CAPITULO XX
Conferencia com o Principal d’Orobutin.
Era este Principal de alta estatura, muito magro, modesto e affavel, e tinha estado doente desde a nossa chegada até quando veio vesitar-nos.
Entrou em nossa casa acompanhado por alguns dos seos, com muito respeito e quasi a tremer.
Acolhendo-o muito bem, mandei sental-o em frente a mim n’uma rêde de algodão, e logo conforme o costume, principiou assim a fallar-me:
«Vim hoje ter comtigo, ó padre, para duas coisas: a primeira para desculpar-me e pedir-te que não repares o não me encontrares quando chegaste em Uraparis, como fizeram Japy-açú, Pira-Juua, Ianuarauaeté, e outros Principaes da ilha, e não poude tambem vir antes de Pacamão, de Aua Thion, meo chefe, pois achava-me gravemente doente, porem no meio de minha molestia sempre tive o desejo de vêr teo rosto, e ouvir de tua bocca o que meos companheiros de aldeia me contavam de vós outros padres.
«A segunda coisa que aqui me traz, é offerecer-te meos filhos, que t’os dou, quero que sejam teos, e que os faças Caraibas.
«Desejo igualmente e peço-te, que venhas tu ou um dos padres á minha aldeia edificar uma casa para Deos instruir a mim e a meos similhantes, e declarar-nos o que Tupan deseja de nós para sermos lavados, como tem sido os outros.
«Asseguro-te que não faltariam viveres, por ser minha terra boa e abundante de caça.»
Advirto ao leitor, que é facil traduzir as palavras e pensamentos d’este selvagem, porem não os gestos e a vivacidade do seo espirito ao pronuncial-os: direi apenas que suas expressões eram acompanhadas de lagrymas e com vóz cheia de fervor e devoção revelava-me o toque do Espirito Santo, e o ardente desejo de ser christão.
Respondi-lhe:
«Não precisa pedires desculpa pela tua auzencia quando saltamos na ilha, porque alem de estares doente, muito longe é d’aqui á tua aldeia, e isto só basta para seres desculpado.
«Regosijo-me muito vendo em ti tão boa vontade para comnosco, e tão grande desejo de tua salvação, da de teos filhos e em geral da de teos similhantes.
«Si actualmente tivessemos mais padres acredita que eu iria, ou mandaria outro á tua aldeia, porem não podemos deixar a ilha por causa dos estrangeiros que nos vem vêr, e ao que é conveniente corresponder.
«Logo que chegarem os padres de França asseguro-te que terás um d’elles, porque reconheço claramente seres um dos escolhidos por Deos para seo filho.
«Coragem, e espera o que te digo.»
Replicou-me:
«Déste-me muita consolação, porque desde que correo o boato em nossa terra de dizerdes maravilhas de Tupan e de tratardes com bondade nossos similhantes, que eu nunca mais tive socego de espirito.
«Quando irás procurar os padres, quando da bocca delles ouvirás o que dizem teos compatriotas? Levanta-te, e faze esforços para caminhar.
«Obedecendo muitas vezes a este pensamento, levantei-me da cama, porem estava tão magro e descarnado, que nem pude sustentar-me nas pernas: olha para meos braços, meo corpo, e minhas coxas, que não recobraram ainda a carne e a gordura, que a molestia me comeo.
«Admirou-me muito quando soube ter Marentin vindo tão doente procurar-te, e receber o baptismo.
«Peço-te encarecidamente, que antes do meo regresso me ensines alguma coisa de Deos, e acredita, que fixarei em minha memoria, e não esquecerei uma só palavra, e mui fielmente o referirei a minha gente e a meos filhos.
«Tenho tres filhos, sendo o mais velho este que aqui vedes: quero que fiquem com os padres quando vierem, que se assentem á seos pés, e que escutem com cuidado o que elles disserem, e cumpram suas ordens.
«Elles caçarão e pescarão para os padres.»
Pelo interprete lhe disse ter elle razão, e que eu não podia recusal-a, e assim que attendesse bem ao que eu ia ensinar-lhe, e que chamasse para junto de si seo filho e seos companheiros, o que feito principiei a explicar-lhes o mysterio da creação e da redempção por meio de comparações ordinarias e palpaveis.
É impossivel descrever-se a attenção e emoção, com que elle recebia estas agoas sagradas do Redemptor.
Nunca animal algum foi tão avido e desejoso por uma fonte clara em pleno estio, do que este saboreando a nova doutrina.
Prasa ao Ceos, sem fazer comparação alguma, que os christãos acolhessem a palavra de Deos com tanta avidez.
Tinha as espaduas curvadas, em quanto fallei, os olhos meio baixos, e apenas como que a furto respirava e cuspia, e n’essa occasião era possivel presentir-se o caminhar de um rato.
No fim disse-me — que grandes coisas! nunca ouvi fallar n’ellas e nem n’outras similhantes, porque Deos não quiz fallar comnosco, e nem com os nossos antepassados, e nenhum Caraiba ainda nos entreteve contando-as.
Acabas de dizer-me que Deos está em toda a parte, que não póde ser visto, mas vê tudo e nos ouve, acompanhando-nos por toda a parte, e sempre adiante: que somente os baptisados podem sentil-o e reconhecel-o, que não tem corpo como nós, mas sim é um espirito derramado por todo o universo.
Ouvi bem, mas difficilmente comprehendo, porque não estamos costumados a ouvir tão grandes coisas, e sim temos inclinação natural para pescar, caçar, flechar e fazer muitos exercicios. Em quanto aos mais entregamo-nos aos nossos feiticeiros, dotados de animo mais subtil para conversarem com os espiritos.
Disseste-me ser Deos como o ar que respiramos constantemente, pois sem elle morreriamos: que Tupan nos dava vida e respiração, entrava em nós e nos cercava por toda a parte como o ar: que assim como o ar existe e vae por toda a parte, assim tambem Deos entrava e existia em todo o lugar.
Entendo bem este ponto, pois si Deos fez o ar, necessariamente é mais do que elle.
Estou muito satisfeito por me dizeres, que Jeropary apenas era criado ou servo de Tupan, que é perseguido pelos espiritos bons, quando faz ou persegue algum homem ou mulher sem licença de Deos, e que finalmente não tem poder sobre os baptisados.
Bem fez Deos, porque Jeropary é mau, e eu bem desejaria que elle fosse açoitado até morrer pelos bons Espiritos.
Apenas eu fôr christão, si elle aproximar-se de minha aldeia, irei atrevidamente ao seo encontro, e não terei medo algum. —
Desculpae as expressões d’este selvagem, não christão.
Escutae o resto da sua conversação.
— Era necessario, que a moça, com quem Deos se casou, fosse muito bonita, riquissima, e a mais poderosa do seo paiz, por ser Tupan o maior de todos os Muruuichaues: creio que seo filho tinha grande sequito e muito acompanhamento; porem os malvados traidores, que o mataram, eram velhacos e cautellosos porque o fizeram occultamente pois si sua gente soubesse o teriam defendido.
Parece-me que ficariam bem admirados quando o viram sahir vivo de sua sepultura: devia então vingar-se dos que o fizeram morrer, mas tu me disseste uma coisa admiravel, isto é, que elle subio para o Ceo, somente em corpo e alma, que está sentado acima do sól, que tem olhos mais claros que o sól e a lua, que nada se faz na terra, que elle não veja e observe tanto na tua patria como na nossa, ouvindo distinctamente as nossas palavras, as vossas preces nas Igrejas, escutando-as, e vindo todos os dias sobre os vossos altares, onde com elle fallaes, bem como todos os Caraibas com liberdade, até sem abrir a bocca, não deixando de perceber o que dizeis em vosso coração.
Disseste tambem, que foi elle quem vos mandou para cá afim de ensinar-nos estas coisas, a meo vêr muito bellas, e não me enfadarei de ouvil-as, porem o barco está prompto para regressar, e estão á minha espera minhas roças, que deixei boas para a colheita.
Tudo isto obriga-me a partir, alem de não ter trazido farinha commigo. —
Respondi-lhe, que si era só por falta de farinha, que elle se via constrangido a partir, que eu tinha alguma á sua disposição e de seos companheiros.
Agradeceo-me a seo modo, despedimos-nos reciprocamente, e elle partio.