XXIV
Agosto 1871.
O parlamento vive na edade de ouro. Vive nas edades innocentes em que se collocam as lendas do paraiso-quando o mal ainda não existia, quando Caim era um bom rapaz, quando os tigres passeavam dôcemente par a par com os cordeiros, quando ninguem tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calumnia! — e a palavra mente! não attrahia a bofetada!
Senão vejam! Todos os dias aqueles ilustres deputados se dizem uns aos outros: É falso! É mentira! E não se esbofeteiam, não se enviam duas balas! Piedosa inocência!
Cordura evangélica! É um parlamento educado por S. Francisco de Sales!
O ilustre deputado mente!
Ah, minto? Pois bem, apelo...
Cuidam que apela para o espalmado da sua mão direita ou para a elasticidade da sua bengala?
— Não, meus caros senhores, apela — para o Pa ís!
Quanta elevação cristã num diploma de deputado! Quando um homem leva em pleno peito, diante de duzentas pessoas que ouvem e de mil que lêem, este rude encontrão: É falso! — e diz com uma terna brandura: Pois bem, apelo para o País! — este homem é um santo! Não entrará decerto nunca no Jockey-Club, de onde a mansidão é excluída, mas entrará no reino do Céu, onde a humildade é glorificada.
É uma escola de humildade este parlamento! Nunca em parte nenhuma, como ali, o insulto foi recebido com tão curvada paciência, o desmentido acolhido com tão sentida resignação! Sublime curso de caridade cristã. E veremos os tempos em que um senhor deputado, esbofeteado em pleno e claro Chiado, dirá modestamente ao agressor, mostrando o seu diploma: — «Sou deputado da nação portuguesa! Apelo para o País!
Pode continuar a bater!»
E depois que doçura de expressões! Não vimos ainda há pouco o Sr. Ávila designado no meio de uma questão financeira com estas benévolas qualificações — camaleão, sapo, elefante?! Que autoridade no dizer! que elevação no pensar!
Como é instrutivo, como é moral, o ver discursos assim concebidos:
— Não aprovo o projecto do ilustre presidente do Conselho, porque entendo na minha consciência, e digo-o à face do País, que S. Exª é uma verdadeira serpente:
— Mando para a mesa a seguinte moção:
A Câmara, compenetrada de que o sr. ministro da Fazenda é uma lontra, passa à ordem do dia!
Depois o modo carinhoso como a Câmara tomou conta da infeliz palavra insulto!
Aquela pobre palavra, tão comprometedora, que nunca aparecia outrora que não fosse o sinal de um duelo ou de uma policia correccional — o parlamento refez-lhe uma virgindade e um decoro, e ela agora vem, e ninguém se revolta, e o Sr. António Aires tem para ela um bom sorriso.
— O ilustre deputado há três dias não faz senão insultar-me (textual). Três dias!
— O ilustre deputado não me insulte!
— Vou responder a esses insultos!
— Menos insultos!
Ai! o mundo despoetiza-se! As coisas terríveis perdem o colorido da lenda. As
O Parlamento vive na idade de ouro. Vive nas idades inocentes em que se colocam as lendas do Paraíso — quando o mal ainda não existia, quando Caím era um bom rapaz, quando os tigres passeavam docemente par a par com os cordeiros, quando ninguém tinha tido o cavalheirismo de inventar a palavra calúnia! — e a palavra mente! não atraía a bofetada! crianças riem do papão. O diabo já não é temido. O insulto já não é aviltante! Não é! A
Câmara dos Deputados vive há um mês, tendo no seu seio o insulto, em perpétua ordem do dia — e engorda!
Mas o Sr. António Aires, esse, para que continua a dizer com a sua voz eloquente:
— Amanhã continua a mesma discussão?
A escrupulosa verdade — e S. Exª, sacerdote e católico, está adstrito a observar este regimento da consciência — pede que se declare:
— Amanhã continua a mesma assuada.
Assim o público ficava avisado — e os srs. deputados também! Porque nada deve custar mais a um ilustre deputado, que quer zelar os interesses do seu país, do que ver, numa discussão, exausta a sua colecção de injúrias, findos os seus apontamentos de berros!
Não é quem quer doutor em impropérios!
E assim, devidamente prevenido, cada deputado podia formar de véspera uma útil e séria lista de argumentos — consultando o dicionário, o seu aguadeiro, a porta da
Alfândega e os fadistas da Praça da Figueira.
XXV
Agosto 1871.
Era há dias, ao fim da tarde, na Foz. O céu, no alto, tinha a brancura de uma porcelana: já a decoração inflamada do poente se apagava, e grandes tons dourados desbotavam numa tinta roxa. O mar, de um azul duro, estava riscado de espumas. Entre as rochas, na praia, a maresia era violenta; e na linha da barra sucediam-se, uma após outra, largas ondas monótonas.
Vinha a entrar uma lancha à vela. As ondas tomavam a pequena embarcação pela popa; ela fugia à bolina, rijamente impelida. Uma vaga maior sacode-a furiosamente.
Pescadores, mulheres, no largo, ao pé do Castelo, rompem a gritar. Há ali perto uma barraca de saltimbancos. Dois palha ços, já vestidos, caiados, com guizos, vieram olhar, pasmados.
A lancha corria. Ergue-se sobre ela outro mar mais forte. — «Está livre! não está livre! Santo Deus! Jesus!» — A onda, quebrando, apanhou-a pela popa, ergueu-a, balouçou-a, e por um momento viu-se apenas, na espuma, a vela oscilar, com a lenta palpitação da asa de um pássaro que morre.
Na praia as mulheres gritavam, de bruços sobre o chão. Os palhaços empalideciam sob o alvaiade. A sombra da noite caía.
A lancha tinha escapado. Correram todos ao cais, vê-la atracar. Vinha cheia de
água, com a vela molhada até meia altura, os remos partidos. Estivera perdida. O patrão, um velho baixo, seco, de cabeça branca sob um barrete de pele de lontra, atirava para fora a corda da rede. Tinham trazido 10 ou 12 pescadas!
Cada pescada podia valer seis vinténs! E tinha estado perdida, a lancha! E era ao anoitecer, longe de socorro, na água impiedosa!
Ora sabem qual é o imposto que sobre este duro trabalho lança o fisco? — 40 réis por pescada! Não é o antigo dízimo absolutista — é o terço liberal! E assim acaba o romance!
Pode alguém estranhar que as Farpas não contenham nunca uma página dada ao romance, à imaginação. Pois bem — aqui está um conto, com paisagem, passado à beira-mar.
XXVI
Agosto 1871.
Não o devemos ocultar! Fala-se — nem letra de mais, nem letra de menos — numa r-e-v-o-l-u-ç-ã-o!
Mas qual? Três correntes de opinião, adversas ao constitucionalismo e ao parlamentarismo, atravessam o País. E a revolução variará, segundo for uma ou outra dessas três opiniões que consiga, pela força ou pela manha, empolgar o poder e as suas doçuras.
Seja qual for a que triunfe, terá logo, pelo mero facto de triunfar, aderentes inumeráveis, mesmo nas opiniões opostas. E para que cada cidadão possa devagar escolher a revolução que lhe convém, aqui apresentamos de antemão as notícias que, de cada uma delas, darão os jornais depois da vitória:
Revolução nº1.
— 19 de Fevereiro. — O Governo que feliz mente nos rege continua na sua obra de pacificação. A redacção da Nação mudou-se para o palácio dos srs. duques de Palmela, ao Calhariz. Foi preso o Sr. Oliveira Marreca, decano do partido republicano. S. M. El-Rei
Nosso Senhor visitou ontem o lausperene da Graça.
Parece que uma representação do clero exige o desterro do Sr. Alexandre
Herculano. — A emigração tem abrandado, vai renascendo a confiança. — Fala-se em grandes bailes dados pela coroa. — Mandaram-se fundir à Alemanha três carrilhões, no valor de 3 milhões cada um, para os Inglesinhos, S. Luís e Mártires. — Assistiu ontem uma inumerável multidão à execução do Sr. Osório de Vasconcelos, reformista. S. Exª caminhou para o suplício com grande valor. — Admiráveis em Braga as iluminações. —
Vai ser demolida a estátua de D. Pedro IV. — As autoridades e funcionários das secretarias são demitidos em massa. — Haverá grandes tributos para ocorrer as despesas da reconstituição da nobreza. — Foi ontem apupado na Rua da Alegria, o Sr. V, poeta erótico, na ocasião em que observava a chegada das andorinhas!
Revolução nº2
— 19 de Fevereiro. — O novo Governo provisório deu ontem um esplêndido jantar no Hotel Central. — O Sr. Padre B... foi nomeado patriarca. S. Exª passeou ontem as ruas de dog-cart. — Foi preso o Sr. Batalha Reis, antigo conferente do Casino. — O sr. marquês de Ávila e Carlos Bento foram fuzilados. SS. Exª estavam ignobilmente abatidos. — Os membros do novo
Governo atribuíram-se ordenados anuais de 12 contos de réis. — O Sr. Antero de
Quental, a quem o comité da Rua da Bitesga fora oferecer a presidência, deu pontapés no comité. — Têm sido suspensos vários jornais. — Chegou a Paris o Sr. D. Luís de
Bragança. — Foi saqueada a casa do Sr. José Maria Eugénio. — Têm sido fechadas as igrejas. — Nas províncias do Norte é grande a miséria. — Bandos armados dão pilhagem
às províncias do Sul. — O Governo provisório lançou fogo aos arquivos da polícia. —
Foram suspensas as Farpas. — Foi ontem apupado no Rossio, o Sr. V, poeta erótico, que ia a correr atrás de uma borboleta!
Revolução nº3.
— 19 de Fevereiro. — Foi publicado o decreto licenciando o exército, e organizando uma guarda nacional. — Estão presos e vão responder a processo, os principais vultos dos últimos anos da política constitucional: diz-se que serão degredados. — Foi suprimida a câmara dos pares. — Corre que se vendem algumas das colónias. — Está decretada a instrução obrigatória e gratuita. — Vai ser feita a reforma administrativo-comunal.
— Teremos a liberdade de cultos. — E certa a reforma do imposto. — Estão nomeadas comissões para proceder à confecção do cadastro. — Fechou-se a
Universidade, e o ensino superior será reorganizado numa nova base. — Vão criar-se escolas industriais. — E concedida a plena liberdade de reunião e de coalizão. — Formam-se por toda a parte sociedades cooperativas. — As secretarias vão sofrer grande golpe. —
Cada membro do Governo provisório recebe anualmente 600$000 réis. — Ontem o Sr.
V, poeta erótico, foi apupado na Rua do Arco do Bandeira, onde estava a contemplar um lírio.
XXVII
Agosto 1871.
Pois bem! A Câmara Municipal do Porto, com uma nobre solicitude pelo peixe, para quem parece ser uma extremosa mãe, e receando, com um carinho assustado, que o peixe se constipasse, ou sofresse a indiscrição dos vizinhos, construiu-lhe uma praça fechada, com altas e fortes paredes, varandas, gabinetes interiores, corredores, alcovas, casa bem reparada, quase um palacete. E tudo de tal modo tranquilo, aconchegado, confortável, que a Câmara hesita se há-de pôr ali peixes, se livros — e se fará daquilo um mercado ou uma biblioteca!
A nós parece-nos, que, com mais alguma despesa, a Câmara daria ao País o exemplo de uma grande dedicação pelo peixe! — Era mandar tapetar a praça, colocar nos recantos sofás, e não esquecer um piano. O peixe deslizaria aí dias de grande doçura: os robalos estariam deitados em divãs de seda: o polvo teria livrarias para se instruir! O comprador seria introduzido por criados de libré. A peixeira conduzi-lo-ia a uma alcova, com as janelas cerradas, ergueria os cortinados de um leito, e mostraria inocentemente adormecidas, sob uma coberta de damasco — duas pescadinhas-marmotas.
O comprador tiraria o chapéu comovido. E a peixeira, com lindos modos:
— Suas Ex.as recolheram-se tarde... São a 80 réis cada uma!
Ah! A Câmara tem decerto grandes planos! Como estão bem feitas, rasgadas, esbeltas, as largas varandas de ferro da fachada da praça! Alguns malévolos riem. Mas nós sabemos que essas varandas na praça do peixe, tão amplas e cómodas, têm um destino que ninguém — a não ser inspirado pelas injustiças da inveja — poderá condenar.
Aquelas varandas são para que, aos domingos — o peixe venha tomar café para a janela!
A honrada Câmara Municipal do Porto quis dotar a cidade com uma praça de peixe. Nada mais higiénico, mais justo. De todo o tempo, nas grandes cidades, o peixe teve os seus aposentos definitivos, porque a vadiagem do peixe pelas ruas — fazendo concorrência à vadiagem dos filhos-famílias — é sobremodo insalubre! Mas uma praça de peixe não é um teatro nem uma casa de banhos — nem mesmo um quartel. Tem uma arquitectura própria, condições especiais de ar, de luz, de água, etc... Assim, em toda a parte, as praças de peixe são de uma construção ligeira, aberta e devassada pelos ventos, com leves colunatas de ferro sustentando um tecto de madeira ou de vidraça, lavadas por um perpétuo escorrer de água, cercadas de árvores... Enfim, um lugar são, fresco, higiénico, livre, desinfectado.
XXVIII
Setembro 1871.
Esta hesitação, entre o tombo e a cólica, mantém o espírito do viajante num estado delicioso de palpitação e vibração. E como quando se joga, numa última volta de roleta, a última placa de uma herança! Apaixona mais que ler Os Três Mosqueteiros! Suscita os tremores de perigo e de transe que só dá uma ascensão ao Monte Branco! Talvez estar para ser fuzilado não cause tanto alvoroço! E a intenção da Companhia é evidente.
As travessas podres, os rails gastos e desaparafusados, os túneis mal seguros, as pontes rachadas, os aterros que tendem a desabar, os desaterros que tendem a esboroar, as máquinas cansadas, o serviço desleixado, as refeições envenenadas, tudo, tudo, até as demoras, os atrasos, a confusão, tudo converge para o mesmo legítimo fim — comover fundamente o viajante, dar-lhe sensações supremas!
Parece-nos pois que alguns conselhos à companhia não podem deixar de ser por ela recebidos — não diremos de braços, mas de rails abertos. Assim, por exemplo, seria de todo o ponto dramático e excitante, espalhar pela estrada destacamentos de bandidos que espingardeassem o comboio. Outrossim, meter em cada carruagem um lobo esfomeado, parece-nos um meio eficaz de impedir que o viajante tenha ocasião de se enfastiar. E enfim, como meio de produzir a mais aguda impressão, devia ter a companhia em cada estação empregados, que, ao parar do comboio, se aproximassem do passageiro, e delicadamente, com todo o respeito — lhe cravassem uma navalha na ilharga! E a viagem ficaria deste modo marcada com indeléveis encantos e cicatrizes!
Jornadear nos caminhos-de-ferro portugueses de Norte e Leste, é. a todos os respeitos, uma aventura cheia de emoções. Correndo sobre os rails, há para nos interessar e excitar — a probabilidade do descarrilamento; parados, no bufete das estações, há, para nos estimular com uma sensação mais forte ainda — o envenenamento a 500 réis por estômago.