XXI

Fevereiro 1872.

Há longos anos o Brasileiro (não o brasileiro brasílico, nascido no Brasil — mas o português que emigrou para o Brasil e que voltou rico do Brasil) é entre nós o tipo de caricatura mais francamente popular. Cada nação possui assim um tipo criado para o riso público. As comédias, os romances, os desenhos, as cançonetas espalham-no, popularizam-no, desenvolvem-no, aperfeiçoam-no, e ele torna-se o grotesco clássico — que chega a ser motivo de ornato industrial, cinzelado em castiçais, aguarelado em caixas de fósforos, torneado em castões de bengala. A França tem o inglês de coco diminuto na nuca, de larga e aguda suíça em forma de costeleta alourada, dentuça taluda, colarinho alto como um muro de quintal, rabona de xadrezinho, pé largo como uma esplanada, e ar lorpa: ultimamente tem a mais o prussiano, de imenso bigode na focinheira, cabelo em bandós, capacete em bico , um sabre prodigiosamente insolente e um relógio de sala roubado debaixo do braço!

Nós temos o Brasileiro: grosso, trigueiro com tons de chocolate, pança ricaça, joanetes nos pés, colete e grilhão de oiro, chapéu sobre a nuca, guarda-sol verde, a vozinha adocicada, olho desconfiado, e um vício secreto. É o brasileiro: ele é o pai achinelado e ciumento dos romances românticos: o gordalhufo amoroso das comédias salgadas: o figurão barrigudo e bestial dos desenhos facetos: o mandão de tamancos, sempre traído, de toda a boa anedota.

Nenhuma qualidade forte ou fina se supõe no brasileiro: não se lhe imagina inteligência, como não se imaginam negros com cabelos louros; não se lhe concede coragem, e ele é, na tradição popular, como aquelas abóboras de Agosto que sofreram todas as soalheiras da eira: não se lhe admite distinção, e ele permanece, na persuasão pública, o eterno tosco da Rua do Ouvidor.

O Povo supõe-no o autor de todos os ditos celebremente sandeus, o herói de todas as histórias universalmente risíveis, o senhor de todos os prédios grotescamente sarapintados, o frequentador de todos os hotéis sujamente lúgubres, o namorado de todas as mulheres gordalhufamente ridículas.

Tudo o que se respeita no homem é escarnecido aqui no brasileiro. O trabalho, tão santamente justo, lembra nele, com riso, a venda da mandioca numa baiuca de

Pernambuco; o dinheiro, tão humildemente servido, recorda nele, com gargalhadas, os botões de brilhantes nos coletes de pano amarelo; a pobreza, tão justamente respeitada, nele é quase cómica e faz lembrar os tamancos com que embarcou a bordo do patacho

Constância, e os fardos de café que carregou para as bandas de Tijuca; o amor, tão teimosamente idealizado, nele faz rir, e recorda a sua espessa pessoa, de joelhos, dizendo com uma ternura babosa — oh minina!

De facto, o pobre brasileiro, o rico torna-viagem, é hoje, para nós, o grande fornecedor do nosso riso.

Pois bem! É uma injustiça que assim seja. E nós os portugueses que ficámos, não temos o direito de nos rirmos dos brasileiros que de voltaram. — Porque, enfim, o que é o Brasileiro? É simplesmente a expansão do Português.

Existe uma lei de retracção e dilatação para os corpos, sob a influência da temperatura. (Aprende-se isto nos liceus, quando vem o buço). Os corpos ao calor dilatam, ao frio encolhem. A mesma lei para as plantas, que ao sol alargam e florescem, ao frio acanham e estiolam. A bananeira, nos nossos climas, é uma pequena árvore tímida, retraída, estéril: no calor do Brasil é a grande árvore triunfante, de folhas palmares e reluzentes, tronco possante, seiva insolente, toda sonora de sábiás e outros, escandalosa de bananas. Mesma lei para os homens. O espanhol das Astúrias, modesto, humano, discreto e grave — passando para o sol do Equador, nas Antilhas Espanholas, torna-se o sul-americano vaidoso, ruidoso, ardente, palreiro e feroz. Pois bem! O Bra-sileiro

é o Português — dilatado pelo calor.

O que eles são, expansivamente — nós somo-lo, retraidamente. As qualidades internadas em nós, estão neles florescentes. Onde nós somos à sorrelfa ridiculitos, eles são à larga ridiculões. Os nossos defeitos, aqui sob um clima frio, estão retraídos, não aparecem, ficam por dentro: lá, sob um sol fecundante, abrem-se em grandes evidências grotescas. Sob o céu do Brasil a bananeira abre-se em fruto e o português rebenta em brasileiro. Eis o formidável princípio! O Brasileiro é o Português desabrochado.

É o sol de lá que nos fecunda. O Chiado sob os trópicos dá inteiramente a Rua do

Ouvidor. Rirmo-nos do brasileiro é rirmo-nos de nós sem piedade. Nós somos o germe, eles são o fruto: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrário! o brasileiro é bem mais respeitável, porque é completo, atingiu o seu pleno desenvolvimento: nós permanecemos rudimentares. Eles estão já acabados como a abóbora, nós embrionários como a pevide. O Português é pevide de Brasileiro!

Que somos nós? Brasileiros que o clima não deixa desabrochar. Sementes a que falta o sol. Em cada um de nós, no nosso fundo, existe, em germe, um brasileiro entaipado, afogado — que, para crescer, brotar em diamantes de peitilho, calos e prédios sarapintados de verde, só necessita embarcar e ir receber o sol dos trópicos. Cada lis-boeta, sabei-o, traz em si a larva de um brasileiro. Nós aqui vestimos cores escuras, lemos Renan, repetimos Paris, e no entanto cá dentro, fatal e indestrutível, está aboborando — um brasileiro.

Quem o não tem sentido agitar-se, como o feto no seio da mãe? — Fitais às vezes uma gravata verde com pintas escarlates? É o Brasileiro a remexer por dentro. —

Desejais inesperadamente uma boa feijoada comida em mangas de camisa? E o

Brasileiro. — Apetece-vos ir visitar a Memória do Terreiro do Paço? É o Brasileiro, lá dentro. — Lembra-vos reler uma ode de Vidal ou uma fala de Melício? É o Brasileiro!

Ele está dentro de vós, lisboetas! Ah, sabei-o! vós estais sempre no vosso estado interessante — de um Brasileiro!

E quereis uma prova? É o Verão! É o cruel Verão! Então sob a temperatura germinadora — o Brasileiro interior tende a florir, a desabrochar, a alastrar em cachos.

Então começais a deitar o chapéu para a nuca, a usar quinzena de alpaca, a passear depois do jantar com o palito na boca, a exigir dos vendedores a água do Arsenal, a fre-quentar a Deusa dos Mares! Sabeis o que é? É o Brasileiro, que lá tendes dentro na entranha, atraído pelo sol, a querer romper!

Portanto quando nos rimos dele — intentamos a nós mesmos um processo amargo.

No Inverno a pevide contém a abóbora: mas quando a abóbora cresce no Verão, é ela que contém a pevide. Nós cá contemos o brasileiro; ele lá, chegado ao Brasil, germina, brota em fruto, e nós ficamos-lhe dentro. Ora se esmagarmos a abóbora a grandes golpes de chacota, é sobre a nossa própria e rica pessoa que descarregamos o riso feno.

Tenhamos juízo! Reconheçamo-nos neles como nós mesmos — ao sol!

Tais são as sábias verdades que soltamos de nossas mãos. Aproveitai-vos, compatriotas!

E sobretudo certificai-vos que vós outros, que não deixais a capital, não valeis mais que o minhoto que volta de Pernambuco.

O brasileiro não é belo como Apolo, nem como o mais recente Dom João: — mas tu, ó português, tu também não és belo, e se a tua bem-amada to diz, é que não tem mais nada que te dizer e mente por mero deleite.

O brasileiro não é espirituoso como Mery ou Rochefort: — mas tu, português, não

és certamente espirituoso! De cima dos embrulhos daquela tenda, quarenta folhetins to provam!

O brasileiro não é elegante como o conde de Orsay ou Brummel: — mas tu, português, dândi desventuroso do Chiado, ou contribuinte da Rua dos Bacalhoeiros, tens a tua elegância dependurada no bom Nunes algibebe!

O brasileiro não é extraordinário como Peabody que deu de esmolas cem milhões, nem como Delescluze que queimou Paris: — mas tu, português, és tão extraordinário como uma couve, e ainda tão extraordinário como um chinelo.

Ora o brasileiro não é formoso, nem espirituoso, nem elegante, nem extraordinário

— é um trabalhador. E tu português não és formoso, etc. — és um mandrião! De tal sorte que te ris do brasileiro — mas procuras viver à custa do brasileiro. Quando vês o brasileiro chegar dos Brasis, estalas em pilhérias: — e se ele nunca de lá voltasse com o seu bom dinheiro, morrerias de fome! Por isso tu — que em conversas, entre amigos, no café, és inesgotável a troçar o brasileiro — no jornal, no discurso ou no sermão, és inexaurível a glorificar o Brasileiro. Em cavaqueira é o macaco; na imprensa é o nosso irmão de além-mar.

Brasileiro amigo, queres tu por teu turno rir do lisboeta? A esse colete verde, que tanto te escarnecem, fecha bem as algibeiras; esse prédio sarapintado de amarelo, que tanto te caricaturam, tranca-lhe bem a porta; esses pés, aos quais tanto se acusam os joanetes e os tamancos primitivos, não os ponhas mais nos hotéis da capital — e poderás rir, rir do carão amarrotado com que então ficará o lisboeta, que tanto ria de ti!