Julho 1871.

A Nação, jornal de arqueologia e de piedade, apresentado nestes últimos tempos com um ar de esplêndido triunfo. Os adjectivos dos seus artigos de fundo caminham a marche-marche; os seus advérbios vão desfraldados ao vento; e no mero

êxtase dos seus «pontos de admiração» se sente que ela espera para breve — a restauração. Ora muito bem sabemos a restauração de que, mas totalmente ignoramos a restauração de quem.

A Nação espera a restauração em França com o conde de Chambord — e di-lo claramente. Em Espanha com Carlos VIL — e exulta abundantemente. Depois acrescenta: — e em Portugal com...

Põe pontos de reticência. É respeito? E pudor? Estratégia? Não se sabe.

Evidentemente aqueles pontos de reticência designam alguém. Mas quem? — como se diz nos «vaudevilles».

Querem uns que seja o defunto Herodes; outros o falecido Filipe II; alguns ainda sugerem que seja esse outro ausente do número dos vivos — o honrado Nabucodonosor!

Seja quem for, a Nação espera! A Nação vem cheia de júbilo, desde as suas citações latinas até aos seus anúncios de água circassiana! E a Nação não podendo mandar já preparar-lhe quartos na Ajuda ou em Queluz — prepara-lhe máximas de boa governação!

Eis algumas dessas máximas, colhidas ao acaso entre doces pilhérias de direito divino:

A liberdade de consciência é uma palavra boa para enganar os tolos, que nada significa a não ser um grande contra-senso.

Ora este modo de pensar pode dar lugar a interpretações aflitivas. Suponhamos a restauração feita, a Nação triunfante, agora, em Junho, em que um frio traiçoeiro nos surpreende à tarde, ao desembocar das ruas. Um cidadão, recenseado e eleitor, caminha no Rossio, e diz gravemente, com aquele ar meditado que toma a burguesia nas graves questões da vida:

— Diabo, está frio!

Acode subitamente um polícia legitimista, gritando:

— Perdão! o cavalheiro não tem direito a dizer essa irreverência!

Surpresa do cidadão. E o polícia mostra-lhe o repertório oficial, onde se lê:

— 12 de Junho... calma.

E o polícia terá razão! Desde o momento em que o direito divino nega a liberdade de consciência, nenhum cidadão tem direito a espalhar doutrinas diferentes das de um repertório fundado na sabedoria das nações, autorizado pelos bispos, com uma tradição de 100 anos — infalível cartilha das nossas temperaturas!

Mas volvamos, volvamos, aos pontos de reticência!

Nós afirmamos que a opinião anda transviada quando pensa que aqueles pontos encobrem um nome temido. Não! A Nação é clara, sem equívocos. A Nação quando diz:

— Em França reinará Henrique V; em Espanha Carlos VII; e em Portugal...

Quer simplesmente dizer que em Portugal reinará Pontos de Reticência. Pontos de

Reticência é um nome. O nome de um rei. Pontos de Reticência I.

Nós podemos estranhá-lo, nós que não sabemos a genealogia e os ramos laterais das casas legitimistas da Europa, que temos esquecido o nosso Almanaque de Gota.

Mas a Nação, depositária dos papéis de família da legitimidade, sabedora das suas tradições, autora da sua história — energicamente o afirma. E lícito aos constitucionais ignorá-lo — mas não contestá-lo.

Reinará pois em Portugal — Pontos de Reticência I.

Em breve o teremos no seu trono, com o seu ministério constituído. Como será nobre! tradicional! feudal! Como terá o sereno e radioso aspecto das coisas augustas e eternas!

Presidente do Conselho: — O Duque de Ponto Final.

Ministro do Culto: — Visconde de Parêntesis.

Ministro do Culto: — Visconde de Parêntesis.

Ministro da Guerra: — O Brigadeiro Vírgula.

Ministro da Justiça: — O Comendador Dois Pontos de Vasconcelos.

E serão terríveis!

E para este rei que se preparam tão boas máximas de governação! Citemos outra, tremenda!

O Sr. Adolfo Coelho dissera no Casino, ao que parece — que a ciência no seu domínio era independente da fé.

Pois bem! um correspondente eclesiástico da Nação exclama, voltando-se mentalmente para o Sr. Adolfo Coelho: «Como ousa o sábio dizer que a ciência é alguma coisa sem a fé? Não, vaidoso! a ciência não pode dar um passo, um único, sem ser auxiliada pela fé!»

Queremos que esta seja a verdade; mas pensemos então como a vida deve ser cruel e molesta para aquele eclesiástico e para toda a redacção da Nação. Imaginemos um destes homens piedosos, à noite, de chambre, à luz do candeeiro, tomando o rol à criada. Já examinou as parcelas, está a fazer a soma. A cena é solene. Uma luz mística banha as prateleiras. O gato ressona.

— 3 e 7, calcula o clérigo suando.

E imediatamente pára. A ciência bem lhe diz que são 10, mas a ciência não é nada sem o auxilio da fé — e o homem do Senhor corre a consultar Santo Agostinho. Nada porém ensina sobre essa matéria o sublime Doutor. O eclesiástico arregala para a criada um olho pávido:

— Depressa, filha, baixa-me daí a summa de S. Tomás!

E folheia...

E para a casa das dezenas interroga Santo Atanásio, e para a das centenas os

Evangelhos comparados!...

Já é de madrugada: a criada dormita’ a alvura esbatida do dia faz grandes fios pálidos nas vidraças; as andorinhas gritam na sua glória e na sua alegria; os rebanhos balam; as árvores espreguiçamse nos braços do vento; Deus, o bom Deus, o Deus

Justo, vive na infinita transparência da luz — e o pobre eclesiástico, pálido, sonolento, aturdido, enterrado em in-fólios, folheia o Dicionário de Bergier, Bossuet, Noailles, os concílios de Trento e de Florença, Orígenes, Lactâncio, João Clímaco, Fleury, a

Cartilha, o Larraga — para saber se pelas leis da Igreja lhe é permitido afirmar que «11 noves fora, é 2!»

E erra a soma!

Outra máxima da Nação:

«A liberdade e a igualdade são palavras ímpias e impuras.

Por consequência, no reinado legitimista, nenhum homem de bem, verdadeiro absolutista e verdadeiro jesuíta, ousará pronunciar essas palavras réprobas. Não as dirão nunca nas salas as pessoas delicadas. Serão desonestidades. Ante elas as faces castas corarão — e o ex-Tártaro, vulgo Inferno, não perdoará!

Assim o conde de A., querendo apresentar ao bispo de B., o Sr. Ferreira Fagote, ex-constitucional, murmurará discretamente, para evitar a sórdida palavra liberdade:

Tomo... aquela que o pudor me impede de nomear, de apresentar a vossa reverência o Sr. Fagote!

Um pai austero gritará a seu piedoso filho, que entrou cambaleando às 3 da manhã no ninho seu paterno:

— Quem lhe deu, menino... a que os mais simples princípios de moral me vedam pronunciar... de entrar a estas horas da madrugada?

A palavra igualdade será também forçada a tomar o caminho do exílio.

Nos dicionários virá:

Igualdade, substantivo tão miserável que nem tem género. Empregado outrora nos artigos de fundo, hoje expressamente punido pelo artigo 10º do Código Penal.

E os advogados, no tribunal, para fazer sentir ao júri que circunstâncias que militaram num caso jurídico devem militar num outro, exclamarão, com uma eloquência nova:

— Estamos, pois, senhores jurados, na mais perfeita (tossindo)... que a consideração pelo tribunal e o meu amor pelas instituições me retém na língua de circunstâncias!

Um mestre de primeiras letras, ensinando a ler os meninos:

I-g-u-a-l-gual-d-a-da-d-e-deEsterquilínio.

Há mais! A Nação, num artigo lírico e heróico, diz que a verdadeira missão do

País não é a indústria — é a conquista! A pena de pato da Nação é pois uma lança disfarçada. Toda a mágoa da Nação é que Cacilhas não seja moura! Se o fosse, a Nação vestia a sua armadura e ia lá, num bote! Mas Cacilhas, a fiel Cacilhas, não é moura! Ai!

A Nação, pois, condena a indústria. A Nação julga a indústria uma causa de ruína moral para o País. A Nação, para que se mantenha pura e sem mistura a tradição heróica de Portugal, quer que se proíba a indústria!

Portanto, logo que a Nação triunfe e Pontos de Reticência I suba as escadinhas do trono, a indústria será punida pelos códigos, como perturbadora da ordem e contrária aos destinos nacionais. E o sr. delegado do procurador régio promoverá ordem de prisão contra o insensato que em desprezo das leis, e afrontando o sagrado depósito das nossas instituições, ouse fundar — uma saboaria.

Ouviremos então, na audiência, o mesmo sr. delegado, apontando com o fura-bolos vingativo para o mísero, curvado na dor e no arrependimento, sobre o banco dos réus:

— «Pois quê! senhores jurados, não vedes que o réu lançou uma mácula nas nossas tradições impolutas? Faltava porventura a esse desgraçado onde exercer a sua actividade? Não tinha ele as muralhas de Diu? Não podia ele ir redobrar o Cabo?

Porque não partiu com armas para as plagas do Oriente? Não via ele ao longe a África adusta? E mais perto, não via ele a afrontosa Castela?!

Será um tempo terrível! Haverá sociedades secretas para fazer gravatinhas de seda. A vidraçaria da Vista Alegre passará, transportada a ocultas, para uma caverna. Os fabricantes de caixinhas de obreias, perseguidos, porão nas esquinas proclamações desesperadas com estas palavras — Cidadãos! ou a obreia ou a morte!

A indústria terá os seus mártires, que morrerão com heroísmo. Veremos subirem aos cadafalsos fabricantes de velas de sebo, exclamando com o sorriso iluminado e os olhos no Céu: — «Só tu és verdadeiro, á sebo!»

E nos jornais saborearemos estas locais:

Prisão importante: O célebre Eduardo Compostela foi ontem capturado com todos os seus cúmplices, num covil, onde se dava à criminosa ocupação de refinar o açúcar. O malvado fez revelações.

Tornou-se muito censurável o procedimento de alguns agentes de polícia que destruíram as provas do crime — comendo-as!

A Nação tem sobre os conferentes do Casino esta admirável opinião:

Que eles iam ali falar, não por vontade sua, mas por ordem de uma associação secreta;

Que nenhum acto seu é espontâneo, mas execução de uma ordem da

Internacional;

Que nada lhes pertence, em próprio, nem a acção, nem as ideias, nem o nome!

De modo que se um conferente toma à noite um sorvete no Áurea, é porque recebeu pela manhã este sinistro telegrama:

«Comité central: 7 da manhã. — Esta noite tomai sorvete botequim. Conveniente levantamento classes operárias! Em sorvete intransigentes. Viva a comuna! De morango!»

E o Sr. Antero de Quental, de ora em diante, terá de assinar assim o seu nome:

Antero (por assim dizer) de Quental (se ouso exprimir-me assim).

Ó Nação, tu és grande!

Mas a mais profunda ideia da Nação foi a de um artigo, em que respondia ao Sr.

Antero de Quental. Aí chamou-lhe brisa, e provou que era brisa. Chamou-lhe fariseu, e descreveu-o como fariseu — arrastando por entre a multidão a fímbria da sua toga.

Segundo, pois, a Nação, o Sr. Antero anda vestido com uma toga, cuja fímbria arrasta por entre as turbas da Rua Nova do Carmo.

Este erro de toilette, que a Gazeta do Povo nunca cometeria, é todavia desculpável na Nação. A Nação vive exclusivamente no passado, na arqueologia: não sabe que hoje já se usa o fraque, pensa que ainda se vai na toga!

Se a Nação tivesse de descrever um baile (assim ela se pudesse desprender das contemplações seráficas para se dar a estes exames terrenos!) aí está como ela descreveria um baile, a Nação!

« — Então o nobre marquês de Ávila, erguendo de leve a alva clâmide, adiantou o coturno com meneio gracioso. Por seu lado o Sr. Carlos Testa levantou a túnica tinta em púrpura, e fez chaine de dames, erguendo o pâmpano!... Tinham ambos as cabeças coroadas de rosas... No meio do festim o nobre presidente do Conselho recebeu um papiro que escravo lacedemónio lhe apresentou em lavrada lâmina. As damas reclinadas nos triclínios respiravam aromas, e nos seus olhos brincavam os jogos e os risos.

Circularam até tarde as taças de Falerno. O Sr. Macário dedilhou na harpa eólia concertos maviosos. Velhos legionários, encanecidos em Marte, faziam, apoiados aos gládios, a polícia nos átrios. Na via esperavam numerosas quadrigas!»

Nação, Nação, boa amiga! não nos queiras mal. Tu és velha, tu és fabulosamente velha, tu és de além da campa! Mas tens o carácter firme. E no meio da leviandade movediça destes partidos liberais — tu tens uma vantagem. Lançaste a âncora no meio do oceano e ficaste parada. Estás apodrecida, cheia de algas, de conchas, de crostas de peixes, mas não andaste no ludíbrio de todas as ondas e na camaradagem de todas as espumas! Tu eras excelente — se fosses viva. Mas és um jornal sombra. Es tão viva como Eneias. Tão contemporânea como Telémaco.

Volta, Nação, para ao pé das tuas sombras queridas! E apresenta as nossas saudações carinhosas ao Sr. D. Afonso II, o Gordo!

XIV