CAPITULO XVI

Outras leis para os escravos.


Consistem as outras leis, em não poderem os escravos, de ambos os sexos, casarem-se senão á vontade dos seos senhores, porque tanto uns como outros moram juntos e seos descendentes pertencem ao mesmo domno.

Os selvagens Tupinambás tomam ordinariamente para mulher as raparigas captivas, e dão suas proprias filhas ou irmans aos mancebos escravos afim de cuidarem no arranjo da casa e da cozinha.

Praticam o contrario os francezes, porque compram homens e mulheres escravas para casal-os, ficando a mulher com o dever de cuidar no arranjo da casa, e o marido com o de ir pescar e caçar.

Se acontece um francez comprar alguma rapariga escrava, mostra-a a algum joven Tupinambá, que morre de amores pelas que são bellas, depois promette-lhe que será seo genro pois ama sua escrava como si fosse sua propria filha para assim vir o Tupinambá morar com elle, casar com a rapariga, e por esta forma ter por uma escrava dois escravos, a quem trata por filha e genro, e elles o chamam seo Cheru, isto é, seo Pae.

As raparigas escravas, que não se casão, dispoem de si como querem, si por ventura seos senhores não lhe prohibem relações com certos e determinados individuos, porque então em caso contrario soffrem muito; mas quando seos senhores lhe impoem completa abstinencia, ellas lhe dizem bem claramente, que então as tomem por mulheres visto não querer, que alguem as ame.

Devem os escravos trazer fielmente o resultado da sua pescaria e caçada, e depôl-o aos pés do seo senhor ou senhora, para elles escolherem e depois lhes darem o resto.

Não podem trabalhar para outrem sem consentimento do seo senhor, e nem dar seo rebanho, que lhes deo o senhor, sem lhe dizerem antes uma palavra, pois de outra forma pode ser tomado como coisa, que não pertence legitimamente aos escravos.

Não devem passar atravez da parede das casas, somente feita de pindoba, ou de ramos de palmeira, ao contrario são criminosos de morte, porque devem passar pela porta, commum, ou atravez da parede de palmas.

Não devem fugir, porque quando são agarrados, está tudo perdido, visto que são comidos: n’este caso já não pertencem ao senhor, e sim a todos, e para este fim quando se prende um escravo fugido, sahem da aldeia as velhas, vão ao seu encontro, e gritando dizem «é nosso, entregae-nos, queremos comel-o», e batendo com a mão na bocca, gritam uns para os outros com certa expressão «nós o comeremos, nós o comeremos, é nosso.»

Vou dar-lhes um exemplo:

Um guerreiro Principal da ilha do Maranhão, chamado Ybuira Pointan,[NCH 33] quer dizer, Pau brasil, ao regressar da guerra trouxe comsigo alguns escravos, dos quaes um procurou salvar-se pela fuga, porem sendo agarrado, foram as velhas ao seu encontro batendo na bocca com as mãos, e dizendo «é nosso, entregae-o, é necessario que seja comido».

Houve muita difficuldade em salval-o apezar da prohibição de não se comerem os escravos, e si não se empregassem ameaças, elle seria devorado pelas velhas.

Si acontece morrerem de molestias estes escravos, sendo assim privados do leito de honra, isto é, de serem mortos e comidos publicamente, um pouco antes do seo fallecimento levam-nos para o matto, lá partem-lhe a cabeça, espalham o cerebro, e deixam o corpo insepulto e entregue a certas aves grandes, similhantes aos nossos corvos, que comem os enforcados e os rodados.

Quando são achados mortos em seos leitos, atiram-nos em terra, arrastam-nos pelos pés até o matto, onde lhes racham a cabeça, como acima disse, o que ja não se pratica na Ilha e nem em suas circumvisinhanças, senão raras vezes e occultamente.

Gozam tambem de muitos privilegios, que os levam a residir voluntariamente entre os Tupinambás, sem desejar fugir, considerando seos senhores e senhoras como paes e mães, pela docilidade com que os tratam cumprindo assim seo dever; não ralham com elles e nem os offendem, não os espancam, desculpam-nos em muita coisa contanto que não offenda os seos costumes: são muito compadecidos, e chegam a chorar quando os francezes tratam os seos com aspereza, e si outros se lastimam do procedimento dos francezes prestam-lhe todo o credito ao que dizem.

Quando fogem dos francezes elles os occultam, levam-lhes o sustento nos mattos, vão vesital-os, as raparigas vão dormir com elles, contam-lhes o que se passa, aconselham-nos sobre o que devem fazer, e de tal sorte que é muito difficil agarral-os, embora vão atraz d’elles uns vinte homens, e isto não fazem para com os escravos dos seos similhantes.

Vem a proposito o contar que um dia perguntei a um dos escravos, que tinha em meu poder, si não estava satisfeito vivendo commigo, não só porque lhe ensinei a temer a Deos, como tambem pela certesa, que tinha, de não ser comido, e que, quando christão, seria livre, morando com os padres como si fosse filho d’elles.

Pelo interprete respondeo-me julgar-se feliz por haver cahido nas mãos dos Padres, tanto por conhecer á Deos como por viver com elles, e si fosse para o poder de outro chefe, não estaria socegado e nem descançado de não ser comido, porque, acrescentava elle, quando se morre, nada mais se sente, quer elles comam ou não, e o mesmo para o morto: amofinar-me-ia de morrer na minha cama, e não á maneira dos grandes no meio das danças e dos Cauins, afim de vingar-me antes de morrer, dos que iriam comer-me.

Quando penso, que sou filho de um dos grandes do meo paiz, que meo pae é homem moderado, que todos o cercavam para escutal-o quando elle ia á casa grande,[NCH 34] vendo-me agora escravo, sem pintura no corpo, sem cocar, sem enfeites nos braços, e nem nos pulsos, como acontece aos filhos dos grandes das nossas terras, antes queria ser morto especialmente quando me lembro, que fui agarrado ainda menino, com minha mãe, lá na minha terra, e trazido para Comã, onde vi matar e comer minha mãe, com quem desejei morrer, porque ella me amava muito, e por isso não posso senão lamentar minha vida.

Proferindo estas palavras, chorou muito, a ponto de pungir-me o coração, visto saber por experiencia quanto são amorosos estes selvagens, para com seos paes, e estes para com elles.

Accrescentou, que depois de ter sido sua mãe morta e comida, seo senhor e sua senhora o adoptaram por filho, e elle os tratava por pae e mãe: quando fallava d’elles era com affeição inexplicavel, embora tivessem comido sua propria mãe, e ja fosse resolvido o comel-o tambem pouco tempo antes de chegarmos á Ilha.

Seo senhor e senhora tomavam o trabalho de vir vel-o em nossa casa, embora fosse necessario vencer a distancia de 50 legoas, desde sua aldeia até aqui.

Gozam ainda de muitos outros privilegios, porque lhes é permittido o namorar as raparigas livres, sem risco algum, olhar mesmo para as raparigas de seo senhor e senhora, si quizerem, e n’isto não ha muita recusa, comtudo ellas buscam os mattos e em certas cabanazinhas os esperam em hora marcada, para evitar pequeno remoque que costumam a fazer das moças de boa raça, quando se entregam a escravos, o que serve antes de riso do que de deshonra.

Vão livremente aos Cauins, e dansas publicas, enfeitando de mil maneiras o seo corpo quer com pinturas, quer com pennas, quando podem, pois estas são muito caras.

Vivem com os filhos de seos senhores, como si fossem irmãos, e em breve tempo gozam muita liberdade no seo captiveiro.