CAPITULO XVIII

Conferencia com o grande feiticeiro de Tapuytapéra.


O grande feiticeiro de Tapuytapéra era homem muito respeitavel, de boa estatura e bem feito, valente guerreiro, modesto, grave, e de poucas palavras: era muito amigo dos francezes, e gozava entre os habitantes do seo paiz do mesmo poder, que Pacamão em Commã, Japy-açú em Maranhão, o Arraia-grande entre os Caietés, Thion e Farinha-molhada entre os Tabajares, rico, e de muito bons filhos, que são fieis aos francezes e christãos, como d’aqui ha pouco diremos.

Veio ao Fórte de S. Luiz seguido por perto de tresentos a quatrocentos dos seos companheiros para fazel-os trabalhar nas fortificações, e regressar á seos lares depois de acabarem seo tempo, revesando-se assim, e nunca menos de dusentos a tresentos selvagens.

Durante as horas do trabalho assentava-se elle junto aos francezes mais graduados, ahi vigiava a sua gente, animava-a, e recommendava-lhe perfeição de obra.

Fui vêl-o n’essa lida, desculpou-se muito para commigo, por intermedio do seo interprete, por não me ter vindo vêr logo que chegou a Ilha, por estas palavras:

«Não te fui procurar, embora tivesse muito que conversar comtigo, porem deve ser com descanço.

«Agora é preciso vigiar minha gente no trabalho, afim de se empregar com animo na fortificação d’esta praça.

«Não deixarei de te ir vêr com Migan, que está aqui para te fazer sabedor do que eu digo, contando-me tambem as maravilhas, que ensinas aos nossos similhantes.»

Respondi-lhe, que achava isto bom, e que estava contente vendo-o assiduo no trabalho para que fóssem bem feitas as trincheiras e fóssos afim de resistirem a seos inimigos, e que depois si nos offerecia occasião de conferenciarmos: que era só isto, que eu desejava, que nós todos o estimavamos e muito, tanto por sua bondade natural como porque elle era amigo dos francezes, e sempre fiel.

Assentamos-nos depois um em frente do outro, conversamos sobre muitas coisas indifferentes, especialmente do enthusiasmo de sua gente, e particularmente das crianças, que carregavam terra, o que causava a elle e á nós muita satisfação, fazendo-me dizer e a proposito, que bem razão lhes assistia n’esse trabalho, cheio de fervor e de coragem, pois era para elles, que se lidava, visto que um dia veriam as maravilhas feitas pelos francezes n’esta terra.

«Serão bem differentes do que somos, dizia elle, porque serão Caraibas, andarão vestidos, e verão as Igrejas de Deos construidas de pedra.»

Confirmei em minha resposta a felicidade de seos filhos no futuro, assegurando-lhes, que d’ella tambem gozariam porque não haveria muita demora na vinda de soccorros e navios de França trazendo muitos Padres, muitos francezes guerreiros, muita ferramenta e generos para elles: que então se construiriam casas á maneira dos francezes, que seriam acompanhados por elles quando fossem guerrear seos inimigos, que viriam os Tupinambás e os outros alliados cultivar a terra da Ilha, e que tudo isto poderiam vêr antes de morrerem.

Ditas estas palavras despedi-me d’elle, e regressei á minha habitação.

Quando acabou o tempo do seo trabalho veio visitar-me, acompanhado pelos principaes da sua Nação, e pelo interprete Migan.

Assentou-se, e pedindo fumo, como costumava, me disse estas palavras:

— Antigamente usei de muitas feitiçarias para me tornar grande e authoridade entre os meos.

Muito tempo ha que conheci este abuso, e que zombo dos que se empregam n’este officio.

Não ignoro a existencia de um Deos, porem não sei conhecel-o.

Seria impossivel o giro annual do sol, a existencia de ventos e chuvas, e o forte estampido dos trovões si não houvesse um Deos, autor de tudo isto.

Temos então homens maus, que vivem livremente sem temer algum castigo, e pensamos que elles irão ter com Jeropary.

Temos outros homens, que são bons, que não matam, que dão expontaneamente a sua comida, e pensamos serem elles amados por Deos, e por tanto que não vão cahir no poder do diabo.

Alegrei-me muito quando me noticiaram a vinda dos padres, que faziam conhecer Tupan, e que em seo nome lavavam os homens: foi este o principal motivo, que aqui me trouxe para vos vêr, e manifestar-vos o meo desejo de ser instruido e baptisado, porque ja soube, que dissestes serem condemnados os não baptisados, e que se perderam nossos paes.

Tenho muitos filhos, quero que sejam christãos, como eu afim de irmos todos para a companhia de Deos.

Desejo edificar na minha aldeia para elle uma casa, e junto d’ella outra para vós: eu o sustentarei e nada lhe faltará.

Os que na minha provincia confiam e tem fé em mim, serão christãos. —

Traduzindo-me o interprete tudo quanto acima escrevi, acrescentou «este homem tem muito amor a Deos, e conhece-o muito, porque usa das palavras mais expressivas da sua lingua para melhor exprimir o que sente e conhece, e tenho muita pena de não poderdes entendel-o e conhecer o que elle diz. Respondei conforme seos desejos, fazei com que elle entenda estas palavras, o mais eloquentemente que puderdes.»

«Informaram-nos os francezes muito bem de vós e de vossos filhos, tanto de vossa fidelidade, e amisade, como de vossa natural bondade: eis o verdadeiro meio de cedo receberdes o favor de Deos, alcançardes seo conhecimento e seo baptismo. Tu o vês ordinariamente diante de ti quando a terra produz facilmente muitos fructos, provenientes da semente n’ella lançada.

«O homem é a terra, e o Evangelho a semente: quando Deos encontra boa terra, sem cardos e nem espinhos, elle ahi lança sua semente: á vista disto muito espero de ti e de teos filhos, e te asseguro que si fossemos mais nós os padres, tu já levavas um comtigo: tende porem paciencia, breve chegarão outros.

«Não deixes comtudo de edificar a casa de Deos e a dos padres, para que apenas cheguem, possas leval-os e acommodal-os.

«Não podes demorar-te aqui muito tempo em virtude do teo cargo: nós como somos poucos, não podemos tambem ir comtigo; conserva teos bons desejos, e Deos te ajudará.

«Conheci ja que tens muito amor a Deos, que seo espirito tocou-te o coração, e illuminou-te o entendimento para te guiar no que me dissestes: é grande bem para ti, não o despreses.»

Respondeo-me assim:

— Nunca fui mau, nunca me agradaram as carnificinas dos nossos escravos. Nunca roubei as mulheres dos outros, contentava-me com as minhas. É bem verdade, que me fiz temido ameaçando os que me despresam com molestias, que contrahiam por medo.

Nunca fallei com Espiritos, como fazem os outros pagés, e apenas empreguei a subtilesa da minha intelligencia, e a grandesa da minha coragem. Minhas feitiçarias concorreram menos do que a coragem, que muitas vezes hei manifestado na guerra, para conquistar a authoridade que hoje occupo.

Estou velho, e só ambiciono paz e tranquilidade. —

Respondi-lhe haver procedido bem, irritando contra si muito menos o soberano, á vista do comportamento de outros feiticeiros, que entretinham relações com o diabo, e que assim ficasse gosando a tranquillidade de sua consciencia até o dia do seo baptismo.

Pedio-me para vêr a Capella, e buscou informar-se de tudo quanto via — altares, paramentos, e imagens.

Expliquei-lhe tudo bem á sua vontade, e assim despedio-se de mim para regressar ao seu paiz, o que fez. Dei-lhe imagens para levar comsigo, o que recebeo com muita alegria, e expliquei-lhe o que significavam, e recommendei-lhe que as guardasse com todo o cuidado para que Jeropary não as tomasse, visto ter sido vencido antigamente pelo Filho de Deos, que morreo na Cruz.

Com taes impressões partio.

Pouco tempo depois foi convertido Martinho Francisco a quem permittimos edificar uma Capella na sua aldeia, onde celebrariamos missa, e baptisariamos quando fossemos a Tapuitapéra.

Este grande feiticeiro, de quem acabamos de fallar, teve ciumes, e mandou-me dizer, que muito se admirava de eu ter dado licença a Martinho Francisco para fazer uma Capella na sua aldeia antes d’elle construir uma na sua, preferencia que elle bem merecia pela sua grandesa, tendo tambem padres comsigo como lhe fôra permittido.

Aos que me trouxeram o recado respondi não ter ultrapassado de forma alguma minhas palavras e promessas, que era elle o primeiro de Tapuitapéra, a quem tinha dado licença para fazer uma capella, que devia preceder os outros e em quanto aos padres ainda não tinham chegado: que quando fossemos a Tapuitapéra não deixariamos de ir vel-o e visital-o; mas que eu não podia recusar a Martinho Francisco, ja christão, o ter junto de si uma casa de Deos para fazer suas orações. Achou boa a resposta.

Entre os convertidos por Martinho, depois do seo baptismo, foram dois dos filhos d’este Muruuichaue, e com isto teve Martinho singular consolação, animando-os a aprender suas crenças e a doutrina christan; porem aconteceo, infelizmente, serem elles seduzidos pelas más palavras de um de nossos interpretes para deixarem o Christianismo.

Sabendo seo bom pae, que elles para esse fim tinham deixado seos habitos e vestidos, lhes disse o que ides fazer? moveis-vos por bem pouco!

«Porque vos despis, e dissestes, que não querieis mais ser christãos?

«Quero agora que torneis a tomar vossos vestidos; ide procurar Martinho Francisco na sua aldeia, e d’elle recebei a doutrina, que os padres lhe ensinaram.

«Não vos separeis d’elle, e nem cá venham senão em sua companhia.

«Eu mandarei chamal-o para que vá ter com os padres.»

Estes rapazes obedeceram a seo pae, tornaram a tomar seos vestidos, vieram procurar Martinho Francisco, que foi ter com o grande feiticeiro, e veio depois em companhia de muitos christãos ao Forte de Sam Luiz para nos declarar, e aos nossos chefes, como se passaram estas coisas, e a ellas se deo remedio, conforme a occasião permittio.

O Revd. Padre Arsenio, acompanhado por muitos christãos, foi vêl-o em sua aldeia, onde foi muito bem recebido, notando toda a alegria que póde mostrar no rosto um selvagem, presenteou-lhe com muita caça, e rogou-lhes que si quizesse morar em Tapuitapéra que escolhesse para residencia sua aldeia, e ahi seria bem acommodado, tanto quanto permitte o paiz.

Depois d’isto mandou-me seo filho mais velho, chamado Chenamby, «minha orelha,» com sua mulher, ambos com carga, e um filho pequeno. Disse Chenamby — Meo pae está com muito cuidado em ti, receia que não tenhas farinha, e é isto que aqui me traz. Logo que houver milho elle te mandará muito. Tem muita vontade de saber logo que aqui cheguem os Padres, porque immediatamente deixará a sua aldeia, e atravessará o mar para cumprimental-os, pedir um d’elles e leval-o comsigo para aprender a sciencia de Deos, e ser por elle lavado.

Dois dos meos irmãos são Caraibas, os quaes, como sabes, se despiram, apesar das observações, que lhe fizeram, actualmente vão indo bem, e estão sempre com o padre-miry, «padre pequeno,» (sobrenome que davam a Martinho Francisco por causa do empenho d’elle em converter as almas): quero ser christão, conjunctamente com meo pae, minha mulher, que aqui está, e meo filho pequeno que ella carrega, o qual chegando á idade propria, darei aos padres para ser por elles instruido. —

Este Chenamby balbuciava um pouco o francez, e entendia tambem alguma coisa, graças ao trabalho e empenho, que para isso empregava, fallando com os francezes o mais que podia.

Respondi-lhe em sua linguagem por meio do interprete, d’esta forma:

«Que estava muito contente por seo pae lembrar-se de nós principalmente pela constancia da boa vontade de seo pae e de seos irmãos para com o christianismo, e especialmente vendo elle e sua mulher dispostos a receberem a fé christã, e a nos offerecerem seos filhos para ensinarmos o que fosse conveniente quando comnosco estivesse.

«Exhortei-os por muitas palavras a terem elle e sua mulher constancia em tal desejo.»

Sua mulher era de agradavel presença, moça, modesta, e trazia em seos olhos não sei que pudor, não se animando a olhar-me directamente: alem d’isto occultava com o pé direito de seo filho sua enfermidade, guardando o respeito natural de não se apresentar de outra forma diante de mim, de que tirei boa conclusão agradando-me ainda mais de suas maneiras e procedimento: achei-a muito boa e caridosa para com os francezes, humilde e obediente a seo sogro e marido, virtudes não pequenas n’uma india.

Antes de partir prometteo-me seo marido, que não casaria com outra, e nem a abandonaria.

Respondi-lhe, que se assim fizesse os padres o casariam á face da igreja, depois de baptisado.