Vida e Feitos D' El-Rey Dom João Segundo/LIV
E logo sem delonguas nem esperar que algum lhe falasse, el-rey mandou chamar o senhor Dom Manoel que entam jazia doente e com elle Diogo da Silva seu ayo, vindo elle muy temorizado por o dia ser de tanto temor e espanto. E el-rey lhe disse que elle matara o duque seu yrmão porque elle duque com outros o quiseram matar; e porque todallas cousas que elle em sua vida tinha per sua morte ficavam livremente a sua coroa, elle de todas dali em diante lhe fazia merce e pura doaçam pera sempre porque Deos sabia que elle o amava como a propio filho, e lhe dizia que se o propio seu filho falecesse sem outro filho legitimo que o socedesse, que daquella ora pera entam o avia por seu filho erdeyro de todos seus reynos e senhorios; e isto de hũa parte e da outra foy dito e ouvido com muita tristeza e lagrimas porque el-rey muita parte destas desaventuras atribuya a seus pecados posto que fossem por culpas alheas; e o senhor Dom Manoel com muito acatamento pôs os joelhos em terra e lhe beijou por tudo a mão e assi Diogo da Silva seu ayo; e el-rey mudou-lhe o titolo de duque de Viseu por se nam entitular como seu yrmão e ouve por milhor que se intitulase duque de Beja e senhor de Viseu como di endiante se chamou. E logo nesta mesma fala el-rey tocou ao duque em querer pera si as villas de Serpa e Moura e que por ellas lhe daria dentro no reino muy inteira satisfação, e assi apontou nas saboarias do reyno que tinha, em que per ventura averia mudança porque as avia por opressam dos povos e por carrego de sua consciencia. E tambem lhe disse que a Ylha da Madeira no que pertencia a sua coroa elle duque a teria em sua vida inteiramente mas que per seu falecimento quando Deos ho ordenasse era rezam que por ser cousa tamanha se tornasse aa coroa e aos reys destes reinos que os socedessem. As quaes palavras que el-rey entam disse ao duque foram todas profecias do que ao diante se vio, pois tudo foy como elle entam o disse.
O bispo d' Evora ao tempo da morte do duque estava com a raynha, e ahi o foy chamar da parte d' el-rey o capitão Fernam Martinz; e em saindo fora foy loguo preso e levado com muita gente e muito recado ao castello de Palmella e metido em hũa cisterna sem agoa que está dentro na torre da menajem, onde dahi a poucos dias falleceo e dizem que com peçonha.
E na mesma noite foram presos per mandado d' el-rey Dom Fernando de Meneses e Dom Goterre; e foram trazidos diante d' el-rey na Relaçam onde Dom Fernando fez hũa fala a el-rey muy elegante como homem muy prudente e esforçado cavaleiro e muy isento, na qual disse algũas palavras a el-rey de que ouve desprazer, e por isso se nam ouve com elle piadosamente como tinha em vontade, e mandou que per justiça se determinasse seu feito e foy julgado aa morte e degolado na praça de Setuvel.
E Dom Goterre tambem quis fazer fala e falou tam mal com palavras piadosas que el-rey o nam quis ouvir e o mandou tirar de diante si. E porque Dom Vasco seu yrmão tinha ja pedido a el-rey que nam morresse por justiça, el-rey mandou levar o dito Dom Goterre preso aa torre d' Avis, onde tambem logo morreo, e segundo fama não morte natural senam arteficial.
E Dom Pedro d' Atayde sendo fogido de Setuvel e yndo caminho de Santarem, foy no caminho preso e trazido a Setuvel, onde contra elle foy acerca de suas culpas processado, pollas quaes per justiça foy pubricamente degolado e feito em quartos.
E Fernam da Silveyra foy escondido em hũa casa dentro em hũa cova por segredo e fiança de hum cavalleyro que fora criado de seu pay, que se chamava Joam Pegas que nunca se corrompeo, nem por temor das mortaes penas d' el-rey a quem o escondesse, nem por suas promessas e grandes merces a quem o descubrisse. E na pousada de Fernam da Silveira foy achada hũa sua barjoleta com muytos cruzados, que por mandado do duque recebera de que ja despendera muitos mais por aquelles da conjuraçam, cujos nomes e somas por suas ementas se acharam; e dahi a muitos dias o dito Fernam da Silveira se salvou per meo e ajuda de hum mercador que se chamava Bartalo homem estrangeiro que pollo seu se aventurou a muito, e por mar demudado em baixos trajos foy ter a Castella; e depoys sendo della desterrado a requerimento d' el-rey, foy em França morto a ferro na cidade d' Avinhão a oyto dias de Dezembro de mil e quatrocentos e oytenta e nove ãnos per o conde de Palhaes catalão que em França tambem andava desterrado, a quem el-rey pollo fazer por seu mandado fez merce de muita soma d' ouro em que se primeiro concertou. E porém o conde per mandado d' el-rey de França foy por ysso logo preso em perpetua prisam, a quem os favores e requerimentos que el-rey por elle mandou fazer, nam aproveitaram pera mais, que pera logo pello mesmo caso nam morrer por justiça de que com muita dificuldade escapou.
E Dom Alvoro d' Atayde era em Santarem onde pollos da conjuraçam foy acordado que estevesse com muyta gente que com dissimulações recolhia, pera tanto que da morte d' el-rey ou dalgum alevantamento contra elle fosse certificado logo recolhesse ao castello a Excelente Senhora Dona Joana, que entam estava no Moesteyro de Sancta Clara da dita villa, por que pera hũa cousa e pera a outra se o caso sobreviera, tinha ja as cousas aviadas e postas em hordem astuciosamente. Porque sobre o recolhimento desta senhora tinham esperança d' ajuda e favor dos reis de Castella a quem segundo fama tudo ysto era revelado. E por Dom Alvoro ser homem muy sabedor, de muito credito e autoridade estava em Santarem com esta empresa; mas como da morte do duque foy avisado como sesudo que era se pôs logo em salvo e se foy pera Castella onde sempre andou em vida d' el-rey; e depoys por el-rey Dom Manoel que sancta gloria aja foy a estes reynos tornado com sua honrra e restituydo ao seu. Porque na verdade muyto menos culpa e caso era estar Dom Alvoro em Santarem, posto que estivesse por parte do duque e em ajuda sua, que a dos outros que com suas proprias mãos queriam matar seu rey e senhor de que muitas e grandes merces tinham recebidas; que Dom Alvoro ainda que consentisse em o fazerem, nam no quis elle fazer nem ver fazer, e por isso estando el-rey em Setuvel estava elle em Santarem. E depois de assi ser nestes reynos casou com Dona Violante de Tavora molher de muy nobre geraçam, e ouve della hum filho que se chama Dom Antonio d' Atayde que ora he conde da Castanheira senhor de Povos e Chileiros, alcaide-moor d' Alegrete e de Colares, e veador da Fazenda d' el-rey nosso senhor, homem de muito grande estima e muyto aceyto a el-rey, de muita valia e tam bom saber, que sendo muito mancebo alcançou todas estas cousas e muita renda per si. E segundo seu contino serviço e o grande amor que lhe el-rey tem, e a muita confiança que tem nelle, se espera alcançar outros mayores.
E Pero d' Albuquerque fugindo foy logo preso em Lisboa, e trazido aa Casa da Sopricaçam onde foy contra ele processado e ouvido perante el-rey, a que fez hũa grande falla muy eloquentemente que falava muito bem, na qual alegou muitos serviços e grandes feitos em armas que era valente cavaleiro. E nada lhe aproveitou porque em fim por o caso foy julgado à morte e pubricamente degolado em Montemoor-o-Novo.
E o conde de Penamocor se acolheo e lançou logo na dita sua villa. E quando el-rey hia ao Sabugal como ao diante se dira, tornando-se el-rey de Castello Branco pera Santarem, o dito conde com seguro real lhe veo falar no lugar das Cortiçadas que se ora chama Proença-a-Nova; e porque se nam quis poer a dereyto como el-rey queria se despedio delle e de seus reynos e com sua molher e filhos se foy pera Castella; e depois em Roma e fora d' Espanha andou em muitos reynos cometendo contra el-rey muitas cousas até que tornou outra vez a Castella onde acabou como ao diante se dira.