CAPITULO XXVIII

Do cuidado que do seo corpo tem os selvagens.


Platão chamava o corpo um privilegio da Naturesa, e Crates, o philosopho, um reino solitario.

Mereceriam estas duas sentenças amplo desenvolvimento, si não nos occupassemos de uma historia, que exige estylo conciso, sem superfluidade de palavras ou digressões fóra de proposito.

Applicamos comtudo o dizer d’estes dois philosophos ao nosso assumpto para notar, que tendo a naturesa, por longos annos, recusado vestidos aos corpos dos indios, os compensara formando-os bellos e agradaveis, sem o menor auxilio de suas mães, que apenas os lavam e carregam como si fosse qualquer pedaço de pau.

Assenta-lhes muito bem a opinião de Crates chamando o corpo um reino solitario e deserto, porque assim como os animaes do deserto crescem e ficam vigorosos, em quanto residem ahi, isto é, em sua plena liberdade, assim tambem quando sob o dominio do homem e presos, embora no Palacio dos Reis e principes da terra, para serem vistos e observados como novidade, principiam logo a emagrecer, a entristecer-se, a perder o desejo da propagação e de conservação da especie, somente por terem perdido a liberdade que outr’ora gosavam no seu reino solitario.

Negando a natureza á estes selvagens viveres bem preparados, bebidas bem feitas, vestidos pomposos, leitos macios, soberbas casas e palacios, compensou-os porem, dando lhes plena liberdade como aos passarinhos no ar, e as bestas no campo, sem lastimarem-se, como fazem outros quando comparam as pretendidas commodidades d’este Mundo.

Se o diabo com o fim de roubar-lhes o bem da salvação, não se metesse entre elles, levantando novas discordias afim de se matarem e comerem reciprocamente, não haveriam por certo homens mais felizes no mundo por causa de sua natural franqueza e liberdade, que, adubando as suas carnes as transformam em perfeita e saudavel nutrição, e d’ahi provem a bellesa de seos corpos.

Espero a objecção para responder — isto é, de se terem visto muitos indios sordidos e horriveis. Respondo: não é no rosto, onde se deve observar a forma e a bellesa de um homem, e eis a razão porque Demostenes zombou, quando os embaixadores de Athenas regressando de sua commissão junto a Philippe, Rei de Macedonia, gabavam muito a formosura d’elle: não, não, disse Demostenes, não é digna de louvor a belleza do rosto de um homem, tão commum entre os Cortezãos, porem merece encomios a sua estatura, a proporção de seos membros, e a sua figura e elegancia.

Fallo de haver a naturesa dado ordinariamente aos selvagens, e especialmente aos Tupinambás, corpo bem feito, bem proporcional e elegante, e quando estragam seos rostos por incisões, fendas, e extravagancias de pinturas e de ossos, o fazem pela ideia erronea, que tem, de serem por isto reputados valentes.

Tem muito cuidado na limpesa de seos corpos: lavam-se muitas vezes, e não se passa um só dia, em que não deitem muita agua sobre si, em que se não esfreguem com as mãos por todos os lados para tirar o pó e outras immundicies.

Penteiam-se as mulheres muitas vezes.

Receiam emmagrecer, o que chamam em sua linguagem angaiuare, e lastimam-se diante dos seos semelhantes dizendo Ché-angaiuare, «estou magro,» e todos se compadecem mormente quando chegam de qualquer viagem abatidos pelo trabalho: todos o lastimam e o deploram, dizendo Deangoiuare seta, «ah! quanto está magro, só tem ossos.»

Eis a causa unica por que não podiam residir comnosco os rapazes baptisados, visto temerem muito as mães, que não emagrecessem em poder dos Francezes, os quaes suppunham ter falta de tudo.

Não consentiam que seos maridos trouxessem comsigo os filhos para vêr os Padres e as Capellas de Deos, senão á força, e com vivas recommendações para que voltassem, e quando se lembravam d’elles grande era a sua tristesa, e choravam.

Conservei em minha companhia um rapaz de Tapuitapera chamado Miguel, já baptisado, e que muito bem sabia a doutrina christã, afim de ensinal-a aos meos escravos.

Residio comigo por alguns mezes, porem não poude ficar mais por causa das importunações de sua mãe, e a dor que mostrava chorando e lamentando-se constantemente, de maneira que veio seo pae de proposito para leval-o, dizendo-lhe que sua mãe o esperava cheia de piedade (modo de fallar para mostrar compaixão): veio pedir-me licença para o seo regresso chorando por deixar-me (tanto amam e estimam seos paes!) dizendo que sua mãe estava magra, e cheia de tristesa por sua ausencia e pensando tambem que elle definhava estando comigo, asseverando-me que contaria á sua mãe o bom tratamento que eu lhe dava, e a licença que lhe concedi de voltar a sua casa.

Um de nossos escravos commetteo uma falta, pela qual ia ser castigado: mal soube elle desta resolução, e quando ia ser preso, disse que estava magro, e que não o açoitassem como si fosse gordo, porque a gordura cobre os ossos, apara os açoites e impede que a dor lhes chegue. «Si me açoitaes com força me quebraes as veias apenas cobertas pela pelle», e assim dizia por ser muito magro.

Para engordarem reuniam-se muitos indios, embarcavam-se n’uma canoa grande, muniam-se de farinha, de flechas e de cães, iam á terra firme, onde matavam a caça, que apeteciam, como veados, onças, capivaras, vaccas bravas, tatùs, e muitos passaros, e ahi se demorando em quanto havia farinha, engordavam á farta com estas comidas, e voltavam depois para a Ilha trasendo muita caça assada.

Quando á Ilha regressou da guerra do Pará o indio Brasil julgando-se magro, pedio licença ao Sr. de Ravardiere para ir á terra firme levando comsigo alguns Francezes afim de engordar, o que lhe foi permittido.

Embrenharam-se muito pelo sertão, e quando a felicidade os encheo de caça, aconteceo-lhes uma desgraça — acabou-se-lhes a farinha: viram-se obrigados a comer palmito, como si fosse pão, com a carne que tinham, o que contrariou muito os Francezes não habituados a esta especie de pão, sentindo muito que a festa não fosse completa, havendo tanta carne, sem pão e sem sal.

Aconteceo-lhes o mesmo, que a Midas, possuidor de muito ouro, quando sua mulher lhe apresentou na meza muitas iguarias, todas porem de ouro, ou então á Tantalo morrendo de sêde apezar de cercado d’agoa: o mesmo lhes aconteceo, emagreciam em vez de engordarem por não levarem a farinha necessaria.

N’este ponto os Francezes imitam os selvagens, e por isso estes os estimam.

Os Francezes residentes no Fórte pedem licença para passeiar e refazerem-se de forças.

Quando os selvagens sabem d’isto, vão á caça, e mediante a troca de alguns generos offerecem a estes passeiadores dois ou tres banquetes: findos estes regressam á sua terra, e assim vão continuando ora n’uma aldeia, ora n’outra, girando por toda a Ilha, ou provincia de Tapuitapera e Comã divertindo-se e engordando.

Os Francezes hospedados por seos compadres n’estas aldeias não são muito felizes em seos passeios, porque se ha então alguma coisa boa não é para elles, e sim para os viandantes.

Costumam os selvagens dar o melhor, que possuem aos hospedes, por dois ou tres dias, findos os quaes tratam-nos com o uso commum e trivial.

Admire-se, eu vos peço, ainda que ligeiramente, o grande amor de Deos para com os homens, dando-lhes o sentimento natural da caridade para com o proximo. O que fazem de melhor os christãos, ou observam os Religiosos, do que a caridade puramente natural dos selvagens, que não podem alcançar a gloria, bem differente do que acontece á caridade sobre natural dos christãos, que espera a recompensa da vida eterna?

O aceio do corpo faz-se por muitas maneiras, e entre ellas contam-se estas.

Trazem sempre na bocca a herva do Petun, (tabaco ou fumo) cujo fumo expellem pela bocca e narinas com intenção de seccar as humidades do cerebro e as vezes o engolem para limpar o estomago de cruezas que sahem por meio do arrôto.

Apenas acabam de comer fumam o Petun, e o mesmo praticam pela manhan e a noite, quando se levantam e deitam-se.

A proposito de Petun devo contar a ideia supersticiosa, que formam desta herva e do seo fumo.

Crêem, que esta herva os torna discretos, judiciosos, e eloquentes, de forma que antes de começarem algum discurso usam d’ella: não me parece, que seja comtudo muito supersticiosa, porque ha nisto uma razão natural: eu mesmo a experimentei, e reconheci, que a sua fumaça exclarece o entendimento dissipando os vapores dos orgãos do cerebro, fortalece a voz seccando a humidade e escarros da bocca, permittindo assim facilidade á lingua para bem exercer suas funcções.

É facil experimentar-se isto usando-se d’ella com parcimonia e em occasião propria, porque o abuso continuado d’ella não me parece bom e saudavel aos que se alimentam de bebidas e carnes quentes, porem é util aos que sentem frios e humidos o estomago e o cerebro.

Eis a razão porque o selvagem, habitante d’esta zona humida, e que bebe de ordinario somente agoa, uza constantemente d’este fumo afim de descarregar o cerebro de humidades e frialdade, e o estomago de cruezas, o que tambem praticam os marinheiros e os habitantes das praias.

Pondo-se de infusão por espaço de 24 horas esta herva, presta-se muito para purificar o corpo de infecções. Usa-se somente do vinho.

Crêem tambem que, engolindo o fumo, ficam alegres, joviaes e previnidos contra a tristesa e melancolia.

Vou referir-vos alguns casos que me contaram:

Um selvagem que foi morto na bocca de uma peça, e de quem hei-de fallar no Tratado do Spiritual, antes de se encaminhar para o supplicio pedio um macinho de Petun, como ultima consolação d’esta vida afim de morrer com energia e alegria. Apenas alcançou o que desejava mostrou-se alegre e sempre cantando até o fim.

Quando seos companheiros o ataram á bocca da peça, elle pedio para que não amarrassem o braço direito de fórma que o embaraçasse de levar á bocca o Petun: quando a bala dividio o seo corpo em duas partes, uma foi para o mar, e a outra cahio na base do rochedo, e n’esta achou-se ainda seguro pela mão direita o mólho de Petun.

Os selvagens sentenciados á morte não soffrem a pena sem usarem antes do Petun, conforme o costume da terra, e não deixavam este habito nem mesmo os doentes.

Os feiticeiros do paiz servem-se d’esta planta com proveito, o que agora não refiro, e sim guardo para o fazer mais adiante, si não me esquecer.

Empregam ainda outro meio para a conservação da saude.

Comem muitas vezes e pouco de cada uma: depois que comem lavam muito bem a bocca, e se tem sêde quando comem, bebem pouco apenas para apagar a sêde, gargarejam bem a agua na bocca para aplacar o ardor do paladar.

Cozinham muito bem suas comidas, e não usam d’ellas meias cozidas ou aferventadas, sendo n’isto mais cuidadosos do que os Francezes.

Untam-se com azeite de palmas, de urucú, e de genipapo,[NCH 44] o que tem sempre em abundancia.

Estou certo que os meos leitores, pouco conhecedores da disposição do corpo humano e do regimem necessario á sua conservação, julgarão que a natureza ensinou a estes homens o mesmo que a sciencia e a experiencia ensinaram a outros.