TANTO que o meu velho amigo Professor Mauoel Querino, indefesso investigador das nossas coisas passadas, me annunciou o seu trabalho a respeito da "Culinaria Bahiana", dando-me a traço largo a directriz por elle proseguida em searas de todo descuidadas entre nós, na minha retentiva, um tanto disciplinada em cathedra que á memória pede longo folego, surgiu a lembrança de umas paginas magistraes dadas a lume na "Revista da Sociedade de Geographia de França", em 1909. Lembrando-as, eu disse ao nosso prezado confrade que o seu trabalho era de grande conta, subindo-lhe a estima por iniciar no Brasil estudos muito serios e que desvelavam engenhos em meios mais cultos.
De feito, quem já houver perlustrado as paginas de algum dos livros da moderna escola de geographos franceses, que teve como chefe o inolvidavel mestre Vidal de la Blache e tem hoje como expoente o emérito professor Jean Brunhes, do Collegio de França, certo, não ha de extranhar os gabos que presenteio á monographia que nos acaba de ler o velho professor, pedindo ademais um voto de louvor na acta dos nossos trabalhos em homenagem ao opimo fructo de tão relevante lavragem.
De ha muito, meus confrades, além Atlantico, já se não insiste na importancia dos estudos consagrados á alimentação, á habitação e ao vestuario, que constituem os três fundamentos essenciaes de toda a geographia economica.
Victor Bérard, vigoroso publicista francês, sociólogo de largos creditos em sua Patria, notou bem á justa que nos tempos antigos, quando se compuzeram as epopéas homericas, os homens não se classificavam segundo caracteres somaticos, como a côr da pelle, a conformação do craneo, etc., nem segundo os caracteres das linguas ou dos dialectos que falavam, porém, sim, de accordo com seus alimentos. Não se cuidava naquelle então de negros e brancos, pardos e amarellos: nomeavam-se tão somente os comedores de peixe, comedores de lotus, os sitophagos, os ichtyophagos, os lotophagos, accrescentando Bérard que a classificação dos homens em "phagos" é mais realista e mais verdadeira do que a classificação em "phonos", isto é, embasada nas linguas faladas.
O geographo russo Voelkof, em 1909, em dois artigos publicados no orgão official da Sociedade de Geographia de França, patenteou a relevância dos problemas da geographia da alimentação, esboçando uma classificação das gentes consoante as modalidades da alimentação pelos cereaes, pela carne e pelos lacticinios, terminando por formular algumas conclusões a respeito do futuro da alimentação, passíveis apenas de objecções pelo exclusivismo de vegetariano convencido e militante que é o notável mestre moscovita.
Menor não foi a contribuição que trouxe aos novos estudos o professor allemão Lichtenfelt, publicando em 1913 a sua obra — Die Qeschichte der Ernaehrung — A Historia da Alimentação. As 365 paginas desse formoso trabalho são manancial abundoso de suggestões para historiadores e geographos, revelando-se-nos em linhas muito claras toda a importância economica e social do problema da nutrição humana.
Jean Brunhes, que escreveu profunda synthese da Geographia Humana em livro admirável que o consagrou a maior autoridade do Mundo latino em tão bellos grangeios, na lição inaugural de um curso de "Anthropographia" no Collegio de França, chama a attençõo dos estudiosos para um livro intelligente apparecido em 1912, da lavra de um illustrado engenheiro e viajante que se occultou sob o pseudonymo de Ali-Bab. Nesse trabalho intitulado — Gastronomia Pratica. Estudos Culinários, — o seu autor traceja um quadro curiosissimo da geographia da cosinha, pondo em luz as condições e as causas geographicas da repartição destas ou daquellas iguarias. No capitulo preambular Ali-Bab versa a historia da gastronomia, dividindo-a em duas partes: uma historia das differerttes cosinhas e um quadro das cosinhas actuaes.
Eu cito apenas, illustres confrades, os mais momentosos trabalhos a respeito dessa nova ordem de pesquisas scientificas: deixo á margem os muitos artigos de vulgarisação dados a lume em revistas e periodicos.
Já notava Jean Brunhes que, quando se fala de cosinha, parece que se desce das regiões superiores do pensamento para a occupação trivial de problemas terra terra. Entretanto, são escrúpulos superficiaes que, precipuamente, se desmancham á luz dos inestimáveis serviços que, para o conhecimento dos usos e costumes dos nossos mais remotos antepassados, têm prestado os restos de cosinha que a sciencia européa appellida rebarbativamente kjökkenmödinger [2] e entre nós se denominam sambaquis, tão abundantes na faixa littoranea do Rio de Janeiro ao Rio Grande do Sul.
Além disto, é uma verdade inconteste que, não somente grupos ethnicos, mas também certas nações e paizes são definidos, ou se quizerem, parcialmente definidos, por sua alimentação corrente, por certas e determinadas iguarias preponderantes na alimentação de suas gentes ou características de suas cosinhas.
Sabem todos quem são os comedores de pão, os bebedores de cerveja, os comedores de arroz e os bebedores de chá ou de mate.Uma iguaria ou um manjar nacional como o cocido espanhol, o polenta italiana, a mamaliga rumaica, a porridge escossesa, o stchi ou o bortsch da Rússia, a sexa da Suécia, o knãckebröd da Finlândia, o yougourt da Bulgária, a miliasse dos departamentos franceses do Oeste, a gaude da Borgonha e do Franco-Condado, o chuppattis da India Septentrional, o izamba thibetano, o tofou japonês, o couscoussou árabe da África do septentrião, a tortilla mexicana, o churrasco platino, o puchero da Argentina, o jupará e o reviro das beiras do Paraná, entre o Brasil e o Paraguay, o vatapá e o carurú da nossa Bahia, são como espécies de signaes nacionaes que despertam em nossos espíritos excellentes representações de um certo numero de traços pertinentes a estas conectividades.
Valendo-me da suggestão do insigne mestre francêz, tantas vezes citado, eu vos perguntarei: Quantos Estados do nosso Brasil não poderiam ostentar como symbolo em seus estandartes particulares um prato ou um producto regional?
O assumpto é realmente de alto interesse. Guerra Junqueiro escreveu estes versos robustos:
"Bom estômago e ventre livre — um patrimônio.
A vida é boa ou má, faz rir ou faz chorar,
Conforme a digestão e conforme o jantar.
Toda philosophia, pode crel-o, Doutor,
Ou tristonha, ou risonha, ou alegre, ou sombria
Deriva em nós, tão orgulhosas creaturas,
De gastro-intestinaes combinações obscuras".
Avivando a vossa attenção no apreciar maduramente o invulgar da preciosa monographia do Prof. Manoel Querino, não me furto ao prazer de vos referir as palavras de Jean Brunhes em sua aula inaugural já referida, instando, persistente na monta de taes problemas: "no curso de meus estudos em torno da península balkanica e a respeito da geographia humana dos paizes da mesma península, liguei importancia excepcional a tudo o que constitue a alimentação costumeira, os alimentos tradicionaes e o genero de vida. Passeando um dia pelas ruas de Belgrado (capital do novo reino Serbo-Croata-Sloveno), percebi na frente de uma modestíssima bodega uma mesa onde se achavam um Samovar e um Kanta; o Samovar é o utensílio de cobre que serve para fazer chá; o Kanta é um vaso cravado de cobre no qual se fabrica e vende a boza, que é uma bebida de farinha de milho fermentada. Ora, o Somovar e o chá exprimem um costume russo, emquanto que a boza é de origem turca. Nesse paiz slavo, que por tanto tempo esteve sob o domínio dos turcos, as influencias da Rússia e da Turquia estão flagrantemente figuradas pela juxtaposição inesperada do Samovar e do Kanta.
Ponderae, meus caros confrades, na acuidade da observação que restimbra destes períodos de ouro.
Ahi ficam estas palavras á margem da criteriosa monographia offerecida hoje ao Instituto, em palestra saborida. Não pretendi criticar-lhe a contextura, até porque só a conhecia no rápido summario de conversa intima, numa dessas tardes amigas em que aqui nos encontramos, nós, os do grupo mantenedor da actuação diligente e viva do Instituto.
O meu intuito foi apenas despertar os respeitos dos estudiosos desta tenda para a importância actualissima que, nos meios cultos do velho e novo mundos, têm os estudos a cuja cathegoria pertence o trabalho do Prof. Manoel Querino. Elle é, no Brasil e ao meu conhecimento, a primeira contribuição séria nessa provincia dos estudos histórico-geographicos: cabe ao nosso Instituto a honra de mais uma iniciativa na labuta a que se devotam as sociedades congêneres da Republica.
O meu voto final é que a monographia do Prof. Manoel Querino seja capaz de empolgar o espirito de outros seareiros, de geito que nos presenteiem ouvidas deleitosas como a de hoje, e mais do que isso, affirmem desenganadamente as fainas fructuosas do Instituto Geographico e Histórico da Bahia.
- ↑ Tanto que mão Amiga me poz sob os olhos o n. 73, da Revista do Brasil (S. Paulo,) referente ao mez de Janeiro deste anno, para logo decidi, deliberadamente, tomar esta curiosa publicação por paranympho da minha pobre monographia, sobre arte culinária e, somente, por não corresponder o meu trabalho á justesa e á benevolencia dos conceitos - não a (texto ilegível) previamente, ao illustrado professor Bernardino de Souza, para o fim que tive em mim. Entretanto, si, com esta minha resolução, cumpro rudimentar dever de amistoso reconhecimento, muito mais me desvaneço do eminente e desinteressado juízo que de mim fez o laborioso consocio, o indefeso secretario perpetuo do Instituto Geographico e Histórico da Bahia. Manoel Querino
- ↑ Em dinamarquês kjõkken significa — cosinhar - e mõdding (no plural möddinger) significa - restos, destroços.