CAPITULO XVII

Quanto são misericordiosos os selvagens para com os criminosos por acaso e sem malicia.


Entre as perfeições naturaes que a experiencia me tem mostrado n’estes selvagens, nota-se uma justa misericordia, isto é, desejam a punição dos maus, quando por maldade praticam algum crime, e ao contrario são compadecidos e pedem misericordia para aquelles, que por acaso ou inadvertidamente incorrem n’alguma falta, e isto vou provar á vista do seguinte exemplo.

Maioba é uma grande aldeia, distante tres leguas do Forte de São Luiz: o seo Principal é um bom homem, amado pelos francezes, e veio fazer a nossa casa.

Tinha dois filhos fortes e robustos, ambos casados, e duas filhas, uma casada e outra solteira, bonitas e engraçadas, muito amadas por seo Pae e Mãe, de tal forma que eram perdidos por ellas e o assumpto predilecto de suas conversações, e guardavam a solteira para um francez quando voltassem os navios, diziam elles, e que os francezes se resolvessem a casar com indias.

Fundava seos castellos e sua fortuna sobre um fragil barco, similhante a aquella boa mulher, que tendo em suas mãos o primeiro ovo de sua gallinha, sua imaginação ia levantando-a até um principado, que d’ahi ha pouco cahio no chão e inutilisou-se, e com elle foi-se toda a ventura esperada por ella.

Assim este homem não tendo outra consolação senão em sua filha, poucos dias depois, por uma noite tão triste, Geropary torceo o collo d’esta plantinha, virando-lhe a bocca para as costas: coisa terrivel! estava negra como o diabo, os olhos esbugalhados e revirados, a bocca aberta, a lingua sahida para fóra, os labios superiores e inferiores revirados á deixar vêr os dentes e as gengivas, o que poderia pela tristesa e medo, que causava, matar a seos parentes.

Nunca pude saber qual foi a causa d’isto, e apenas me disseram que era infiel, e talvez vivesse deshonestamente, porem nunca deo escandalo.

Embora seo pae tivesse vendido sua filha mais velha á algum francez para d’ella abusar, depois a tirou da companhia do seo marido.

Dizem os que se acham em peccado mortal, que elles estão sob o dominio e posse do diabo, e o mesmo lhes aconteceria, si Deos quizesse.

Não foi só esta desgraça, porque uma arrasta outra comsigo, e a primeira é embaixadora da segunda.

Pouco tempo depois, este Principal fez uma festa de vinho publicamente, e para isto convidou não só os habitantes de sua aldeia, como tambem os da visinhança.

Quando todos dançavam e cantavam, quando o vinho fervia e muitos já se achavam embriagados, seos dois filhos, de que ja fallei, travaram-se de razões, e o autor da questão querendo agarrar seo irmão, por um acaso ferio-lhe no ventre com um punhado de flechas, que este trasia pelo que cahio logo banhado em sangue. Tiraram-se as flexas com muita dor, como bem se calcula, o soffrimento fez desapparecer o vinho, a festa ficou perturbada, as cantorias se mudaram em gritos e lamentos, o vinho em lagrimas, as dansas em espancamentos proprios e arrancamento de cabellos.

O infeliz pae, expectador de similhante tragedia, assentado n’uma rede d’algodão, teve um desmaio, e cahio para traz.

Voltando a si, disse aos que o rodeiavam, que de uma só vez perdeo seos dois filhos, não fallando na que tinha perdido antes, um ferido por sua culpa, e o outro que os francezes mandariam matar; todos se condoeram d’elle.

Resolveram todos os Principaes da Ilha a virem ao Forte de São Luiz interceder a favor do vivo.

Em quanto se passavam estes factos, o ferido contra sua vontade, aproximava-se da morte, chamou seo irmão, e lhe disse: sou um grande criminoso, pois de uma só vez matei muitas pessoas, isto é, a mim, a meo pae, que morrerá de tristesa e a ti porque os francezes te mandarão matar: elles são justiceiros em punir os maus: mas sabes tu o que ha? toma meo conselho, e faze o que te digo.

Os Padres que vieram com os francezes, são compadecidos, e nos amam e aos nossos filhos, e pelos seos interpretes soube que aqui vieram para salvar-nos.

Já ouvi dizer, n’uma reunião a um dos nossos similhantes, que os antecessores dos Padres baptisaram antigamente em quanto com elles estiveram, e que vio os Canibaes se abrigarem em suas Igrejas, quando faziam alguma maldade, por terem certesa de que ahi ninguem lhes faria mal.

Faze o mesmo, quando anoitecer vae com meo Pae procurar o Padre na sua cabana de Yviret, pede para te pôr na casa de Deos, que é defronte da residencia d’elle, e ahi fica, até que meo Pae, conjuntamente com os Principaes, intercedam por ti, e consigam o teo perdão do Maioral dos francezes.

Para mais facilidade, tu sabes que os Francezes necessitam de canoas e de escravos, offereça pois meo Pae ao chefe tua canoa e teos escravos, para que não morras.

Tudo isto foi cumprido pontualmente, porque este velho, Pae dos dois rapazes, foi procurar-me, rogou-me e instou-me para que recebesse seo filho na casa de Deos, e intercedesse para ser perdoado pelo Maioral dos Francezes, buscando convencer-me, entre outras, com estas razões.

«Vós outros Padres fazeis regorgitar de povo as nossas Casas Grandes, quando quereis, desejando vêr ahi grandes e pequenos, afim de ouvirem a causa, que vos obrigou a deixar vossas casas e terras, muito melhores do que estas, para nos ensinarem a naturesa de Deos, que é, como dizeis, bom, misericordioso, amante da vida e inimigo da morte, e por isso não quer que ninguem morra assim como elle morreo n’um madeiro para fazer viver os mortos.

«Dizeis ainda, que nossos filhos não são mais nossos, o sim vossos, que Deos vol-os deo, e que d’elles tomaes cuidados até a morte: mostrae-me hoje, que vossa palavra é verdadeira.

«Estou velho, perdi todos os meos filhos, só me resta um, que fez esta casa, que vos estima muito, e a todos os Padres e quer ser christão.

«Matou seo irmão sem querer, ou melhor, foi seo irmão quem se matou a si proprio com as flechas, que trazia. Rogo-te o recebas na casa de Deos, e vem commigo fallar ao chefe, porque elle nada te recusará visto estimar-te muito.

«Quiz trazer commigo o filho, a favor de quem intercedo porem elle teme muito a ira dos Francezes: actualmente anda errante e fugitivo pelos mattos, como si fosse um javaly: quando ouve o ramalhar das arvores suspeita ser os Franceses, que armados andam em busca d’elle para prendel-o e conduzi-lo a Yviret, onde será amarrado á bocca de uma peça.»

Respondi pelo meo interprete, asseverando-lhe que empregaria os meos esforços, que tinha esperança de obter o que elle desejava porque o chefe me estimava; mas que era bom, que elle fosse pessoalmente fazer seo pedido, e que eu iria depois delle.

Foi immediatamente ao Forte em companhia de um dos principaes interpretes da Colonia, chamado Migan,[NCH 35] e expôz suas razões e rogos ao senhor de Pezieux, por esta fôrma.

«Sou um Pae muito infeliz, e acabarei minha velhice como os javalys, vivendo só, comendo raizes amargas e cruas, se de mim não tiveres piedade.

«A misericordia muito convem aos grandes, e maiores não podem ser, quando usam d’ella e de clemencia.

«É teu rei o maior do Mundo, como nos contam os nossos, que estiveram em França.

«Elle para aqui te mandou como um dos Principaes da sua côrte afim de nos livrares do captiveiro dos Peros: ora como és grande, e misericordioso, usa de misericordia para com os infelizes, que são desgraçados por acaso e não por malicia.

«Bem conheço, que é preciso ser justo, e indagar o motivo para se fazer a escolha, e proceder-se a vingança sobre os maus, o que mui restrictamente observamos entre nós, desde os nossos paes, mas quando a falta não é originada por maldade nós perdoamos.

«Tenho dois filhos, como sabes, os quaes tem vindo trabalhar no teo Forte, um matou o outro por acaso e sem maldade, ou para melhor dizer, suicidou-se o mais velho nas flechas do mais moço, que está vivo, e te peço que não o persigas e sim o perdôes.

«É elle, que me hade sustentar na velhice: sempre foi amigo dos francezes, e quando algum vae a minha aldeia, chama logo os seos cães, e vae caçar cotias e as pacas para elle comer.

«Fez a cása dos Padres, e assevera-me que elles o protegem.

«Sempre foi muito obediente á sua madrasta, que o ama como si fosse seo proprio filho: seo irmão, que sem querer, elle matou, era mau, não estimava os Francezes, nunca lhes deo coisa alguma, não ia á caça para elles, aborrecia sua madrasta, e muitas vezes a zangava: quando morreo, estava bebado, e veio tomar a mulher do seo irmão, e arrancando o filho, que ella tinha ao collo, atirou o menino para um lado e a mãe para outro, dando-lhe bofetadas, embora estivesse grávida, na minha presença e á vista do seo marido, e tudo soffremos com paciencia; porem vindo agarrar seo irmão para espancal-o, ferio-se no ventre com as flechas, que elle trasia na mão e assim morreo.

«Porque perderei eu meos dois filhos, de uma só vez, e já na minha velhice?

«Si queres mandar matar o unico que tenho, mata-me primeiro, e depois a elle. Elle te dá sua canoa para a pescaria e seos escravos para te servirem.»

Admirou o Sr. de Pezieux este discurso, como depois me disse e por muitas vezes, e o referio á diversas pessoas, admirando-se de ver tão bella Rhetorica na bocca de um selvagem.

Previno-vos, que represento todos estes discursos e supplicas o mais sinceramente que me foi possivel, sem o emprego de artificio algum.

Respondeo o Sr. de Pezieux dizendo ser grande crime um irmão matar outro, mas como elle asseverava ter sido antes por culpa do fallecido do que pela do vivo, perdoava a rogo dos Padres, a quem nada queria recusar, e assegurou-lhe logo que seo filho nada soffreria, que acceitava a canoa e os escravos, porem que tudo isto lhe offerecia para o arrimo de sua velhice visto ser elle amigo dos Padres e dos Francezes.

Alegrou-se muito o bom velho com este acto de misericordia e liberalidade, e não foi ingrato, não só fazendo conhecido por toda a Ilha o facto, como tambem offerecendo ao dito Sr. e a nós tudo quanto elle e seu filho caçavam.