CAPITULO XVII

Segunda conferencia, que tive com Pacamão.


Na manhã seguinte veio vêr-me, como me tinha promettido, em companhia de sua gente.

Não quiz assentar-se na rede, e pegando-me na mão disse-me Ché assepiak ok Tupan «eu te rogo leva-me a vêr a casa de Deos quero fallar-te conforme teos discursos de hontem á tarde.»

Disse-lhe, que me acompanhasse, que satisfaria seos desejos, e assim o fiz.

Logo que entraram todos, mandou que ficassem na porta e proximando-se de mim fallou-me em segredo — aquelles, nada sabem e nem entendem o que se fallar á respeito de Deos, por tanto quero que conversemos á vontade.

Mandei ornar a nossa Capella com os melhores paramentos, e pôr sobre os degraos do altar muitas e differentes Imagens.

Aproximamos-nos do altar sempre acompanhado pelo intreprete.

Por mais de duas horas indagou de mim tudo quanto via.

1.º Quiz saber o que significava o Crucifixo dizendo-me — quem é este morto tão bem feito e tão bem estendido n’este pau encruzado? Expliquei-lhe que isto representava o Filho de Deos, feito homem no ventre da Virgem, pregado por seos inimigos sobre esse madeiro afim de ir ter com seu seo Pae, felicidade que alcançariam tambem os que fossem lavados com o sangue, que elle via correr de suas mãos, pés e lado.

Conservou-se admirado por algum tempo, olhando com muita attenção a Imagem do Crucificado: exhalou depois um suspiro, e soltou estas palavras como omano Tupan? «Que! será possivel que Deos morresse?»

Repliquei-lhe não ser necessario, que elle pensasse que Deos tivesse morrido, porque sempre viveo desde a eternidade, dando vida aos homens e aos animaes: o que falleceo foi o corpo somente, que elle tomou da Virgem Santa Maria para matar Jeropary, como elle via fazer aos meninos quando querem apanhar um peixe grande no mar, que devora os pequenos, deitando como isca no anzol de sua linha o corpo de um d’esses peixinhos, o que sendo visto pelo peixe grande atira-se sobre elle e vê-se pilhado, puxado, derribado e morto, em favor e livramento dos pequenos.

Assim tambem este mau Jeropary ia devorando todos os nossos Paes, porem aprouve a Deos enviar seo Filho para pescal-o á linha, servindo de haste esta Cruz, de anzol ou de croquezinho estes cravos e espinhos, e d’isca seo corpo.

Mas, respondeo-me elle, porque havia o diabo de ter poder sobre nossos paes?

Porque, respondi, elles foram rebeldes á lei de Deos, comendo do fructo prohibido, e deixaram-se enganar pelo diabo, debaixo da forma de serpente.

Com quanto Deos nos podesse salvar por outros meios, achou mais docil e rasoavel tomar o rapinador em lugar de suas victimas.

Mostrou-se contente, e perguntou — o corpo de Tupan está ainda em França sobre a Cruz, como este que tu me mostras, e tu o vistes?

Não, respondi, porem resuscitou pouco depois da sua morte, levando seo corpo lá para cima, lá para o Ceo, vivendo e brilhando como o sol, sentado no mais bello lugar do Paraizo, vindo curvar-se diante d’elle todos os espiritos e almas de pessoas de bem, e agradecer-lhes a morte do seo inimigo.

Com a protecção d’este corpo, os nossos, depois de mortos, resuscitarão e irão para o Ceo levados pelos Anjos, isto é, nós que somos lavados com o sangue derramado de suas chagas.

Vossos corpos e os de vossos paes irão ter com Jeropary arder em fogos eternos, si não fordes lavados com este sangue.

É necessario, disse elle, correr muito sangue de seo corpo, e que vós o guardeis com todo o cuidado para lavar tanta gente.

Respondi — és ainda muito obtuso para comprehenderes estes mysterios.

«Basta ter sido espalhado uma unica vez esse sangue sobre a terra, e que em memoria e respeito a elle lavemos espiritualmente as almas com agoa elementar, que derramamos sobre vossos corpos.

«Não vês correr sempre uma fonte, ainda que cavada uma só vez pela mão de Deos?

«Tu bem sabes, que as constellações sete-estrellas e a ursamenor foram pregadas uma só vez no Ceo, e com tudo todos os annos, apenas brilham por cima da tua cabeça, ellas te mandam chuva, que rega tuas roças.»

Disse ainda:

«Eram malvados os que mataram Tupan, porque elle era bom, eu o amo, e n’elle creio.»

Respondi-lhe. Foram seduzidos por Jeropary, como tu, que os animou a perseguil-o, a matal-o, e crucifical-o, porque elle os censurava por sua maldade, como nós agora fazemos, seguindo em tudo a lei, que nos deo. Todos os que obedecem ao diabo são seos inimigos e si elle hoje voltasse ao Mundo passaria por iguaes soffrimentos, repetindo os actuaes o mesmo que fizeram os outros antigamente.

Respondeo-me — desejava que me desses uma Imagem como esta para levar commigo quando regressasse á minha provincia. Repetirei palavra por palavra á meos similhantes o que acabas de dizer-me, e farei para ella melhor casa do que esta, eu a fecharei muito bem, só eu entrarei ahi, e algumas pessoas capazes de entenderem as explicações, que me destes.

Respondi — quando fores baptisado, nós te daremos licença para fazeres uma casa, onde levantaremos um Altar igual á este, com iguaes ornatos, e com Imagens como as que estás vendo.

2.º Nos pés do Crucifixo havia uma Imagem de Nossa Senhora, feita em bordado alto, de extrema belleza, e revestida de perolas, presente do Sr. de S. Vicente quando regressou á França: olhando para ella, perguntou-me — quem é esta mulher tão bonita, e este menino que olha para ella de mãos postas? Eu lhe disse, que era a figura de Maria, Mãe de Deos, e este menino é o filho de Deos quando sahio do ventre d’Ella.

Repetio estas palavras duas ou tres vezes — Ko ai Tupan Marie? «Como é Maria Mãe de Deos?» Kugnan Ycatu, «linda mulher.»

Respondi, que assim devia ser, pois que Deos a escolheo para Esposa e Mãe de seu Filho, que era a Princesa de todas as mulheres, tendo tido por marido Deos unicamente, e que sendo pura deo á luz o Filho de Deos, que tinha resuscitado depois da sua morte, como aconteceo a seo Filho, sendo levada para o Ceo pelos Anjos, onde estava assentada ao pé do corpo de seo Filho.

Que grande coisa, disse elle, uma Virgem parir. Como, respondi eu, não vês crescerem as ôstras nos ramos das arvores, só e unicamente, sem auxilio algum?

Deos ama a puresa, porque elle é mais puro do que a luz do sol.

È verdade, respondeo, porem vós, e os outros padres, sabeis grandes coisas, sois mais sabios do que nós, porque não prestamos attenção ás coisas da nossa terra, que vemos todos os dias, e vós em tão pouco tempo já as conheceis.

Ainda não é tudo, disse-lhe, vinde commigo, e prestae attenção ao que vou dizer-vos por intermedio do meo interprete para repetirdes tudo, quanto souberdes, aos teos companheiros, que ficaram na porta por tua ordem, visto ser da vontade de Deos que todos se salvem grandes e pequenos.

Dizendo-lhe isto, fiz-lhe vêr todas as peças e quadros da creação e da redempção, apontando-lhe todas as suas diversas partes: n’uma, por exemplo, a creação dos Ceos e dos elementos, n’outra a creação dos peixes e dos passaros, e n’outra a creação dos animaes, das arvores e das hervas: causava prazer vel-os olhar com muita attenção para as figuras dos passaros, dos peixes e dos animaes afim de conhecerem os da sua terra, e quando descobriam um parecido, não deixavam de dizer-nos — eis tal passaro, tal peixe, e tal animal, e os que não conheciam perguntavam si haviam em França, e como se chamava. Captivou-lhes principalmente a attenção a figura de Deos, no meio do quadro, com os braços abertos, soltando da bocca um forte sopro de vento, e me perguntaram o que isto queria dizer?

Expliquei-lhes, que isto representava a maneira, como foram feitas todas as coisas, apenas com a palavra de Deos, cujo poder e dominio estendia-se ás duas extremidades do Ceo.

Admirou-se tambem muito da mulher ter sido formada pela costella do homem, quando dormia, pedio-me explicações, e assim o satisfiz dizendo, que Deos quiz com isto que elle tivesse uma só mulher e não mais de trinta como elle tinha; porque si Deos quizesse, que tivesse mais de uma, elle o teria permittido desde o principio, e sendo creado somente uma e ainda á custa da costella do homem assim demonstrou, que este só devia ter uma mulher, a quem amasse e conservasse, e não mudal-a á capricho da vontade, como fazeis vós outros, sectarios de Jeropary, que vos persuadio terdes muitas mulheres afim de indispor-vos e estrangular-vos uns com os outros, visto que costumaes roubal-as até na casa de seos proprios maridos.

Na escada do altar estavam as imagens dos doze Apostolos e o padre Sam Francisco, muito bem feitas e illuminadas.

Perguntou-me quem eram esses Caraybas?

Estes doze, respondi, são doze Maratas do filho do Tupan,[NCH 107] os quaes, depois que subiram ao Ceo, dividiram o Mundo Universal em doze partes: tomou cada um a sua, onde foi guerrear Jeropary, e lavar todos os crentes em Deos, deixando successores, que foram se revesando até nós. Peguei na imagem de S. Bartholomeo, e lhe disse — Olhae, veio a vossa terra este grande Marata, e aqui fez muitas maravilhas, como por tradicção vos contou vossos antepassados. Foi elle quem fez talhar, á rocha, o altar as imagens, e as inscripções, que ainda existem actualmente, como tendes visto.[NCH 108]

Foi elle quem vos deixou a mandióca, e vos ensinou a fazer pão, pois vossos paes, antes de sua vinda, comiam só raizes amargas dos mattos.

Como não quizestes obedecer, elle vos deixou, predizendo grandes desgraças, e que ficarieis por muito tempo sem vêr Maratas.

Tal qual aconteceo, e só agora é que tivestes quem vos livrasse das mãos do diabo, e vos fizesse filho de Deos.

Tomae cuidado em não fazerdes o que fizeram vossos paes.

Logo que lhes transmitti estas palavras pelo meu interprete, olhou para a imagem de Sam Francisco e me disse — quem é aquelle que está vestido como tu?

É, disse eu, o pae de nós outros padres, que assim se vestem.

Vive ainda? replicou, está em França? Foi elle quem te mandou para cá e aos outros padres?

Não, respondi, ja não vive, morreo, porque nós todos morremos, porem deixou successores, que nos mandaram para cá. Não está mais em França, e sim no Ceo com Deos, onde esperamos ir vel-o.

Não tinha mulheres, como vós não tendes? perguntou.

Não, respondi, porque todos os padres não as tem, imitando assim o Filho de Deos, seo Rei, que vivendo n’este mundo não tinha mulher.

Dizendo isto, olhava o Ceo e as sanefas que cobriam nosso altar, as quaes eram de bello damasco com grandes folhagens, agaloadas, e guarnecidas de passamanes e franjas de prata fina, bem como o frontal do altar.

Disse depois que tudo era bonito, e que serviamos Tupan com grande reverencia e pedio-me para baptisal-o antes do seo regresso, e que lhe desse imagens para leval-as comsigo.

É preciso, respondi, que saibas antes a doutrina de Deos.

Não me dissestes ja, replicou elle, tudo quanto era necessario saber para ser lavado?

Não, respondi, isto não passou de uma conversa: ha ainda muito que aprender.

Que me ensinarás ainda?

Respondi — si quizeres morar commigo eu te ensinarei, ou te farei ensinar muita coisa, mas não te posso baptisar ja, sem primeiro saberes a doutrina de Tupan. Quero experimentar tua constancia, e esperar nossos padres que não tardam a chegar conforme me prometteram. Elles te baptisarão, e irão comtigo fazer a casa de Deos na tua aldeia, e não te deixaram mais.

Antes d’isso não deixes de repetir na tua caza grande á teos similhantes o que sabes: não faças mais feitiçarias, e assim nós, e todos os francezes, te estimaremos, e sempre serás bem vindo.

Prometto, disse elle, e cumprirei minha palavra. Bem desejo que tu me lavasses agora. Não deixarei de te vir visitar muitas vezes, porque sempre aprenderei alguma coisa.

Chamou então seos companheiros, que ficaram por todo este tempo na porta da igreja.

Que obediencia e respeito entre os selvagens! Mandou que se aproximassem ao altar e á elles repetio o que lhe ensinei, mostrando-lhes as imagens e explicando o que representavam.

Esta pobre gente estava como que fóra de si, mostrando-se admirada a seo geito, e depois despedio-se e foi para o Forte de S. Luiz, onde embarcou e regressou á sua terra.

Veio depois visitar-me para tratar do mesmo objecto, e contou-me como cumprio suas promessas, fallando na caza grande, e repetindo o que lhe ensinei, e affirmou que todos se fariam christãos logo que elle fosse baptisado, o que me pedio ainda uma vez.

Animei-o a continuar a proceder assim, e dei-lhe esperança de que seria baptisado em pouco tempo, apenas chegassem os Padres de França.

Conversamos ainda sobre os objectos, de que já nos tinhamos occupado da primeira vez, e com avidez recebia todos os conhecimentos mostrando por seos gestos indizivel contentamento.

N’esta segunda visita, veio mais modesto, e acompanhado por poucas pessoas, sem muitos enfeites de pennas, e fallando com muito menos arrogancia do que o fez na primeira vez.