CAPITULO XVIII

Quanto é facil civilizar os selvagens á maneira dos francezes, e ensinar-lhes os officios, que temos em França.


No Liv. 2.º, Cap. 1.º, dos Machabeos, lemos, que o fogo sagrado do altar foi escondido no poço de Nephtar durante o captiveiro do povo e se transformou em limo.

Quando o povo regressou, já livre, os Sacerdotes apanharam este limo, e o deitaram na madeira do altar, levantado para os sacrificios.

Apenas o sol, lá de cima, começou a lançar seos raios sobre o limo, este se transformou em fogo, e devorou os holocaustos.

Desejo servir-me d’esta figura para explicar o que tenho a dizer n’este e nos seguintes Capitulos.

Convem notar, que por este fogo se deve entender o espirito humano imitando a naturesa do fogo por sua actividade, ligeiresa, calôr e claridade, o qual se torna lodo e limo, escondido n’um centro differente do seo proprio, devido isto á sua alma captiva pela infidelidade.

Quero dizer, que sendo o espirito do homem creado para conhecer a Deos, e aprender artes e sciencias, torna-se entorpecido e obscurecido entre as immundicies, quando sua alma está presa nas cadeias da infidelidade, sob a tyrannia de Satanaz, mas quando sua alma desprende-se do captiveiro pela intenção e guia dos Prophetas de Deos, sahe o espirito d’esse poço lamacento, e animado pela luz, e conhecimento de Deos, das artes, e das boas sciencias, torna-se apto e prompto para executar o que percebe e aprende, o que farei vêr, e tocar com o dedo a respeito dos nossos selvagens, e mui principalmente quando de suas perguntas mais comesinhas nasce a esperança d’elles se civilisarem, e viverem reunidos n’uma cidade, negociando, aprendendo officios, estudando, escrevendo e adquirindo sciencia.

Tenho para mim, que são mais faceis de serem civilisados, do que os aldeões de França, por ter a novidade não sei que influencia sobre o espirito afim de excital-o a aprender o que elle vê de novo, e lhe agrada.

Os nossos Tupinambás nunca tiveram ideia alguma de civilisação até hoje; eis a razão porque elles se esforção, por toda a forma, de imitar os nossos francezes, como depois direi.

Ao contrario os aldeões da nossa França estão de tal sorte enraisados em sua rusticidade, que, em qualquer conversação, embora nas cidades entre pessoas distinctas, sempre mostram signaes de camponezes.

Aos Tupinambás, depois de dois annos de convivencia com os francezes, estes lhes ensinaram a tirar o chapeu, a saudar a todos, a beijar as mãos, a comprimentar, a dar os bons dias, a dizer adeos, a ir á Igreja, a tomar agua benta, a ajoelhar-se, a pôr as mãos, a fazer o signal da Cruz na testa e no peito, a bater no peito diante de Deos, a ouvir missa e sermão, ainda que nada d’isto comprehendam, a levar o Agnus Dei, a ajudar o sacerdote á missa, a assentar-se á mesa, a estender a toalha diante de si, a lavar suas mãos, a pegar na carne com tres dedos, a cortal-a no prato, e a beber em commum, e breve farão todos os actos de civilidade e delicadesa, que se costuma a praticar entre nós, e já se acham tão adiantados a ponto de parecerem ter sempre vivido entre os francezes.

Ninguem pois poderá contestar-me, que não sejam estes factos bastante para convencer-nos do que devemos esperar e acreditar ser esta nação, com o andar dos tempos, civilisada, honesta e muito aproveitada.

Como os exemplos provam mais que outra qualquer especie de argumentação, vou contar-vos o caso de alguns selvagens educados em casa de nobres.

Actualmente ha em Maranhão uma mulher selvagem, de uma das boas raças da Ilha, que foi antigamente, quando bem pequena, tomada pelos portuguezes, e vendida como escrava á D. Catharina de Albuquerque, sobrinha do grande Albuquerque, Vice-Rei das Indias Orientaes, sob o dominio do Rei de Portugal, a qual reside presentemente em Pernambuco, e é Marqueza de Fernando de Noronha, ilha muito bella e fertil, segundo diz o Revd. Padre Claudio d’Abbeville na sua Historia.

Esta rapariga fez-se christã, e se a vestissem á portugueza não se poderia facilmente dizer qual a sua origem, se portugueza ou selvagem, mostrando sempre a vergonha e o pudor, inseparaveis de uma mulher, e occultando com cuidado a imperfeição do seo sexo.

Poderia dizer outro tanto de muitos selvagens, educados entre os portuguezes, e dos quaes alguns foram á França, e conservam ainda hoje o que aprenderam, e o praticam quando se acham entre os francezes.

É novo entre elles o uso da barba e dos bigodes, porem como vêem esse uso entre os Francezes, tambem deixam crescer tanto uma como outra coisa.

Tem incomparavel aptidão para as artes e officios.

Conheço um selvagem do Miary, chamado Ferrador, por causa do officio, que aprendeo, vendo somente trabalhar um ferrador francez que nada lhe explicou.

Sabia muito bem malhar com os outros uma barra de ferro encandecida, como se tivesse longa pratica, apesar de ser coisa muito sabida entre os officiaes do mesmo officio, que é necessario muito tempo para aprender-se a musica dos martellos na bigorna do ferrador.

Achando-se este mesmo selvagem nos desertos do Miary com seos semelhantes, sem bigorna e martello, limas e tornos, trabalhava comtudo muito bem fazendo pontas ou lanças para flechas, harpões e anzóes. Por bigorna tinha uma pedra muito dura, por martello outra de menor consistencia, e depois aquecendo ao fogo o ferro, dava-lhe a forma que queria.

Os officios mais necessarios entre elles são os de ferreiro, tanoeiro, carpinteiro, marcineiro, cordoeiro, alfaiate, sapateiro, tecelão, oleiro, ladrilhador, e agricultor.

Para todos estes officios são aptos e inclinados pela natureza.

Para o de ferreiro ou de ferrador ja referimos um exemplo.

Quanto ao officio de tecelão seria a sua especialidade se aprendessem; tecem seos leitos muito bem, trabalham em lã tão perfeitamente como os francezes, embora não empreguem a lançadeira, e nem a agulha de ferro, e sim pequenos pausinhos.

Contarei ainda uma bonita historia.

Fui um dia visitar o grande Thion, principal dos Pedras-verdes, Tabajares; quando cheguei a sua casa, e porque lhe pedisse, uma de suas mulheres me levou para debaixo de uma bella arvore no fim da sua cabana, que a abrigava dos ardores do sol, onde estava armado um teiar de faser redes de algodão, em que elle trabalhava.

Gostei muito de vêr este grande Capitão, velho Coronel de sua nação, enobrecido por tantas cicatrises, entregando-se com praser á este officio, e não podendo conter-me, perguntei-lhe a razão d’isto, esperando aprender alguma coisa de novo n’este facto tão particular, que estava vendo.

Pelo meu interprete lhe perguntei a razão, porque se dava a esse mister.

Respondeo-me, «porque os rapases observam minhas acções e praticam o que eu faço; se eu ficasse deitado na rede e a fumar, elles não quereriam fazer outra coisa: quando me vêm ir para o campo com o machado no hombro e a fouce na mão, ou tecer rede, elles se se envergonham de nada fazer.»

Eu e os que comigo então se achavam, sentiram muito prazer ouvindo estas palavras, e desejaria vel-as praticadas por todos os christãos, porque então a ociosidade, mãe de todos os vicios, não estaria em França, como actualmente se vê.

O officio de carpinteiro não lhes é muito difficil, porque os vi fazendo suas casas, e as dos Francezes, assentando seo machado, e repetindo o golpe no mesmo lugar, quatro ou cinco vezes, com tanta firmeza, como faria qualquer carpinteiro bem habil.

A arte de marcineria lhes é facil, porque com suas fouces aplainam um pedaço de pau, tão liso e tão igual, como se tivesse passado o raspador por cima d’elle.

Com o auxilio de suas facas somente, fazem macaquinhos e outras figuras de madeira.

Não precisam de serra, e nem de outro qualquer instrumento para fazer seos arcos, remos e espada de guerra, pois basta-lhes uma simples machadinha.

Cavam, arranjam suas canôas, e dão-lhes a forma, que lhes apraz.

Brevemente tractarei de outros officios, nos quaes os vi trabalhar com tal industria a ponto de parecer-me que, com pouco tempo de ensino, chegaram á perfeição.

Alem d’isto fazem muito bem vestidos, cubertas de cama, sobre-céos, sanéfas e cortinados de cama, pennas de diversas cores, que por sua perfeição se pensa terem vindo de fóra.

Não fallarei da propensão natural, que elles tem para pintar, fazer diversas folhagens, e figuras, servindo-se apenas de uma pequena lasca de pau, ou ponteiro, ao passo que os nossos pintores necessitam de tantos pinceis, compassos, regoas, e lapis.