CAPITULO XXI

Conferencia com o Onda, um dos Principaes de Commã.


Este Principal sempre foi o pae commum dos francezes em Commã honrando-os, respeitando-os, e defendendo-os contra todas as más indisposições suscitadas, como era costume, pelos malvados e libertinos, a ponto de ser por elles aborrecido e ameaçado de ser espancado senão morto a não ser o receio, que tinham dos francezes.

Quando foi nossa gente ao Pará, elle a acolheu com toda a bondade e generosidade, ambicionando ser o chetuasap ordinario do chefe dos francezes, consistindo toda a sua fortuna e felicidade em ser amado e apreciado pelos francezes.

Tinha um filho com 20 annos d’idade, que recommendou muito ao Sr. de la Ravardiere e a todos nós, pedindo que o acolhessemos bem, não exigindo outra recompensa de sua fiel amisade senão a de poder seo filho viver entre os francezes, n’uma palavra — ser francez.

N’essa occasião tinha recommendado á seo filho, que se esforçasse o mais, que podesse, para aprender a lingua francesa, e para o conseguir com mais facilidade ordenou-lhe que frequentasse os francezes quanto podesse, estando sempre entre os residentes em Commã, e de tal fórma se houve, que aprendeo algumas palavras de nossa lingua.

Pensou este bom homem ter obtido todas as riquezas do mundo, quando vio seo filho balbuciar vinte ou trinta palavras francezas, e julgou ser tempo de trazer este grande doutor aos pays, isto é, aos padres para ser baptisado, e depois ser Caraiba, «francez.»

Tereis sem duvida notado, tanto por este discurso, como por muitos outros precedentes e subsequentes, que os selvagens julgavam necessario ser primeiro baptisado para depois ser francez, sendo manifesta loucura o pensar em contrario e na verdade não se enganavam.

O verdadeiro francez é mais francez pela piedade e religião do que pela origem, visto que Deos o felicitou fazendo-o vassallo e subdito de um rei christianissimo, primeiro filho da igreja, e sempre seo fidelissimo protector, como demonstrou em todo o tempo e em todas as occasiões.

Si dermos credito a Santo Agostinho, no Tratado do Ante-Christo, é elle, que deve resistir a este Ante-Christo, como se vê em mais de um lugar.

Voltemos ao nosso homem.

Trouxe seo filho com muito respeito, e assentando-se n’uma rêde, e o rapaz perto d’elle, desculpou-se de não ter vindo logo vêr-nos e visitar-nos, assegurando porem ser um dos nossos melhores amigos, que desejava ter padres com elle na sua aldeia, que os acolheria muito bem, que nada lhes faltaria para a vida, nem javalis, veados, e outros bichos proprios á esse fim.

É por esta fórma que todos se desculpam.

Depois d’isto, assim fallou-me:

«Sou homem de idade, como vedes, porem tenho muita força, e espero vêr este meo filho, que aqui te trago, bom Caraiba, como me prometteo o Grande, que sympathisa com elle, quer vestil-o e tel-o aqui com os francezes.

Eis porque venho pedir-te para laval-o com agoa de Tupan: assevero-te, que elle sabe tudo quanto é preciso saber, e breve o ouvirás porque tive o cuidado que elle fallasse com os francezes, e todos me dizem que elle entende muito.

É bom rapaz e amigo dos francezes.»

Dizendo isto, fez signal a seo filho para aproximar-se, e ordenou-lhe que contasse tudo quanto sabia de francez.

Só com muito custo podia conter o riso, e nem si quer me era permittido usar do interprete que ria-se a bom rir, de tal simplicidade; comtudo, eu o tranquilisei pedindo-lhe desculpa pelas travessuras de um pequeno papagaio, que eu tinha, a fim de não pensar que era elle o provocador do riso.

O rapaz recitou-me a doutrina, que seo pae julgava bastante para receber o baptismo, e o fez d’esta maneira: bom dia, senhor, como estaes: Bem, senhor, prompto ao vosso serviço, quereis comer, sim: pão, peixe, carne, minha cabeça, eo chapeo, meo gibão, meo borzeguim, minha camisa[1]

Não pude ouvir mais com receio de arrebentar de riso.

Disse-lhe ser bastante, que só por isto eu fazia ideia d’elle não ter perdido seo tempo.

O bom homem pressuroso interrompeo-me dizendo ter ainda que dizer-me.

Levantou-se do seo logar, tomou todos os utencilios do meo quarto, e mostrando-me um apoz outro disse-me, que elle de tudo sabia o nome em francez.

Aproximando-se de minha mesa, e agarrando-a com duas mãos, dizia — elle ainda sabe o nome d’isto em francez.

Dirigio-se a seu filho, e perguntou-lhe se era verdade o que dizia. Sim, respondeo-lhe o moço, e ainda mais, pois chamaria pelo nome tal e tal francez, bem como tambem sabia a denominação das armas: Um arcabuz, que faz puf, uma espada, um canhão, que faz pataú.

Mas, disse-lhe o pae, bem depressa saberás o resto?

Sim.

Muito bem, replicou o pae, não deixes de vir todos os dias recitar tua lição diante do padre.

Deixando-lhe toda a liberdade de fallar afim d’eu poder conter o riso, e d’elle dar expansão ao seo fervor, que não era isto, que eu exigia para conferir-lhe o baptismo, e sim o conhecimento de Deos e de outras coisas dependentes da nossa religião.

Ficou admirado de ouvir-me, reconhecendo inutil a estima que elle tinha de vêr seo filho, grande doutor, e parecendo não entender até o que eu lhe dizia.

Pelo interprete expliquei-lhe o meu pensamento, e elle respondeo-me não ter ouvido ainda fallar n’isso, mas que como seo filho era intelligente cedo aprenderia bastando-lhe apenas uma lua, para o que deixava seo filho no Forte de Sam Luiz.

Disse-lhe que elle fazia muito, que eu o trataria o melhor que me fosse possivel, e sempre seria bem acolhido entre os francezes.

Mas, disse eu, porque não procuras para ti o bem, que desejas a teo filho?

Ah! respondeo-me, sou muito velho: nada mais poderei aprender, como esses rapazes, que vão ser Caraibas.

Como, repliquei, antes queres ir com os diabos queimar-te no inferno, do que esforçar-te para aprenderes a sciencia de Deos? Tua velhice não é desculpa aproveitavel.

Tens eloquencia para fallar um dia inteiro, si quizeres. Calcula ha quanto tempo fallas, e quantas palavras tens proferido.

Não precisas aprender a quinta parte das questões, que me tens proposto, afim de seres christão; nas palavras de tua lingua, pelas quaes comprehendemos os objectos expressados na nossa linguagem.

Aprendeis com muita facilidade cantigas e descantes, tão compridos sobre feitos de vossos antepassados.

Poderás assim aprender facilmente o que queres, que saiba teo filho.

Pois bem, me disse elle, vou fazel-o.

Voltando-se para o filho, recommendou-lhe que escutasse bem tudo quanto lhe ensinassem, que não perdesse uma só palavra, e que imitasse todas as acções dos francezes, que viria depois buscal-o para a terra d’elle afim de ensinar-lhe o que tivesse aprendido.

Serás bem recebido, todos farão caso de ti, e se reunirão para te ouvir contar tão boas coisas. Depois viremos procurar os padres para nos baptisarem.

Assim fallando, olhou-me a sorrir-se.

Muito bem, disse elle: Padre, não beberemos bom vinho de França? ou Cauin, que queima, isto é, aguardente?

Não terás d’ella alguma garrafa na tua frasqueira? Dá-me as chaves d’ella.

O Muruuichaue me deo em sua casa um pouco, e era muito boa e muito forte: esfregando seo estomago com a mão, dizia-me, olha, ainda sinto ella aquecer-me.

É costume da França tirar da frasqueira a garrafa quando se recebe visitas de amigos.

Tenho desejos de vir muitas vezes a Yuiret, quando chegam navios de França para gozar do seo vinho muito melhor do que o nosso.

Vendo finalmente a simplicidade d’este homem, que foi o primeiro a rir-se, e não tratando nós mais das coisas de Deos, foi-me necessario rir tambem, dar-lhe agoardente, e depois de ter bebido um bom copo, pelo interprete notou não ter eu bebido com elle, que convinha fazel-o, e que depois elle me acompanharia.

Assim o fiz para chamar estes homens ao seio de Deos, tel-os como que obrigados ou agradecidos a nós em tudo quanto podessemos, conforme sua naturesa, quando n’isto não ha offensa á Deos.

Depois de achar-se um pouco enthusiasmado com o segundo copo começou a pronunciar gutturalmente estas palavras — Goy y katu de katogne kauin tata, «oh! quanto é bom, muito bom o vinho de fogo, ou o vinho que arde.»

Como mau agouro ouvi a palavra Goy, que é o começo para beber-se muito, e principiei a cogitar na maneira por que havia de fechar a garrafa, visto não haver necessidade de tal despesa, então grande pela sua falta.

Disse ao meu interprete, que a levasse, e este querendo cumprir a minha determinação, o meo selvagem agarrou a dizendo não ser costume dos francezes guardarem as garrafas, tiradas da frasqueira para a meza e que por muitas vezes se tinha achado entre elles.

Reconheci que era necessario resgatar a minha prisioneira, embora ella nada me ficasse a devêr pela sua boa composição.

Disse-lhe, que cauiu-tata não era similhante ao que tinha bebido antigamente, que perturbava a cabeça de quem o bebesse muito, que eu devia cuidar do seo corpo e de sua saude, mas que eu ainda lhe daria um copinho para dizer-lhe adeos, e assim foi-se satisfeito.

Veio visitar-me no dia seguinte. Prevenindo-me e indo ao encontro dos seos desejos mostrei-lhe uma garrafa quebrada, igual a do dia antecedente fingindo estar muito triste pela agoardente que se tinha derramado e perdido: mostrou-me igual sentimento, e batendo na coxa me disse — Aqui está, si tivesses permittido, nós a tinhamos bebido, e nada teria acontecido.

o...

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Faltam as ultimas folhas d’esta narração no exemplar unico da edicção original, existente na Bibliotheca Imperial de Pariz. (Vide o Prefacio.)

Suppre-se de alguma forma esta falta, bem sensivel, publicando-se no fim da obra, curiosissimas cartas, por longo tempo esquecidas.

 

Notas de rodapé editar

  1. Em francez muito mal escripto estão estas palavras, é impossivel traduzil-as com taes erros. — Do traductor.