VIDA INGLEZA
O jantar correu, ao principio, silencioso, como de costume.
Mr. Richarde, apesar de tudo quanto promettia aquelle seu ar de satisfação, fazia as honras da mesa, usando de monosyllabos, e não se dava ao trabalho de formular uma oração inteira, sempre que com qualquer palavra solta lhe era possivel exprimir o pensamento.
—Roast beef?... Salame?... Fiambre?... Ostras?—Era a maneira, pela qual elle perguntava a Carlos ou a Jenny quaes os pratos, de que preferiam servir-se.
—Mostarda... Queijo... Aquillo... Isto... Traz... Tira... Leva...—Eram as ordens, que recebiam os criados, os quaes manobravam com uma promptidão, seriedade e silencio, essencialmente britannicos.
Carlos não se mostrava mais expansivo. Além da pouca disposição para fallar, que em regra sentia diante do pae, estava n'aquella tarde muito fóra das habituaes condições de espirito, e em outra qualquer companhia de certo lhe estranhariam igualmente a taciturnidade.
Jenny dava algumas ordens, em voz baixa, aos criados, que se inclinavam diligentes para escutal-a; fazia, no mesmo tom, uma ou outra observação a Carlos, e aventurava até algumas perguntas ao pae, sem que lhe fosse possivel comtudo generalisar conversa.
Tudo isto, a regularidade e perfeito methodo de serviço, a gravidade e asseio dos criados, e a meia claridade da sala, dava não sei que aspecto solemne ao acto, como se fosse uma ceremonia funebre.
Á medida, porém, que se repetiam as libações e que o effeito dos variados vinhos se combinava na cabeça de Mr. Richard, o velho inglez principiou a despir-se d'esta soturna gravidade e a lingua a desencadeiar-se-lhe, rompendo aquella especie de mutismo, que lhe impunham as regras da etiqueta britannica.
Verificava-se n'isto uma opinião de Fielding, escriptor que disputava a Sterne as predilecções litterarias de Mr. Richard; diz effectivamente o auctor do Tom Jones que o vinho tem a propriedade de trazer á luz o verdadeiro caracter dos homens, caracter que, nos periodos de sobriedade, o artificio consegue dissimular muitas vezes. Ora, como dissemos, Mr. Richard Whitestone era sorumbatico, por convenção; mas no fundo permanecia a jovialidade, que vinha á superficie, á medida que se adiantava o jantar.
Ainda na presença de Jenny, já elle começára a ensaiar alguns gracejos, a contar passagens da sua vida de Londres, travessuras da meninice, e algumas extravagancias do tempo de rapaz.
Carlos procurava então maliciosamente o olhar da irmã, a qual, pelo contrario, evitava com discrição o d'elle; porque estas historias ambos as sabiam já de cór, tão infalliveis ellas occorriam em determinadas circumstancias.
Sempre que, em taes alturas do jantar, Carlos via servir um perú recheado, esperava já a narração de como, na sua infancia, Mr. Richard, então chamado ainda o pequeno Dick, com mais outros companheiros do collegio, tinham conseguido roubar uma d'estas aves do pateo do reverendo Jackson, seu mestre, e do detestavel assado que depois, ás occultas, fizeram com ella.
O lombo de vacca inevitavelmente lembrava a anecdota apocripha d'aquelle rei de Inglaterra, que em um accesso de bom humor armou cavalleiro este saboroso artigo comestivel, ao qual, desde então, se concederam as honras de baronet, como parece indicar o nome de Sirloin ou Sir loin, com que os inglezes o designam.
Um prato de avelãs trazia quasi sempre comsigo a historia de uma celebre aveleira, que havia em certo parque das proximidades de Londres, pelo tronco da qual tantas vezes Mr. Richard, ainda creança, trepára com feliz exito, até um dia em que, escorregando, ficou suspenso de um galho por espaço de alguns minutos.
O pudding era pretexto para fallar no monstruoso pudding que se cozinhava na Inglaterra, em não sei que solemnidade popular, e d'ahi a enumeração de muitos outros usos, e costumes nacionaes e de varias festas notaveis. Entre essas, a mais detidamente descripta era a do Lord Mayor; n'esse dia, guardado por toda a City, como dia santo, o personagem eleito para aquelle alto cargo é processionalmente levado á presença do Lord Chanceller, com o fim de ser por elle confirmada a sua eleição. Mr. Richard sabia e descrevia todas as particularidades do ceremonial, bem como todas as attribuições dos multiplicados cargos de que se compõe a excepcional corporação de Londres, desde o alto Lord Mayor até o mais modesto bedel de parochia.
Como na procissão fluvial pelo Tamisa, celebrada n'aquelle dia, Mr. Richard estivera de uma vez em riscos de se afogar, a referencia minuciosa d'este caso pedia a de um outro analogo que lhe succedera por occasião dos tumultos populares occorridos durante o processo de divorcio de Jorge IV, e varias particularidades, pouco edificantes, a respeito da rainha Carolina e do seu favorito Bergamy.
Carlos ouvia tudo isto calado, com ar de resignação e deferencia filial; Jenny com uma physionomia mais attenta, ainda que nem sempre a attenção do rosto lhe estivesse no espirito tambem.
Jenny era a primeira a retirar-se da mesa, segundo o discreto costume, hoje mais seguido, mas originariamente britannico.
Então tomavam maior incremento ainda as libações de Mr. Richard Whitestone.
Accendia um charuto e dava-se uns ares de familiaridade, que em nenhuma outra occasião se repetiam.
Carlos, de ordinario, perdia tambem então um pouco do habitual retrahimento para com o pae, e, fumando defronte d'elle, entrava com mais desafogo n'este dialogo.
N'aquella tarde, porém, conservou-se ainda pouco expansivo, e quasi distrahido, perante a crescente communicabilidade.
N'este dialogo inter pocula eram infalliveis as referencias do negociante ao seu livro favorito—O Tristram Shandy, de Sterne.
Mr. Richard apreciava tudo n'aquelle livro extravagante. Sabia-o quasi de cór e, apesar d'isso, lia-o ainda e de todas as vezes ria com a mesma vontade, não obstante não encontrar no decurso da leitura já alguma cousa imprevista.
Carlos, ainda quando não tivesse lido a obra, tinha já razão para a conhecer a fundo, graças ás quotidianas citações do pae; era porém obrigado a escutal-o, como se tudo fosse novo para elle.
As dissertações philosophicas do pae de Tristram, as ingenuidades e venetas guerreiras do tio Tobias, as argucias e façanhas do Corporal Trim, as interminaveis e extravagantes divagações de Tristram, o supposto auto-biographo, tudo Mr. Richard citava com enthusiasmo e com vivacidade.
Nem lhe passavam por alto os episodios e as dissertações, que respiram certas liberdades, verdadeiramente rabelesianas, capazes de alvoroçar os ouvidos menos pechosos. O episodio dos amores do tio Tobias e os do seu fiel camarada, de indole menos quixotesca, eram até das passagens favoritas e das que com mais cordiaes risadas commentava.
Vinham luzes e proseguia o dialogo, nem sempre demasiado ingenuo.
Ao levantar da mesa, tomavam-se posições ao fogão; a conversa continuava, mas o ponto culminante da loquacidade e da viveza de Mr. Richard Whitestone tinha passado já.
N'este primeiro periodo de declinação sobrevinham as citações do Tom Jones.
Mr. Richard não se cansava tambem de exaltar aquelles soberbos perfis da penna de Fielding e as judiciosas reflexões que o auctor mistura á narrativa.
Depois, a proximidade do calor do fogão, as exhalações do carvão inglez, a preponderancia dos vapores do tabaco, e mais tarde o punch, deprimiam ainda mais os espiritos do commerciante.
Passava a fallar de politica, citava o Times; n'esta noite disse a Carlos que Lord Palmerston estava resolvido a dissolver o parlamento, no caso de não encontrar apoio na camara dos communs.
Isto já foi dito em tom soturno. Carlos era de todo indifferente aos destinos do parlamento inglez.
Depois fallou nos principaes movimentos e feitos de armas do exercito alliado na Crimeia e no provavel exito da campanha; e d'aqui entrou em considerações sobre o estado do commercio em Londres. Carlos luctava heroicamente para reprimir bocejos de fastio.
Era noite cerrada; a voz de Mr. Richard tinha já umas entonações surdas, que, combinadas ás pancadas do relogio da sala, produziam em Carlos um effeito soporifero irresistivel.
Jenny, quando pelo silencio que reinava, sentia que tinham chegado as cousas a este periodo critico, voltava outra vez á sala. Era então que o irmão aproveitava a occasião para saír.
N'esta noite ficou.
Jenny olhou-o admirada.
Carlos respondeu-lhe, encolhendo os hombros, como a exprimir a resolução de ser condescendente aquella vez, ficando.
A irmã agradeceu-lhe com um gesto; mas pensava comsigo:
—Bem sei. Ainda não te passou o desgosto pelo mau resultado da tua aventura. Paciencia!
Carlos voltára a casa, como dissemos, reconciliado com a vida domestica e convencido de que estava bem disposto para saborear os prazeres de um serão inglez.
Resolveu por isso ficar. Mas a suspeita de Jenny era tambem fundada.
Desalentado pela falta de indicações em relação ao mysterio da mascara, na qual a seu pezar pensava ainda, mingoava-lhe animo para saír, sem esperanças de o elucidar.
Mas a vida domestica, tal como se passava ao fogão, junto do qual Mr. Richard quasi dormitava, não era a que o podia satisfazer.
O viver intimo, cujos encantos Carlos julgára ter concebido aquella tarde, era apenas o accessorio de alguma cousa mais essencial ao coração, de alguma cousa, cuja necessidade começava a sentir emfim. Sorria-lhe o conchego domestico, mas aquecido, mas illuminado por outras chammas, que não eram as que lambiam o fender do fogão; animado por mais ardentes sentimentos do que os de um affecto fraterno, ainda que dos mais estreitos, e do que os do respeito filial, ainda que dos mais arreigados e extremosos.
Estava por isso experimentando agora o desengano, e a comparar a monotonia d'aquella noite ingleza, com o prazer que imaginára poder saboreiar-se, sem abandonar os lares domesticos.
Isto fazia-o ainda mais silencioso e sombrio, do que estivera em outras noites que passára como aquella em casa.
Depois que veio Jenny succedeu o que quasi sempre succedia tambem. Mr. Richard manifestou desejos de a ouvir tocar.
Em virtude d'isto, passaram a uma das salas proximas. Mr. Richard sentou-se ao lado do fogão, tambem accêso alli; Carlos, proximo d'elle; Jenny ao piano.
Jenny, conhecendo por experiencia as predilecções paternas, abriu a collecção dos Cantos populares de Russell e procurou uma poesia de Morris; a qual tanto o pae como o irmão ouviam sempre com piedoso recolhimento.
O motivo d'esta attenção estava sobre tudo na lettra, que parecia feita de proposito para avivar, em toda esta familia, saudades da vida passada. Foi a meia voz, mas com verdadeiro sentimento, que Jenny cantou essa poesia, intitulada a Biblia de minha mãe, cuja traducção é a seguinte:
«Este livro é tudo quanto me resta d'ella! Ao vel-o, sinto rebentarem-me irreprimiveis as lagrimas dos olhos; com os labios tremulos, com a fronte turvada, aperto-o ao coração. É esta a arvore de familia, á sombra da qual já muitas gerações se teem abrigado.—As mãos de minha mãe folhearam esta Biblia; foi ella mesma quem m'a legou ao expirar.
Ai, como me estão lembrando aquelles, cujos nomes me veem de envolta com estas memorias! Tantos que, em torno do lar, costumavam reunir-se após a oração da tarde, a conversar no que dizia este livro, em um tom que me calava no intimo do seio; ha muito que elles estão com os mortos silenciosos; mas sinto-os viver ainda aqui.
Meu pae lia este livro sagrado aos filhos, ás filhas, á familia toda! Como era sereno o olhar de minha mãe, ao curvar a cabeça para escutar a palavra de Deus! Aquella figura angelica! Ainda a estou a ver!—Que memorias me occorrem em tropel n'este momento!—De novo parece reviver, dentro das paredes d'este quarto, aquelle pequeno grupo.
Tu, ó Biblia! és o mais seguro amigo do homem! Eu tenho já experimentado a tua constancia! Quando todos me trahiam, achei-te fiel; vi em ti um conselheiro, um guia! As minas da terra não possuem o thesouro, que me compre este livro. Ensinando-me a maneira de viver, elle tambem me ensina como se deve morrer.»
O assumpto da canção ingleza, depois que Jenny a terminou, fez caír naturalmente a conversa sobre diversas passagens da Biblia; Mr. Richard citou um versiculo, outro e outro, até que uma duvida lhe impediu de proseguir: d'ahi o pedido feito por elle á filha, para verificar a exacta redacção do texto.
Jenny abriu pois o livro, que em todas as salas se encontrava sempre á mão, e leu.
Carlos gostava de ouvir ler a irmã aquellas singelas e sublimes paginas da Biblia.
Diz-se muito mal da lingua ingleza, e, de facto, ouvindo fallar certos filhos da Grã-Bretanha, lembra logo os conhecidos versos:
O mundo a porfiar que os bretões grunhem
E os bretões, etc., etc., etc.
porém uma voz, como a de Jenny, meiga, melodiosa, e modulada com intelligencia e graça, parece transformar essa lingua ingrata em não sei que cantar de aves, que tem attractivos, até para os que não a comprehendem.
O recolhimento religioso, com que Jenny lia os mais bellos episodios do Velho ou do Novo Testamento, augmentava o effeito agradavel da sua voz.
Infelizmente, porém, a leitura descarnada e despida de commentos d'aquellas paginas não bastava ao fervoroso anglicanismo de Mr. Richard Whitestone, porisso, a cada passo, a interrompia para citar as interpretações de alguns dos reverendos doutores da sua episcopal igreja, ou os recentes desenvolvimentos, que ouvira ao ecclesiastico inglez na missa protestante, do Campo Pequeno.
Jenny olhava para o irmão e fazia-lhe signal para que se reprimisse, e pelo menos simulasse attenção ás divagações do pae. Serviu-se ás dez horas chá preto, e Mr. Richard readquiriu um pouco de animação para, a proposito do chá, fallar na importancia da companhia das Indias Orientaes, nos serviços feitos por ella ao commercio, na sua historia, nas difficuldades com que luctou, e nos meios de que dispunha. Em seguida expôz um projecto de lavra propria sobre o engrandecimento das colonias inglezas, formulou acerbas censuras ao systema colonial portuguez, e em seguida uma expressa condemnação da politica franceza em geral.
Mr. Richard odiava cordialmente a França. Ou elle não fosse inglez.
Emfim, ás onze horas cessou Mr. Richard de fallar; as palpebras começaram a pesar-lhe; a chamma do fogão a amortecer, sem que as tenazes fizessem o seu officio, avivando-a.
Meia hora depois, separava-se a familia, não tendo Carlos, em toda a noite, dito uma duzia de palavras.
Jenny acompanhou ainda algum tempo o irmão através dos corredores, que conduziam ao quarto de cada um.
—Então que tens tu a dizer da minha conversão? d'esta commovente e miraculosa regeneração do filho prodigo?—perguntou Carlos a Jenny, quando chegavam á porta da sala da livraria, onde deviam separar-se.
—Que não sei se será muito duradoura—respondeu a irmã.
—E como queres que o seja, Jenny? Não viste que narcoticas delicias as d'este conversar ao fogão? Dormir é um prazer; mas na minha idade!
—Então, Charles!—disse Jenny, olhando para elle, com ar de reprehensão.
—Olha, minha boa Jenny, acredita o que te digo; eu fui hoje sincero devéras nas minhas tentativas de reconciliação com a fada do lar domestico, com aquelle genio bom, que protegia a «gata borralhenta» na historia que nos contavam em creança. Vim para casa, sonhando umas delicias de viver intimo, as quaes, infelizmente, tive o desgosto de achar que eram illusorias. Tanto azul e dourado que via transformou-se em uma côr... pardacenta...
—Talvez tu sejas muito exigente.
—Ai, não o era, não. Mas que queres? Posso ter coragem para ouvir ámanhã e depois e sempre a historia do perú do reverendo Jackson? a das festas do Lord Mayor? a das assuadas á rainha Carolina? ou deve-se-me estranhar que deserte diante das subtilezas theologicas dos doutores da nossa igreja, ou...?
—Tens razão; é preciso principiar por educar o coração, antes de tentar regenerar-te.
—O coração?! Que queres dizer?
—Tu vens para casa, como vaes para o theatro; procuras distrahir-te. Ora é claro que este viver de familia não entretem uma imaginação como a tua, se é só para satisfazeres a imaginação que ficas; e concebo que tudo isto te deve ser insupportavel, se o coração se fechou já de todo aos unicos gôsos, que nós podemos prometter-te.
—Não me faças tão endurecido, que não saiba já apreciar os tocantes prazeres d'essa convivencia intima, Jenny. Julgas que não sei o que vale a tua affeição e até a do pae? Mas ouve, filha, e não sejas muito severa commigo. Emquanto o pae ha pouco fallava, muito á sua vontade, na portentosa companhia das Indias Orientaes, eu estava a pensar...
—Em quê?
—Estava a pensar em que eram inteiramente falsas certas ideias, muito bonitas, que, esta tarde, durante um passeio, que dei pelo campo...
—Pelo campo!... Tu?!
—É verdade, pelo campo, eu... mas... certas ideias, dizia, que me haviam occorrido por lá. Agora vejo melhor; e penso que se não deve até viver tão ligado, como era costume na antiga vida patriarchal. É justa, ou desculpavel pelo menos, esta tendencia moderna para afrouxar um pouco mais os laços de familia, sem amortecer de todo os sentimentos que a animam e unem, mas tornando mais independentes os habitos de viver de cada um. E é assim. Que se lucra em reunir em um feixe apertado dois ou tres homens de indoles e de gostos diversos, só porque são parentes, a ponto de impedir-lhes os movimentos, e a liberdade de acção? O mais que succede, é nenhum d'elles poder dispôr de toda a energia das suas faculdades; incommodam-se reciprocamente, de apertados que estão, e... odio não direi... mas... ás vezes... certa má vontade... pequenas dissensões, e... quando menos se espera, mais azedas discordias ainda, são as inevitaveis consequencias d'isso.
Jenny abanava a cabeça, fitando o irmão, emquanto elle fallava.
—Que doutrinas!—disse ella por fim—que triste philosophia a tua... de hoje. Cada vez te comprehendo menos, Charles.
Carlos pôz-se a rir.
—Então porquê, Jenny? Que achas tu em mim de tão incomprehensivel?
—Ha dias... na manhã que se seguiu a uma das muitas noites, que passas fóra de casa, e quando era mais natural que estivesses n'estas ideias de agora, fallaste-me com eloquencia e convencimento nas doçuras da vida de familia; persuadirias d'aquella vez o mais extraviado. Foi, ainda me lembro, a proposito de uns versos, escriptos por um amigo no teu album. Hoje então...
—Tudo se explica; é pela razão, que eu disse. Tentei apertar-me nos taes ambicionados laços, seduzido pelas promessas dos romancistas moralisadores; a final vi que me magoavam como laços que eram... Mas que versos foram esses, que me despertaram tão salutares ideias? Não me recordo.
—Se queres que t'os leia?...—perguntou Jenny, pousando a mão na chave da porta da bibliotheca, como preparando-se para abril-a.
—Se quero? peço-t'o.
Os dois irmãos entraram na sala quadrada, onde, até a meia altura da parede, corria uma estante de palissandro, abastecida de magnificas brochuras e encardernações inglezas. Havia no meio da sala uma solida mesa rectangular, em estylo antigo, com embutidos de metal nos fechos, lavores de primorosa talha nas faces, e apoiada em grossos pés, torcidos em espiral,—um perfeito modelo d'essa bella mobilia ultimamente resuscitada, graças sobre tudo ás predilecções dos inglezes, que a teem tornado já rara, de muito que a procuram. Cobriam esta mesa varias publicações recentes, periodicos estrangeiros e do paiz, e gravuras; e em volta d'ella, commodas poltronas, e escabellos com assentos estofados parecia convidarem á leitura.
Jenny pousou a luz, e, pegando em um album, que estava entre os outros livros e periodicos, principiou folheando-o, emquanto o irmão se sentava ao lado d'ella.
—Se me não engana a memoria—dizia Jenny—é a traducção de uma lenda popular da Bretanha que se intitula...—Tendo encontrado justamente a pagina que procurava, concluiu:—Amel e Pennor.
—Não tenho já a menor ideia do que seja.
—Ora ouve então.
E Jenny principiou a ler, com suavidade e graça inexprimivel, a seguinte lenda, verdadeira ou falsamente attribuida por um moderno escriptor francez á musa popular da Bretanha.[1]
—Longe, longe d'aqui, nas costas da Bretanha,
Poetico paiz, que um mar sinistro banha,
Vivia, ha muito tempo, um pobre pescador,
Que se chamava Amel, com a mulher Pennor.
Tinham elles um filho, uma creança loura,
Um anjo, que o porvir dos paes inflora e doura;
Ao voltarem a casa, alegres, todos tres,
Na praia os surprende a noite de uma vez.
Crescia o mar veloz, medonho, ingente, forte!
N'esse tempo as marés eram vivas. A morte
Sobre as ondas boiava, indomita, cruel!
Olhando para a esposa, assim lhe diz Amel:
—«Pennor, vamos morrer! A vaga se aproxima!
Viverás mais do que eu! Animo! Sobe acima
Dos hombros meus, mulher. Pousa-te bem. Assim.
E, ao veres-me sumir... ai, lembra-te de mim!»
Pennor obedeceu. Firmando-se na areia,
Desapparece Amel na vaga, que o rodeia.
—«Amel! bradava a esposa; ai, pobre amigo meu!
Qual de nós soffre mais?—tu, que morres, ou eu,
Que te vejo morrer?»—E as aguas, que subiam,
O corpo da infeliz no vortice envolviam.
Olhando para o filho, assim lhe diz a mãe:
—«Filho, vamos morrer! Olha a maré que vem!
Viverás mais do que eu! Vá! filho, vá! coragem!
«Sobe aos meus hombros, sobe! e ao tragar-me a voragem,
Ai, lembra-te de mim e de teu pobre pae!»
E o mar a submergiu. Chora a creança e vae
Pouco a pouco afundir-se. Á flor da agua revolta,
Apenas já fluctua a trança loura e solta...
...Uma fada passou sobre o affrontado mar;
Viu o cabello louro, em baixo, a fluctuar;
Estende a mão piedosa e, segurando a trança,
Com ella attrahe a si a pallida creança.
E, sorrindo, dizia:—«Ai, que pesada que és!»
Mas viu cêdo a razão; inda segura aos pés
Do filho estremecido, a pobre mãe começa
A erguer tambem da onda a humida cabeça.
Sorriu a boa fada, ao ver assim os dois,
E repetiu ainda:—«Ai, que pesados sois!»
É que, após a mulher, seguia-se o marido
Estreitamente aos pés da terna esposa unido.
Ao vel-o, inda outra vez a meiga fada riu,
E, leve, para a praia o vôo dirigiu
Com este cacho vivo, esta humana cadeia,
Cujos élos o amor piedosamente enleia.
Pousando o livro, Jenny continuou:
—Seguem-se mais quatro versos, consagrados á moralidade do conto, os quaes talvez me julgues dispensada de ler, por inuteis.
—De certo. A allegoria é transparente, até sem commentarios. Mas, dize-me tu uma cousa, Jenny: que faria ou que diria a boa fada se, pairando sobre a praia, um dia, em que as marés não fossem vivas, nem o mar ameaçasse devorar a piedosa familia... que faria ou diria ella, se encontrasse os tres formando o cacho vivo da imagem, tão ridiculo n'esse caso, como tocante nas condições, em que o considera a lenda? A fada por certo que sorria tambem, mas acrescentando d'essa vez: «Ai, que varridos sois!» Dize-me agora se queres que eu ajunte alguma cousa tambem, correspondente aos taes quatro versos de moralidade, que supprimiste?—terminou Carlos, tocando levemente as faces de Jenny, e com um sorriso triumphante, ao qual ella correspondeu com outro, mas replicando:
—Não, não é preciso. Mas repara, Charles, que as tempestades no mar formam-se ás vezes em um momento. E ninguem póde prever a época, em que é para receiar o perigo. Não viste como os pescadores voltavam a casa, «alegres todos tres», portanto confiados no mar? Se, tendo esta confiança, se houvessem separado e não caminhassem com as mãos unidas? Ao vir a maré, nem Amel procuraria que a esposa lhe sobrevivesse, nem Pennor tentaria salvar o filho, nem o cabello louro da creança, vindo á tona da agua, attrahiria as vistas da fada bemfazeja, dando-lhe occasião de salvar aquelle ... cacho vivo... Entendes?
—E tão longe ando eu já, que vos não possa offerecer os hombros, se a maré vier um dia ameaçar-nos?
—Não, Charles; nem é a ti, tal como és, que eu ralho e quero mal; mas a um Charles, que ás vezes gostas de fingir. É singular! ha certas almas generosas que teem o vicio opposto ao da hypocrisia: esforçam-se por parecerem más! Para que has de estar a fazer mentir a tua bôca, dizendo o que não sentes?
—Não nego que houvesse algum mau humor nas minhas palavras de ha pouco, mas...
Jenny collocou-lhe a mão diante dos labios.
—Que esse «mas» fique para ámanhã. Por emquanto inda não confio muito n'elle.
—Então negas-me a justificação?
—Não vês que, melhor do que tu, te está a justificar a minha confiança? É por isso que não quero ouvir-te. É tarde. Boa noite, Charles.
—Boa noite, Jenny.
E os dois irmãos separaram-se, apertando cordialmente as mãos.
Carlos ía mais reconciliado outra vez com as doçuras da vida domestica. Ficára-lhe muito agradavel impressão d'este dialogo com Jenny, para que podesse deixar de ser essa a sua opinião final.