Chóó... Pan...
CIDADE duvidará do caso. Não obstante, aquelle monjolo do Dito Nunes, no Varjão, foi durante mezes o palhaço da zona. No bairro dos Porungas, sobretudo, onde assistia Pedro Porunga, mestre monjoleiro de bem soada fama, fungavam-se á conta das trapalhices do engenho risos sem fim.
Sitiantes ambos em terras proprias, convizinhavam separados pelo espigão do Nheco, e por malquerença antiga.
Levantara Nunes uma paca, certo domingo, mas a bicha, dobrando o morro, esbarra de frente com um Porunguinha, casualmente a lenhar por ali. Zás! Uma foiçada na volta do apá dá com ella em terra. Até ahi nada. Mas comeu-a, sem ao menos mandar um quarto de presente ao legitimo dono. Isto foi aggravo. Porque afinal de contas era uma paca de nomeada. Sabida como um vigario, dizia o Nunes, nem cachorro mestre, nem mundéo podiam com a vida della. Escapulia sempre. A gente do outro lado não ignorava isto. Paca velha e matreira tem sempre a biographia na bocca dos caçadores. Ora, justamente no dia em que, n'uma batida feliz, apanhava-a desprevenida, fazer aquillo, o Porunguinha? Mas é uma criança. Sim, mos o pae não approvou? Não disse, entre risadas. o Nunes que se fomente? Haviam de pagar.
Veiu dahi a malquerença. O espigão vinha do periodo um pouco mais remoto em que a crosta da terra encoscorou.
Aggravava a dissenção uma rivalidade quasi de casta. Nunes pertencia á classe dos que decaem por força de muita cachaça na cabeça e muita saia em casa. "Filho homem" só tinha o José Benedicto, d'appellido Pernambi, um passarico desta alturinha, apezar de bem entrado nos sete annos. O resto era uma "recula" de "familias mulheres", Maria Benedicta, Maria da Conceição, Maria da Graça, Maria da Gloria, um rosario de oito Mariquinhas de saia comprida.
Tanta mulher em casa amargava o animo de Nunes, que nos dias de cachaça ameaçava afogal-as todas na lagoa, como a ninhada de gatos.
Consolava-se amimando Pernambi, que aquelle ao menos logo estaria no eito a ajudal-o no cabo da enxada, emquanto o mulherio inutil mamparrearia por ali a espiolhar-se ao sol.
Pegava então do menino e dava-lhe pinga. A principio com caretas, que muito divertiam o pae, o engrimanço pegou lesto no vicio. Bebia e fumava, muito sôrna, com ares palermas de quem não é deste mundo. Tambem usava faca de ponta á cinta.
— Homem que não bebe, não pita, não tem faca de ponta não é homem, dizia Nunes.
E o pequira, conscio de que era homem, já batia nas irmans, cuspilhava de esguicho, dizia nomes á mãe, além de muitas outras coisas proprias de homem.
Uma serigaita americana, em viajem de descoberta ao Brasil, notou em livro de impressões que os meninos da roça pitavam, usavam grandes facas na cintura e tinham ares de pequenos facinoras, o que sobremodo a arrepiava de terror.
Excellente senhora!
A observação não passou sem rebate. Um padre hespanhol, amigo do paiz, publicou no Rio um folheto desaggravando a dignidade nacional, a honra da patria e mais coisas offendidas pelos aleives da americana.
Excellente amigo!
Eu, de mim, fico neutro ; não juro nem pela "Miss", nem pelo reverendo. Só affirmo que Pernambi com sete annos pitava, usava lapeana e bebia cachaça, invencionice a que se não atreveu a calumniosa detractora.
Do outro lado tudo corria pelo inverso. Commedido na pinga, Pedro Porunga casára com mulher sensata que lhe dera seis "familias", tudo homem.
Era natural que prosperasse, com tanta gente no eito. Plantava, porisso, tres alqueires de milho, tinha dois monjolos, moenda, sua mandioquinha, sua canna, além d'uma egua cheia e duas porcas de cria.
Caçava com espingarda de dois canos, "imitação de Laporte", boa de chumbo como não havia outra.
Morava em casa nova, bem colmada de sapé de boa lua, aparado a linha, com mestria, no beiral; os esteios e portaes eram de madeira lavrada, e as paredes rebocadas a mão por dentro, coisa muito fina.
Já o Nunes, pobre do Nunes! não punha na terra nem alqueire de semente.
Teve egua, mas barganhou-a por um capadele e uma espingarda velha. Comido o porco, sobrou do negocio o caco da picapau, d'um cano só e manhosa de tardar fogo.
A sua casa, de esteios roliços e portas de embau'ba rachada, muito encardida de pienman, prenunciava tapera proxima.
Capado nenhum. Gallinhada escassa.
Ao cachorro Brinquinho não lhe valia ser mestre paqueiro de fama; andava de barriga ás costas, com bernes no toiliço. O pobresinho não caminhava dez passos sem que, mordido, parasse, pondo-se aos redopios sobre us quartos trazeiros tentando inutilmente aboccar o parasita inattingivel. Que preasse. Cachorro é bicho ladino e o matto anda cheio de preás atolambadas. Tudo mais no Varjão afinava pela mesma tecla.
Foi quando contaram ao Nunes que Pedro Porunga trazia negoció d'uma besta arreada.
Besta arreada, o Porunga! Doeu-lhe aquillo no fundo d'alma. Era atrepar demais.
— Que ? ! já roncam assim ? ! bravateou. Pois hei de mostrar á Porungada quem é João Nunes Eusebio dos Santos, da Ponte-Alta !
E entrou-se, desd'ahi, de grandes atarefamentos. A mulher pasmava da subitanea reviravolta, duvidando e esperando.
— Durará esse fogo? Quem sabe!
Planeava Nunes grandes coisas, roça de tres alqueires, concerto de casa, monjolo... Aqui a mulher arrepanhou muxoxos:
— Monjolo? Ché, qu'esperança!
O marido, mettido em brios, roncou:
— Bóto, mulher, bóto monjolo, bóto moenda, bóto até moinho! Hei de fazer a Porungada morder a munheca de inveja. Vae ver.
Com assombro geral não ficou em conversa fiada a promessa. Nunes remendou, mal e mal, a casa, derrubou um capoeirão descançado de oito annos, e num esforço de mouro metteu na terra nove quartas de milho.
Pedro soube logo da bravata.
— Eh! Aquillo é fogo de jacá velho. Calor de pinguço não dura.
O anno correu bem. Vieram chuvas a tempo, de modo que em Janeiro o milho desembrulhava pendão, muito medrado de espigas. Nunes não cabia em si. Percorria as roças, contente da vida, unhando os caules polpudos já em pleno arreganhamento da dentuça vermelha e palpando as bonecas tenrinhas a madeixarem-se duma cabellugem louro-translucida. Segurava então a barbica do mento e sonhava grandezas futuras, balanceando prós e contras. Os contras já estavam de fóra. Só havia prós. E concluia, entrando em casa, para a mulher:
— Este anno quebro um milhão deșgrammado!
Carecia, pois, de armar monjolo. Desdobrado em farinha o milho, vinham dobrados os lucros. Não foi o que empolou os Porungas, a farinha? Uma resolução de tal vulto, entretanto, não se toma assim do pé para a mão: era preciso meditar, calcular. E Nunes, 'maginava, 'maginava...
O "chóó-pan" do futuro engenho batia-lhe na cabeça como um ritornello de musica do céu.
— Hei de mostrar ao Porunga que não é elle o unico monjoleiro do mundo. Empreito o serviço com o compadre Teixeirinha, da Ponte Alta.
A mulher botou as mãos na cabeça.
— Nossa Virgem ! E' coisa de louco ! Pois o compadre nem braço tem...
— Bééé! urrou Nunes estomagado, cala essa bocca! Mulher não entende das coisas!
E ella, nas encolhas:
— 'sta bom. Depois não se queixe...
— Bééé! rematou o marido.
Esta troada era o argumento decisivo de Nunes nas relações familiares.
Em roncando o “bééé", mulher, filhas, Pernambi, Brinquinho, todos se escoavam em silencio. Sabiam, por dolorosa experiencia pessoal, que o ponto acima era o porretinho de sapuva. E preferiam ficar no ponto abaixo.
Se a mulher emmundecia, emmudecia com ella a razão, porque o Teixeirinha Maneta era um carapina ruim inteirado, que vivia de biscates e remendos. Só a um bebedo como o Nunes bacorejaria a idéa de metter a monjoleiro um taramela daquelles, maneta e, inda por cima, cego d'uma vista. Mas era compadre e acabou-se. Bééé!
Mais uma semana passou Nunes em trabalhos de 'maginação. Coçava lentamente a cabeça, pitava enormes cigarrões, absorto, o olho no milharal e o sentido em coisas futuras. Decidiu-se, por fim. Rumou á Ponta Alta e trouxe de lá o velho com a ferramenta.
Só restava solver o problema da madeira. Nas suas terras não havia senão pau de foice. Pau de machado, e capaz de monjolo, só a peroba da divisa, velha arvore morta que servia de marco entre os dois sitios, tacitamente respeitada de lá e de cá. Nunes viu nella o sonhado despique. Deital-a-ia por terra sem dar contas ao outro lado, como lhe fizeram á paca. Boa peça! E gozava-se da picuinha, planeando derrubal-a de noite, a modo que, pela madrugada, quando os Porungas dessem pela coisa, nem S. Antonio remediaria o mal.
Dito e feito. Dois machados roncaram no pau alta noite, e inda não arraiava a manhan quando a peroba estrondeou no chão, tombada em terras do Nunes.
Os Porungas, advertidos pela ronqueira, mal lusco-fuscou o dia sahiram a sondar o que foi, o que não foi.
Dão logo com a marosca. Pedro, á frente do bando, interpella:
— Com ordem de quem, seu...
— Com ordem da paca, ouviu? — revida Nunes provocativo.
— Mas paca é paca e essa peroba é o marco do rumo, meia minha, meia sua.
— Pois eu quero gastar a minha parte, deixo a sua pr'ahi, retrucou Nunes apontando a cavaqueira cor de rosa.
Pedro continha-se a custo.
— Ah! cachorro, não sei onde estou que...
— Pois eu sei que estou em minha casa e que bato fogo na primeira "cuia" que passar o rumo.
Esquentou o bate-bocca. Houve nome feio a valer. O mulherio interveiu com grande descabellamento de palavrões.
Mas Nunes, radiante, de espingardinha na mão, berrava para o Maneta:
— Vá lavrando, compadre, que eu sosinho escóro este cuiame.
A Porungada, afinal abandonou o campo, para não haver sangue.
— Você fica com o pau, cachaceiro. mas deixe estar que inda ha de chorar alguma lagrima de sangue p'r'amor disso.
— Bééé, estrugiu Nunes triumphalmente.
Os Porungas desceram, resmoneando em conciliabulo. seguidos do olhar victorioso de Nunes.
— Então, compadre? Viu que cuiada chóca? E' só chá de lingua, pé, pé, pé, mas chegar mesmo, quando! O guampudo conheceu arruda pelo cheiro!
E assombrou o velho com muitos lances heroicos, quebramentos de cara, escóras de tres e quatro, o diabo. E concluiu:
— O dia está ganho, compadre, largue disso e vamos molhar a garganta.
A molhadela de garganta excedeu a quanta bebedeira tinham na memoria.
Nunes, Maneta e Pernambi, confraternisaram num bolo acachaçado, commemorativo da victoria, babujantes, até que uma somneira lethargica os derreou como postas de carne inerte espanhadas pelo chão.
A mulher, com a derradeira Maria pendurada ao seio magro, olhava para aquillo, sacudindo a cabeça, scismativa:
— Que monjolo sairá disto, mãe do céu!
Evaporados os fumos do alcool, tornaram á peroba, no dia seguinte, muito acamaradados.
A cachaça cimentára o compadresco antigo, e a feitura do monjolo foi iniciada com grande quebreira de corpo.
Nunes passava os dias na obra, vendo o compadre desbastar a madeira com um braço só. Pasmava daquillo, e do adjutorio que ao braço perfeito dava o toco aleijado. Entrementes, debulhavam historias. O velho sabia coisas, e Nunes respondia com outras, tendenciadas sempre a patentear a ruindade dos Porungas.
Falquejado o tóro, correram a linha, empapada num mingáu de carvão. Pegue nesta ponta, compadre, dizia o velho, agora estique; isso. E tomando na ponta dos dedos o meio do cordel, "plaf", chicoteava a madeira, riscando nella um traço negro.
Nunes revelou grande vocação para esfria-verruma.
Esfria-verrumas são os "empaliadores" dos carapinas. Sentam-se com uma nadega á beira da banca e pasmam durante horas do rebote correr na taboa encaracolando fitas, ou do formão ir lentamente abrindo uma fura. Ora pegam da enxó, examinam com muita attenção o cabo, a lamina, e passam o dedo pelo fio. Ora tomam d'um goivo e perguntam: é Grive? (Greaves). Quanto custou? E quando sae a verruma da madeira, quente da fricção, pegam della e se põem a sopral-a, muito serios, até que esfrie.
Emquanto isso Maneta, desageitadamente, ia escavando o cocho a machado e enxó. Depois rasgou as furas da haste e afeiçoou a munheca. Promptas que foram, atacou o pilão. Escava que escava, em tres dias pol-o de lado, concluso. Restava sómente apparelhar a virgem.
— O compadre sabe a historia do pau de feitiço?
Nunes não sabia. Nunes não sabia coisa nenhuma desta vida, tirante emborcar o gargalo e detrahir Porungas.
Maneta. sem interromper o esquadrejamento da virgem, narrou o caso.
Ouvira a lenda ao pae, o Teixeirão Serrador, madeireiro afamado.
Em cada eito de matto, dizia elle, ha um pau vingativo que pune a malfeitoria dos homens. Vivi no matto toda a vida, lidei toda a casta de arvore, desdobrei desde embau'va velha e embirussu', até balsamo, que é raro aqui. Dormi no estaleiro quantas noites! Homem, fui um bicho do matto. E de tanto lidar com paus fiquei na supposição de que as arvores têm alma, como a gente.
— T'esconjuro! espirrou Nunes.
— Isto dizia o meu velho, eu por mim não dou opinião. E têm alma, dizia elle, porque sentem a dor e choram. Não ve como gemem certos paus, ao cair? E outros como choram tanta lagrima vermelha, que escorre, e com o sol arrezina? Ora pois têm alma, porque neste mundo tudo é criatura de Deus.
— Lá isso...
Então, dizia elle, ha em cada matto um pau, que ninguem sabe qual é, a modo que peitado para a desforra dos mais. E' o pau de feitiço.
O desgraçado que acerta metter o machado no cerne delle, pode encommendar a alma p'r'o diabo que está perdido.
Ou estrepado, ou de cabeça rachada por um galho secco que despenca de cima, ou, mais larde, por artes da obra feita com a madeira, de todo o geito não escapa. Não 'dianta se precatar, a desgraça peala mesmo, mais hoje, mais amanhã, a criatura marcada.
Isto dizia o velho, e eu por mim tenho visto muita coisa. Na derrubada do Figueirão, alembra-se? morreu o filho do Chico Pires. Estava cortando um guamerim quando de repente soltou um grito. Acode que acode, o moço estava com o peito varado até ás costas. Como foi? Como não foi? Ninguem entendeu aquillo. Meu pae ficou pensativo e disse: é feitiço de pau.
Como este, quantos casos? O mundo está cheio. O Sebastiãosinho da Ponte-Alta: fez uma casa, o pau da cumieira elle mesmo derrubou. Pois não é que a cumieira arreia e estronda a cabeça do rapaz?
Porisso o velho, sabido que era, antes de pegar um serviço especulava primeiro se por alli perto não tinha havido desgraça. Era para ver se o feitiço estava solto ou preso, e precatar-se.
Com estas e outras ia Maneta florejando de lerias as horas de trabalho, emquanto dava os derradeiros retoques na virgem.
Estava prompto o monjolo. Nunes, jubiloso, via o primeiro sonho das futuras grandezas quasi realizado. Faltava o assentamento, que é nada, e porisso, contente, batia palmadas amigas na peroba vermelha
— Ahi, minha velha, mansinha, hein? Ha de chamar-se Tira-prosa — tira-prosa de Porungas, Cabaças e Cuias, eh! eh!
Recolheram cedo nesse dia para solennisar o feito a custa d'um ancorote de cachaça, que esvasiaram a meio.
Dias depois, bem fincado, bem socado, o monjolo recebeu agua. Destapada a bica, um gorgolão d'enxurro espumejou no cocho, encheu-o, desbordou para o "inferno". A engenhoca gemeu na virgem e alçou o pescoço. O cocho despejou a aguaceira, “chóó!” a munheca bateu firme no pilão, "pan!"
Nunes pulava d'alegria:
— Conheceu, Porungada chóca, quem é João Nunes Eusebio, da Ponte-Alta?
Mas não lhe bastou aquelle barulho, nem a grita da meninada a palmear, nem os ladridos de Brinquinho que, espantado da maluqueira, latia no alto d'um comoro, a salvo de ponta-pés. Queria mais. Correu á espingarda, espoletou-a, e erguendo-a para o "outro lado" desfechou. Mas o caco velho da picapáu não compartilhava da alegria geral, rebentou a espoleta e calou-se. Nunes inda a manteve uns segundos alçada, esperando o tiro. Como o fogo tardasse demais, remessou com ella pra longe, embrulhada n'um palavrão immundo.
Lembrou-se de tres foguetes sobrados de uma reza; atacou-os em direcção aos Porungas.
— Cheira essa polvora, cuiada!
Infelizmente as bombas, mofadas, negaram fogo por sua vez.
— Tudo nega, compadre, vamos ver se até o ancorote nega tambem.
Não negou.
E a prova foi roncarem logo pr'aii, como dois gambás.
No outro dia partiu Maneta para a Ponte-Alta, com grande sentimento do Nunes que perdia nelle um companheirão.
Quanto ao monjolo, como não houvesse milho, ficou a sua estréa para quando se quebrasse a roça.
Cessaram as chuvas do verão. Entrou estio, refrescado, limpo. Amarellaram as folhas do milharal, as espigas penderam, maduras. Começou a quebra.
Nunes, impaciente, debulhou o primeiro jacá recolhido, e atuchou o pilão.
Ai! Não ha felicidade completa no mundo. O engenho provou mal. Não rendia a cangica, a haste, desproporcionada ao cocho, não dava o jogo da regra. A mão, por muito leve ou por defeito de esquadria na virgem, ao bater guinava á esquerda, espirrando milho para fóra.
Por mal de peccados á primeira chuvinha o pilão entrou a rever agua. Fôra escavado em madeira ventada. Não prestava.
Nunes, de má sombra, represando a colera, metteu-se a reparar tantas torturas. Diminuiu o peso ao macaco, engrossou as aguas, amarrou d'alli, especou d'acolá, calafetou as fendas com saibro. Consumiu dias em lucta surda contra as manhas do mal engonçado. Mas o raio do mostrengo respondia a cada remendo com uma reincidencia de desalentar.
O pobre homem explodiu, então. Da bocca lhe espirraram injurias sem fim contra o patife do Maneta.
— Excommungado do diabo de maldelazento de maneta do inferno...
Impossivel metter no papel todas as contas do rosario ; as miudas inda cabem, mas as grau'das não podem sair do Varjão.
Além de injurias, ameaças. Que iria á Ponte-Alta rachar o compadre a foice, que lhe vasava a outra vista, que...
Num desses desabafos a tola da mulher metteu a colher torta no meio.
— Eu bem disse, eu bem avisei. Mas o queixo duro...
Ai! Não concluiu a phrase. Nunes, passando a mão na sapuva, incarnou na esposa o odiado maneta, e deslombou-a n'uma sova de concertar negro ladrão.
— Toma, cachorro! Toma excommungado do inferno! Aprende a fazer monjolo, porco sujo! E malhava...
A mulher, urrando, sumiu-se aos pinotes matto a dentro, seguida do mulherio miudo da casa, retransido de pavor; e por oito dias andou ella em esfregações de salmoura pela polpa avergoada. Mas Nunes melhorou consideravelmente com o derivativo. Mundificou-se da bilis, e socegou.
A nova de taes successos chegou á Porungada. Pedro, exultante, não teve mão de si; queria ver com os proprios olhos a caranguejola que o vingava tão a pique. Meditou um plano, e lá um dia transpoz o espigão, rumo á casa do rival. Quando voltou vinha espremendo risos fungados.
— Eh! eh! minha gente! Vocês nem calculam. Quando quebrei o serrote já ouvi o barulho, "chóó-pan", uma ronqueira dos diabos. Disse cá commigo: roncar, elle ronca, eh! eh! Fui chegando. O Nunes, jururu', estava debulhando milho na porta. Quando me viu entreparou, a modo que assombrado. E' de paz, — eu disse, — e me plantei diante delle : — dois chefes de familia, inda mais vizinhos, não podem viver assim toda a vida, de focinho "trucido" um p'r'o outro. O que foi, foi, Acabou-se. Toque !
Elle relanceou os olhos p'ra o lado da rouqueira, eh! eh! e muito desconchavado espichou a mão sem abrir o bico. Traga um café, gritou p'ra dentro. Enfiei os olhos pela casa: estava "assim" de mulherada na cozinha! Peguei de prosa. Elle foi respondendo. Conversa sem graça, amarradinha. Por fim especulei: e o monjolo, vizinho, ficou na ordem? Nunes amarellou que nem esta folha!
— "E' bomzinho, disse, rende bem...
— "Quero ver, eu disse, se não é curiosidade...
— "Pois vá, respondeu sem se mexer do lugar.
Eu fui.
Nossa Virgem! Aquillo nunca foi monjolo nem aqui nem na casa do diabo! Só se vê amarrilhos de cipó, e espeque, e macaco. A haste tem nove palmos e o cocho a mó' que tem dez!
— Quiá! quiá! quiá! cacarejou a roda, que em materia de monjolo era muito entendida.
— A mão não pesa, "home", não pesa nem arroba e meia! A virgem está errada, e fóra do prumo. Milho está, que está alvejando o chão. A mão pincha duna banda. Nossa Senhora! Que mundéo!
Os Porunguinhas babavam.
— Então roncar, ronca?
— Nossa! Ronca que nem uma “trumaeuta". Mas socar? o boi soca! Nem tres litros rende por noite. Homem, gentes, aquillo é coisa que só vendo!
A cara dos Porungas, annuveada desde o incidente da peroba. refloriu d'alli por diante nos saudaveis risos escarninhos do despique. E as nuvens que alli pairavam foram escurentar os céus do Varjão.
Começou a revide, um nunca se acabar de troças e pilherias. Inventavam novos traços comicos, exaggeravam as trapalhices do mundéo. Enfeitavam-n'o como se faz ao mastro de S. João. Sobre as linhas geraes debuxadas pelo velho atavam os Porunguinhas cada qual o seu buqué, de modo a tornar o pobre monjolo uma coisa prodigiosamente comica. A palavra Ronqueira entrou em giro na viziahança, como termo comparativo de tudo quanto é risivel ou não tem pé nem cabeça.
Aos ouvidos de Nunes foram bater taes rumores. O orgulho, muito medrado no periodo dos sonhos megalomanicos, murchára-lhe como fructa verde colhida antes do tempo. Impossibilitado de vingar-se, deu de criar um rancor surdo contra a Ronqueira, que, tropoga, lá ia malhando, dia e noile, "chóó-pan", muito lerda, muito parca de rendimento. E, para acalmar a bilis, dobrou as doses de cachaça.
A mulher amanhava a casa n'um grande desconsolo da vida, esmulambada, sem mais esperanças d'arranjo p'r'aquelle homem.
Pernambi, sempre rentando o pae, sornissimo, parecia um velhinho idiota. Não tirava da bocca o pito de barro e cada vez batia mais rijo no mulherio miudo.
Brinquinho desnorteára. Sentado nas patas trazeiras olhava, inclinando a cabecinha, ora para um, ora para outro, sem saber o que pensar da sua gente.
E assim, mezes.
Afinal veiu a desgraça. Feitiço de pau ou não, o caso foi que o innocente pagou o crime do peccador, como quer a justiça biblica.
Certo dia soube Nunes que o José Cuitelo, da Pedra Branca, seu compadre, puzera nome a uma egua lazarenta de Ronqueira.
Era demais!
— Até o cachorro do Cuitelo! gemen o misero passando a mão na garrafa.
Gargalaçou um gole, e:
— Pernambisinho, vem cá, bebe com teu pae, filho.
O menino não esperou novo convite: bebeu um, dois e tres goles, estalando a lingua.
O resto da garrafa soverteu-se no bucho do caboclo.
Pernambi, mal tonteado pelos effluvios do alcool, banzou um bocado por alli. Depois saiu.
Nunes estirou-se ao sol, a dormir.
Era um dia calmo d'Agosto. Ceu toldado de fumo. Sol vermelho, sem brilho, a modorrar em declinio. Folhinhas carbonisadas de samambaia desciam do alto, lentamente, a girar.
Transcorrida uma hora o bebedo acordou, e relanceando em redor os olhos mortiços:
— Qu'é delle Pernambi? — disse ás filhas acocoradas ao pé. As meninas não sabiam.
— Chamem Pernambi, — engrolou o bebedo recahindo em cochilo.
Uma pequena sahiu no encalço do irmão. cabeça oscillava de um lado para outro, como se lhe houvessem desossado o pescoço. Da bocca escorria baba e, molhadas nella sahiam palavras vagas, mal atadas.
Subito um grito, longe, alvorotou a casa.
— Mãe, acuda!
A mulher, estrouvinhada, surge de dentro, orienta-se, e corre para onde a voz. As filhas, assustadas, disparam atraz, rumo ao monjolo.
Redobram os gritos, de dôr, de desespero.
— Coitadinho do meu filho! — uiva lá longe a mãe.
Nunes soergue-se, amparado ao portal.
— Que é isso? — grunhe.
Dá de cara com a mulher, que voltava como louca, descabellada, a falar sósinha.
— Que é que foi, mulher?
A pobre mãe, arrostando com o marido, afuzila nos olhos um raio de cólera incoercivel.
— O que é? E' a tua obra, cachaceiro do inferno! E' a tua pinga, homem atôa, esterco immundo! Vá ver! vá ver! vá ver, desgraçado!
Nunes dirige-se para lá aos cambaleios.
E topa um quadro horrendo.
No meio das filhas em grita, o corpinho magro de Pernambi de borco no pilão. Para fóra, pendentes, duas pernas franzinas. E o monjolo, impassivel, subia e descia, "chóó-pan", pilando uma pasta vermelha de farinha, miolos e pellanca...
Esvairam-se-lhe os vapores do alcool e Nunes, em semi-demencia, correu ao machado, ringindo os dentes, entre uivos:
— Chegou o dia, desgraçado !
Foi uma scena lugubre aquillo.
O louco arremessava, entre rugidos de cólera, golpes tremendos contra o monjolo carnivoro. Uma pancada na mão — toma Barzabu'! outra na haste — rebenta demonio! ontra no pilão — estoura feiticeiro do diabo!
E "pan", "pan", "pan", dez, vinte, cem machadadas como nunca as desferiu derrubador nenhum com tal rijeza de pulso.
Cavacos saltavam para longe, roseos cavacos de peroba assassina. E lascas. E achas.
Longo tempo durou o duello tragico da demencia com a materia bruta.
Por fim, quando o monjolo maldito era já um montão escavacado de peças em desmantelo, o misero caboclo tombou em terra, arquejante, abraçado ao corpo inerte do filho.
E suas mãos tremulas mergulharam no cocho em procura da cabecinha que faltava...
Esta obra entrou em domínio público pela lei 9610 de 1998, Título III, Art. 41.
Caso seja uma obra publicada pela primeira vez entre 1929 e 1977 certamente não estará em domínio público nos Estados Unidos da América.