a história, a literatura, essas pareceram ao sr. marquês incompatíveis com toda a moral!
Homens refestelados, bebendo conhaque, gritando, apupando desgraçadas criaturas que se deslocam em trejeitos vis para fazer rir — isso é permitido por todas as leis!
Homens que escutam gravemente uma voz que fala de justiça, de moral, de arte, de civilização — isso é proibido com tanta violência que se salta por cima da Carta para o proibir! a isso manda-se um polícia dar duas voltas à chave! Miserere! Miserere!
XIII