CAPITULO XVII.

 

De como, chegando outra sexta-feira e estando a avó e a neta á espera do frade, este lhe appareceu, contra o seu costume, da banda de Lisboa. — Porque razão muitas vezes a mais animada conversação é a que mais facilmente pára e quebra derepente. — Nova demonstração de dous grandes axiomas dos nossos velhos, a saber: Que o hábito não faz o monge; e que ralhando as commadres, se descobrem as verdades. — No ralhar da velha com o frade, levanta-se uma ponta do veo que cobre os mysterios da nossa historia.

 

Passaram-se aquelles oito dias no valle, não ja como se tinham passado tantas outras semanas em vagas tristezas, em desconsolação e desconfôrto, mas em positiva anciedade e aguda afflicção pela certeza que trouxera o frade de se achar Carlos no Porto fazendo parte do pequeno exército do D. Pedro.

Incertos rumores, d’aquelles que percorrem um paiz em tempos similhantes e que augmentam e exaggeram, confundem todos os successos tinham chegado até ás pacificas solidões do valle com as notícias de combates sanguinarios, de commoções violentas, de desacatos sacrilegos, de vinganças e reprezalias atrozes tomadas pelos aggressores, retribuídas pelos que se defendiam.

Chegou a sexta-feira; e as horas d’esse dia, sempre desejado e sempre temido, foram contadas minuto a minuto — a qual mais longo, a qual mais pezado e lento de volver, quanto mais se approximava o derradeiro.

O sol declinava ja... e Fr. Diniz sem apparecer!

No seu poiso ordinario aopé da porta da casa, Joanninha com os olhos extendidos, a velha com os ouvidos álerta, devoravam o espaço na direcção de nascente, esperando a cada momento, temendo a cada instante ver apparecer o conhecido vulto, ouvir o som familiar dos passos do frade.

E tam intentas, tam absortas estavam ainda n’este cuidado, que não deram fe d’um religioso que pelo lado opposto, isto é, da banda de Lisboa, para alli se incaminhava a passos arrastados mas presurosos.

Chegou rente d’ellas sem o sentirem; e uma voz conhecida, porêm mais cava e funda do que nunca a ouviram, pronunciou a fórmula de saudação costumada:

— 'Deus seja n’esta casa!'

— 'Amen!' responderam ambas machinalmente, com um estremeção involuntario; e voltando derepente a cara para o lado d’onde vinha a voz.

— 'Jesus!' disse depois a velha tornando a si, ’Padre Fr. Diniz, de d’onde vem tam tarde?’

— 'Chego de Lisboa.'

— 'De Lisboa? Deus lh’o pague!... Foi saber?..' — 'Fui, fui saber novas d'esta horrivel guerra, d’esta tremenda visitação do Senhor á condemnada terra de Portugal...’

— 'E então, diga'...

— 'Boas novas, boas novas trago!'

— 'Sente-se, padre, sente-se. Joanninha, chega uma cadeira: descanse.'

— 'Não é tempo de descansar este, mas de vigiar e de orar.'

— 'Pois que succedeu, padre? Não me tenha n'esta horrivel suspensão. Diga: onde está elle? Alguma desgraça grande lhe aconteceu, oh meu Deus!..

— 'E que me importa a mim o que aconteceu ou podia acontecer a mais um de tantos perdidos? Encherá a sua medida, irá após dos outros... caminha nas trevas com elles, e como elles, so hade parar no abysmo.'

A éstas derradeiras palavras do frade asperamente pronunciadas e em tom de indifferença e desprêzo, seguiu-se aquelle silencio comprimido, aquella pausa de toda a conversação grave e íntima em que os pensamentos são tantos que se atropellam e não acham sahida na voz.

Fr. Diniz mentia... na dureza d’aquellas expressões mentia ao seu coração — não mentia ao seu espirito. Como o caustico se applica á epiderme para deslocar a inflammação interior, elle roçava o peito com as asperidões de sua doutrina e de seus principios rigidos para amortecer dentro a viva dor d’alma que o consummia.

O frade estava por fóra, o homem por dentro.

O observador vulgar não via senão o burel e a corda que amortalhavam e cadaver. O que attentasse bem n’aquelles olhos, o que reparasse bem nas inflexões d’aquella voz, diria: ’Frade, tu mentes; mentes sem saberes que mentes: es sincero na tua fe, na tua austeridade, na tua abnegação; mas o teu sacrificio é como o de Abraham na montanha, e Deus sabe que tu não tens fôrça para o cumprir.’

Não o percebeu assim a pobre velha aquem os rigores de Fr. Diniz faziam tremer, e que para toda a affeição, para todo o sentimento humano julgava morto o coração do cenobita.

Ella que no silencio de suas noites sempre veladas, na perpétua escuridão de seus dias sempre tristes luctava ha tanto tempo, luctava debalde para desprender das affeições do mundo, aquelle seu pobre coração que queria immollar ao Senhor, ella via com sancta inveja e admiração as sobrehumanas fôrças que imaginava no frade; e desanimada de o podêr seguir n’essas alturas da perfeição evangelica, recahia, mais desalentada e mais miseravel que nunca, em toda a sua fraqueza de mulher e de mãe.

Oh! não sabe o que é tormento, o que é inferno n’este mundo, o que não soffreu destas angústias!

Mas permitte Deus que as padeça quem não tem grandes culpas, grandes e irreparaveis erros que expiar n’este mundo?

Eu creio firmemente que não.

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Cansada e exhausta ja de tam porfiada lucta, a velha perdeu de todo a razão com as derradeiras palavras do frade, e n’um paroxismo de chôro exclamou:

— 'Diniz!.. Fr. Diniz, por aquelle pinhor sagrado que eu tenho em meu podêr, por aquella preciosa cruz sôbre a qual se derramaram as últimas lagrymas da minha desgraçada filha, Diniz!...'

— 'Silencio!' bradou o frade, arrancando um brado de dentro do peito que fez gemer os echos todos do valle: ’Silencio, mulher! não conjure o demonio que eu trago incarcerado n’este seio, que á fôrça de penitencias mal pude domar ainda... que so a morte poderá talvez expellir. Mulher, mulher! este cadaver que ja morreu que ja apodreceu em tudo o mais, que ja o comem, sem o elle sentir, os bichos todos da destruição... este cadaver tem um unico ponto vivo no coração... e o dedo do teu egoismo ahi foi tocar, oh mulher!.. Peccado que estás sempre contra mim! Justiça eterna de Deus quando serás satisfeita?’

Rompêra na maior violencia a voz do frade, mas descahiu n’um tom baixo e medonho ao fazer ésta última imprecação mysteriosa. As derradeiras syllabas quasi que lhe morreram nos beiços convulsos, e ao balbuciá-las deixou-se cahir, exhausto e como quem mais não podia, na cadeira que Joanninha lhe chegára.

A velha aterrada e confusa tremia do que fizera, como deante do espirito immundo que seus maleficios evocaram, treme a maga assustada de seu proprio podêr.

Passaram alguns segundos que nenhumas palavras podem descrever.

O frade levantou o rosto, olhou para ella, olhou para Joanninha... e, como quem emerge, por grande esfôrço, de um pêso enorme d’aguas que o submergiam, sacudiu a cabeça, sorveu um longo trago de ar, e disse na sua voz ordinario, so mais debil:

— 'Carlos, senhora... minha irman, Carlos está vivo; e exaqui, vinda pelo consul de França, uma carta d'elle.’

Tirou uma carta da manga e a intregou a Joanninha.