CAPITULO XLI

Da pesca do Piry.


Os selvagens do Maranhão, de Tapuitapera, e de Comã tem uma pescaria certa e annual, como annualmente a do bacalhau nos Bancos da Terra Nova.

Alguns mezes depois das chuvas, quando julgam as agoas escoadas, muitos embarcam em suas canoas, levando farinha para alguns mezes ou seis semanas, e assim vão costeando a terra á um lugar distante da Ilha 40 ou mais legoas: ahi se arrancham, levantam choupanas, e depois dedicam-se a pescaria, a caça dos crocodillos, e á procura das tartarugas.

Ahi se reunem muitos selvagens de diversas aldeias da Ilha, de Tapuitapera, e de Comã.

Apanham-se os peixes nas pôças, ou buracos de areia com pouca agoa, e quando se vae um pouco mais tarde, coagido pela estação, encontram-se essas pôças seccas e o peixe morto.

Sendo impossivel dizer-se o numero ou a quantidade d’estes peixes, faço porem comprehendel-a asseverando, que chega para carregar todos os selvagens, e ainda fica muitissimo. São grossos e curtos, não excedem porem a grossura e expessura de um braço, tem de comprimento meio pé entre a cauda e a cabeça, o focinho achatado e muito similhante ao do tenca, e parecem-se muito com os peixes maritimos chamados marujos pintados.

Apanhados nas redes, que levam, chamadas pussars, seguram-nas pelo meio dose a dose, lançam-nos com entranhas e tudo ao fumeiro para assal-os, e assim ajuntam muitos, que levam para suas casas, e com esta comida sustentam-se um ou dois mezes. Quando querem comer, tiram a pelle do peixe, seccam-na ao sol, pisam-na em um almofariz, reduzem-na á pó, com que fazem seos mingaus, isto é, suas bebidas, como fazem os turcos com o pó dos quartos de boi cozidos ao forno quando vão para a guerra.

Dirigindo-me um dia para a Ilha, achei-me em certa aldeia, onde nada tendo que dar-me para jantar, ferveram alguns d’estes peixes n’uma panella, do caldo fizeram mingau, vindo o resto no prato.

Bem contra minha vontade de nada me servi por causa do mau gosto da fumaça, porem com muito apetite comeram de tudo os francezes, que vinham commigo, achando saborosos os peixes, com grande satisfação dos indios, que os apreciam tanto á ponto de irem muito longe buscal-os.

Como se acham em tanta abundancia estes peixes em taes fóssos ou poços desde o inverno até esse tempo? Se explicações servem ja as dei no cap. 40, e por isso á ellas me refiro, acrescentando ainda o seguinte.

A grande quantidade de chuva faz transbordar os rios, os regatos, e o proprio mar, de maneira que todos estes campos ficam innundados até a altura de um homem: assim sahem os peixes do lugar natural, onde habitavam, ahi regalam-se com pastos novos a ponto de não se lembrarem de regressar a Patria, e por isso quando as agoas se abaixam, ficam presos em fóssos e poços como vimos em todos os lugares onde se dão estes factos.

A caça dos jacarés lhes é util e agradavel: são pequenos crocodillos com 8 ou 10 pés de comprimento, de pelle dura, ventre molle, sem lingua, com olhos vivos, sempre alerta e maus: accommettem o homem, cortam e devoram o primeiro membro que agarram.

Escondem-se em grotas, á margem dos rios, e sempre de emboscada, nadam como peixes, arrastam-se ligeira e brandamente, abrem a bocca, e como que intentam assustar-vos si vos encontram: põem ovos iguaes aos de galinha, porem cobertos de protuberancias, como as castanhas; dizem que são bons para comer, mas eu não affianço porque nunca os provei, pois sempre tive muito horror á estes bixos.

Chocam seos ovos, e d’elles sahem jacarésinhos, gordos, grandes e compridos, como os lagartos que vemos pelo estio correr nos muros.

É para admirar, que de tão pequeno bixo origine-se tão grande animal, e que apenas sahido da casca do ovo começa a andar e arrastar-se!

Sua carne cheira a almiscar, é doce e desagradavel: os selvagens porem não fazem caso d’isto, apreciam-na muito quando a encontram, e por isso empregam-se muito em caçal-os.

O logar Piry, humido e cheio de limo, tem muitos jacarés, que são perseguidos pelos selvagens por meio de flechas, atiradas com direcção á garganta ou á barriga, e depois acabam-nos com uma barra de ferro, escamam-nos, e cortam-nos em pedaços, que assam.

Si são pequenos, cozinham-nos com escamas, e assim preparados acham-nos muito bons e até delicados, porque assados com sua gordura, dizem elles, nada perdem de sua substancia.

Achei melhor crer do que experimentar, embora tivesse muitas occasiões de o fazer, visto que recebi muitos presentes d’elles quando voltaram os selvagens do Piry.

A recordação somente d’estes animaes me fazia nauseas até o coração, á vista d’esses pedaços.

Diziam os francezes, que o comeram, ser similhante a carne fresca de porco, um pouco mais adocicada, oleosa, e com o cheiro de almiscar.

He muito perigoso tomar-se banho n’esse paiz, a não ser em logar descoberto, porque estes despresiveis animaes se arrastam de mansinho e se atiram sobre vós.

Contaram-me, que um menino, da aldeia de Rasaiup, cahindo n’um riacho, onde hia buscar agoa, foi agarrado e devorado pelos jacarés.

Quando andei pelas costas do mar, desde Trou até Rasaiup, em companhia de muitos selvagens, elles me levaram para beber agoa n’uma grota cheia de sarças e outras mattas, e me advirtiram, que ahi ninguem se podia demorar muito por ser o escondrijo dos jacarés.

Fazem-lhes muita guerra os nossos selvagens, por gosto e utilidade, e trazem grande provisão d’elles quando voltam do Piry.

A razão de não terem lingua, estes animaes é porque segundo creio, tem a garganta e o pescoço, inteiramente inflexiveis, a ponto de não poderem olhar nem para traz nem para o lado sem moverem o corpo todo: alem disso, elles tem o maxillar inferior duro e immovel, tudo isto contrario ao uso da lingua, e só mastigam com o maxillar superior.

Eis porque agarram e devoram a presa de um só jacto, não precisando viral-a e reviral-a da garganta.

Disse S. Gregorio, que os crocodillos do Nilo chegavam a ter até o comprimento de 20 covados, a cor de açafrão, porem os do Maranhão e de suas circumvisinhanças não iam alem, como ja disse, de 10 ou 12 pés, com a differença tambem de habitarem aquelles, durante a noite, a agoa, e de dia a terra, porque busca o calor, visto serem no Egypto á noite as agoas quentes e a terra fria, e de dia vice-versa.

No Maranhão acontece o contrario: de noite ficam em terra, e de dia n’agoa, porque as agoas são frias á noite e quentes de dia, e a terra temperada.

A razão, porque este animal tem medo dos que o perseguem, e é atrevido contra os que fogem d’elle, é porque facilmente atira-se sobre este, e só com muita difficuldade se defende d’aquelles, sendo este procedimento o resultado de sua naturesa timida e assustada.

Tem só um intestino, porque não faz a primeira digestão nas carnes cortadas em bocadinhos.

Temem mais os selvagens que os francezes, e os do Nilo receiam mais os egypcios do que os estrangeiros, o que explica Solinus dizendo reconhecerem elles naturalmente pelo cheiro os que o guerreiam constantemente.

Disse um phisiologista, que quando elle devora alguem, chora a sua desgraça: não sei si será verdade.[NCH 69]

Alem d’estes exercicios, no Piry perseguem os selvagens as tartarugas, ahi em quantidade incrivel, e trazem-nas vivas tantas quantas podem.

Não são avarentos, antes sim por poucos generos alcançareis muitas.

Lembro-me, que passando algumas canoas pela nossa situação de São Francisco, por uma faquinha de custo de um soldo na França, deram-me setenta, e pela farinha, que lhes offereci para jantar, mimosearam-me com vinte e cinco, que guardei em lugar humido e fresco, deitando-lhes todos os dias um pouco d’agoa, e assim se conserváram sem comer por mais de seis semanas.

Os selvagens comem-nas com muito gosto, e dizem que ellas lhes conservam a saude, e lhes fazem bom estomago.

Cozinham-nas em seos cascos inteirinhas, sem tirar-lhes as entranhas, e nós as achamos assim preparadas muito melhores do que de outra fórma.

Si algum d’elles soffre dos ouvidos por algum defluxo tiram as mulheres o sangue d’estes reptis, misturam-no com o leite tirado de suas mamas, e com isto friccionam o fundo da orelha.

Quando arrancam o cabello dos seos corpos, com pinças de ferro, que lhes dão os francezes, esfregam a pelle com...

·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
·
(falta uma folha).