CAPITULO XVI.

 

Saibâmos da vida do frade. — Era franciscano porquê? — Dos antigos e dos novos martyres. — Alguns particulares de Fr. Diniz antes e depois de ser frade. — Emigração. — Explicação incompleta. — De como a velha tinha perdido a vista e Joanninha o riso. — Sexta feira dia aziago.

 

Saibamos alguma coisa da vida do frade, da sua vida no seculo, porque a do claustro era nua e nulla, monotona e singela como a temos visto.

Chamava-se elle no seculo Diniz de Atahide, e seguira a carreira das armas primeiro, depois a das lettras. Com distincção, e quasi com paixão, tomára parte na campanha da Peninsula e a fizera quasi toda; mas desgostoso do serviço ou despreoccupado da glória militar, entrou na magistratura para que estava habilitado, e em 1825, do logar de corregedor do Ribatejo, em que ja fôra reconduzido, devia passar á casa do Porto.

Foi a Lisboa receber o seu despacho, beijou a mão a elrei, e d’ahi tomou um dia o caminho de Santarem, chegou áquella villa, deixou criados e cavallos na estalagem, e foi tocar á campa da portaria de San’Francisco.

Os criados esperaram em vão muitos dias: elle não voltou.

Desappareceu do mundo Diniz de Atahide, e d’alli a dous annos appareceu Fr. Diniz da Cruz, o frade mais austero e o prégador mais eloquente d’aquelle tempo. Raro prégava, e so de doutrina; mas era uma torrente de vehemencia, uma uncção, uma fôrça!..

Dos institutos monasticos, ja então bem decahidos todos de esplendor e reputação, a ordem de San’Francisco era talvez a que mais descêra no conceito público. Quanto mais austera é a regra, tanto mais se nota qualquer relaxação nos que a professam: a dos franciscanos tinha-se feito proverbial e popular. Elles eram tantos por toda a parte, e tam conversantes com todas as classes; familiarizára-se por tal modo o povo com o aspecto d’aquellas mortalhas negras — aspecto ja não severo, e apenas deixou de o ser... ridículo — e ellas appareciam em taes logares, a taes horas, por tal modo... que todo o respeito, toda a estima, toda a consideração se lhe perdera. Escriptores, ja os não tinham, prégadores poucos e sem reputação, era em todo o sentido a religião mais humilhada na geral decadencia das ordens.

Fr. Diniz procurou-a por isso mesmo. Queria ser frade, o frade desprezado e apupado do seculo dezenove.

Em certos animos é preciso muito mais valor e enthusiasmo para affrontar este martyrio, do que fôra nos antigos tempos para ir ao incôntro das nobres perseguições do sangue e do fogo.

Luctava-se com honra então, cahia-se com glória, vencia-se muitas vezos morrendo...

Agora é soffrer so.

O mundo applaudia aquelles grandes sacrificios, e assistia com interêsse, com admiração, com espanto áquelles combates gigantescos. E o tyranno tremia diante da sua victima... quando lhe não cahia aos pés vencido, convertido e penitente...

Hoje o povo passa e ri, os reis cuidam de outra coisa, e a mesma Egreja não sabe que tem martyres.

’Pois tem-n’os’ dizia Fr. Diniz ’e precisa mais d’elles para se regenerar, do que ja precisou para fundar-se.’

Eis aqui porque Diniz d’Atahide não quiz ser bento, nem jeronymo, nem cartucho, e se foi

De todos os seus bens, que eram consideraveis, tirou apenas a modica somma de dinheiro que era necessaria para pagar o dote e piso de sua entrada no convento. Do resto fez doação inteira a D. Francisca Joanna — a velha hoje cega e decrepita que no princípio d’esta historia incontrámos dobando á sua porta na casa do valle.

A velha não tinha mais familia que um neto e uma neta.

A neta era Joanninha, filha unica de seu unico filho varão, e ja orphan de pae e de mãe.

O neto, orpham tambem, nascêra posthumo, e custára a vida a sua mãe, filha querida e predilecta da velha.

Antes da splendida doação de Fr. Diniz, a familia, que era de boa e honrada descendencia, podia dizer-se pobre; depois viviam remediadamente. Mas a velha não quiz nunca sahir do modesto estado em que atélli vivêra. Tinham fartura de pão, azeite e vinho de suas lavras; corria-lhe com ellas um criado velho de confiança; trajavam e tractavam-se como gente mean, mas independente.

Em tempos mais antigos e em vida dos dous filhos de D. Francisca, Fr. Diniz, então Diniz d’Atahide e corregedor da commarca, frequentára bastante aquella casa. Desde a morte do filho e do genro, que ambos pereceram desastradamente n’um dia cruzando o Tejo n’um saveiro em occasião de grande cheia, elle nunca mais lá tornára.

Até que se metteu frade, e que passaram annos e que o fizeram guardião do seu convento.

Ja a nora e a filha da velha tinham morrido tambem.

E foi notavel que na mesma hora em que Fr. Diniz professava em San’Francisco de Santarem, vestia D. Francisca aquella tunica roxa que nunca mais largou.

Mas um dia, chegou Fr. Diniz á porta da casa do valle e disse:

— 'Deus seja n’esta casa!'

A velha estremeceu, mas tornou logo a si, fez sahir as crianças que brincavam aopé d’ella, fechou-se com o frade, e fallaram baixo um dia inteiro. Rezaram e choraram, que tudo se ouviu; mas o que disseram e conversaram nunca se soube.

O frade foi-se ao anoitecer, a velha ficou rezando e chorando, e rezou e chorou toda a noite.

Isto fôra n’uma sexta-feira; d’ahi por deante em todas as sexta-feiras de cada semana, Fr. Diniz vinha passar algumas horas com a velha.

Não era seu confessor, mas dirigia-a como se o fosse, em tudo e por tudo, menos no que respeitava a Joanninha.

Havia no frade uma affectação visivel, um systema premeditado e inalteravel de se abster completamente de tudo o que podesse intervir, por mais remotamente que fosse, com aquella interessante criança.

Joanninha não lhe tinha medo, mas o respeito que lhe elle inspirava era misturado de uma aversão instinctiva, que, por contradicção inaudita e inexplicavel, a deixava sympathizar com tudo quanto elle dizia e professava: doutrinas, opiniões, sentimentos, tudo lhe agradava no frade, menos a pessoa.

Não assim Carlos, o primo, o companheiro, o unico amigo da nossa Joanninha, o outro neto da velha por sua filha. Andava elle ja no último anno de Coimbra e ia formar-se em leis, quando Fr. Diniz da Cruz começou de novo a frequentar a casa que Diniz de Atahide tinha abandonado.

Sôbre esse a inspecção do frade era minuciosa, vigilante, inquieta. Os livros que elle lia, os amigos com quem vivia, as ideas que abraçava, as inclinações para que pendia — de tudo se occupava Fr. Diniz, tudo lhe dava cuidado. A elle directamente pouco lhe dizia, mas com a avó tinha longas conferencias a esse respeito.

Ultimamente parecia satisfazer-se com o geito que o mancebo indicava tomar.

— 'É temente a Deus, não tem o ânimo cubiçoso nem servil, não é hypocrita, o mania do liberalismo não o mordeu ainda... hade ser um homem de prestimo:' dizia o frade a D. Francisca com verdadeira satisfacção e interêsse.

Passára porêm de seu meio o memoravel anno de 1830, e Carlos, que se formára no princípio d’aquelle verão, tinha ficado por Coimbra e por Lisboa, e so por fins d’agosto voltára para a sua familia. E veio triste, melancholico, pensativo, inteiramente outro do que sempre fôra, porque era de genio alegre e naturalmente amigo de folgar, o mancebo.

O dia em que elle chegou era uma sexta-feira, dia de Fr. Diniz vir ao valle.

Passaram as primeiras saudações e abraços, ficaram sos os dous, e:

— 'Não gósto de te ver:' disse o frade.

— 'Pois quê? que tenho eu?'

— 'Tens que vens outro do que foste, Carlos.'

— 'Outro venho, é verdade; mas não se infadem de me ver, que o infado hade durar pouco.'

— 'Que queres tu dizer?'

— 'Que estou resolvido a emigrar.'

— 'A emigrar, tu!... Porquê, paraquê? Que loucura é essa?'

— 'Nunca estive tanto em meu juizo.'

— 'Carlos, Carlos! nem mais uma palavra a similhante respeito. Em que más companhias andaste tu, que maus livros lêste, tu que eras um rapaz?.. Carlos, prohibo-te de pensar n'esses desvarios.’

— 'Prohibe-me... a mim... de pensar!... Ora, senhor...'

— 'Prohibo de pensar, sim. Le no teu Horacio se estás cançado das pandectas. Vai para a eira com o teu Virgilio... ou passeia, caça, monta a cavallo, faze o que quizeres, mas não penses. Ca estou eu para pensar por ti.'

— 'Porquê? eu heide ser sempre criança? a minha vida hade ser ésta? Horacio! tenho bom ânimo para ler Horacio agora... e a bella occupação para um homem de vinteeum annos, scandar jambos e trocheus.'

— 'Pois le na tua biblia, que é poesia medida n'alma e que repasce o espirito e o coração.’

— 'Eu não quero ser frade: sabe?'

— 'Nem te eu quero para frade.'

— 'Graças a Deus! Cuidei que... Mas em fim no seculo em que estamos...'

— 'O seculo em que estamos é o da presumpção e o da immoralidade: e eu quero-te livrar de uma e de outra, Carlos. Tua avó sabe as minhas tenções a teu respeito, approva-as...'

— 'Minha avó... approva muita coisa que eu reprovo.'

— 'Como assim, Carlos! que queres tu dizer?'

— 'Isto mesmo, senhor; — e que ámanhan que vou para Lisboa, imbarcar para Inglaterra.'

— 'Carlos!'

— 'É uma resolução meditada e inalteravel. Não quero nada com ésta terra nem com ésta...'

— 'Com ésta o quê, Carlos?..'

— 'Pois quer ouvi-lo, digo-lh'o: com ésta casa.’

O frade suffocava, e balbuciou entre cholerico e aterrado:

— 'Dir-me-has porquê?..'

— 'Porque me abhorrece e me humilha este mando de um extranho aqui... porque sempre desconfiei, porque sei emfim...'

— 'Sabes o quê?'

— 'Sei, padre Fr. Diniz, mas não me pergunte o que eu sei.'

Amarello, roxo, pallido, negro, o frade tremia; sumiram-se-lhe mais os olhos e faiscavam lá de dentro como duas brazas; fez um esfôrço sôbre si mesmo para fallar, e disse com uma voz cava e cavernosa como de sepulchro:

— 'Pois pergunto, sim; e permitta Deus!..'

— 'Padre, não jure nem pragueje' interrompeu Carlos com firmeza e serenidade ’as suas intenções serão boas talvez... creio que são boas, filhas de um remorso salutar...’

— 'Que dizes tu, Carlos... que disseste?.. Oh, meu Deus!'

As scenas tinham mudado: Fr. Diniz parecia o pupillo, a sua voz tinha o som da súpplica, ja não tremia de íra mas de anciedade; Carlos, pelo contrario, fallava no tom austero e grave de um homem que está forte na sua razão e que é generoso com a sua offensa. As palavras do mancebo eram agras, via-se que elle o sentia e que procurava adoçá-las na inflexão, que lhes dava.

— 'O que eu digo, padre Fr. Diniz, o que eu sou obrigado a dizer-lhe é isto. Minha avó consentiu, por fraqueza de mulher, no que eu não posso nem devo consentir. O que ha n'ésta casa não é... não é meu; o pão que aqui se come... é comprado por um preço... Padre! ja ve que não podêmos fallar mais n’este assumpto. Eu parto ámanhan para Lisboa. — Minha avó!’ acrescentou Carlos, mudando de voz e chamando para dentro ’minha avó!’

A velha acudiu, elle disse-lhe a sua tenção, motivou-a em opiniões politicas, declamou contra D. Miguel, mostrou-se enthusiasta da causa liberal, e protestou que, n’aquelle anno, de tal modo se tinha pronunciado em Coimbra e ainda em Lisboa, que só uma prompta fuga o podia salvar...’

A velha chorou, pediu, rogou... inutilmente, em vão.

Fr. Diniz assistiu a tudo isto sem dizer palavra.

E aquella tarde voltou mais cedo para o convento.

No outro dia de manhan muito cedo, abraçado com a avó e com a priminha que se desfaziam em lagrymas, Carlos dizia o último adeus áquella querida casa, áquelle amado valle em que fôra criado... N’essa noite estava em Lisboa, d’ahi a poucos dias em Inglaterra, e d’ahi a alguns meses na ilha Terceira.

Na sexta-feira depois da partida de Carlos, Fr. Diniz veio ao valle e teve larga conferencia com a avó.

Os tres dias seguintes a velha levou fechada no seu quarto a chorar... no fim do terceiro dia estava cega.

Joanninha era uma criança a esse tempo, parecia não intender nada do que se passava. Mas quem a observasse com attenção, veria que ella dobrou de carinho e de amor para com a avó, e que se não tornou a rir para o frade...

Elle, o frade, invelheceu de dez annos n’aquelle dia. Os olhos sumidos, que era a feição dominante n’aquelle rosto ascetico, sumiram-se mais e mais; a estatura alta e erecta curvou-se-lhe; o tremor nervoso, que o tomava por accessos, tornou-se-lhe habitual; os tendões enrijaram-lhe, os musculos da cara descarnaram-se, e a pelle ja sulcada de fundos cuidados, arrugou-se e franziu-se toda em rugas cruzadas e confusas como que se lh’a torrassem n’uma grelha.

Nunca mais houve um dia de alegria no valle. A sexta-feira porêm era o dia fatal e aziago. Fr. Diniz ja não vinha senão no fim da tarde e demorava-se pouco; mas tanto bastava. Suspirava-se por aquella hora e tremia-se d’ella. As notícias que consolavam, e os terrores que matavam, o frade é que os trazia. O resto da semana levava-se a chorar e a esperar.

E assim se tinham passado dous annos até á sexta-feira em que primeiro vimos junctas á porta da casa aquellas tres criaturas; assim se passou até d’ahi a oito dias que a nossa historia volta a incontrá-los.