É como segue:
«A Societé Nationale d’Acclimatation houve por bem incluir no cardapio cosmopolita do seu recente banquete annual pratos genuinamente brasileiros.
Quem se incumbiu do encargo, tão cheio de responsabilidades, de organizar esta lista que eu ouso chamar menu para não assanhar contra mim os defensores do vernaculo)— já recebeu dos convivas, a quem felicitou, agradecimentos de innegavel sinceridade.
Muito póde mentir a bocca quando fala. Mas o que ella não pode fingir é a agua que lhe vem da gula deliciada por obras primas da arte culinaria, é o encanto com que saboreia maravilhas criadas por cozinheiros, dignos pela sua benemerencia, de subirem a categoria de deuses.
Alem dessas homenagens da gratidão mastigadora, o organizador do cardapio merece o reconhecimento patriotico de milhões de almas que embora daqualle jantar não tivessem sequer sentido o cheiro, estão (texto ilegível) de felicidade, como se houvessem comido a lartar.
Tiveram tambem o seu regalo de boca de Brasileiros, porque, naquella mesa parisiense, figuraram honrosamente nos quitutes capazes de arrancar unanimes applausos.
Naquella mesa, posta num salão da cidade que distribue a gloria, houve para bem crear um concurso universal de comedorias.
Paizes entraram com piteos caracteristicos, e o Brasil não se sahiu mal, não voltou do certame cabisbaixo, vertendo lagrimas de fel sobre uma terrina desprezada.
Não, aquillo com que contribuiu para o exito da festa, recebeu honrarias especiaes de ostomagos maravilhados.
Nem era para menos. Quem escolheu os pratos que devia representar a nossa coxinha, tem dedo! Tirou do nosso guarda-comidas joias preciosas.
O que lá appareceu sob o pseudonymo de timbales de mollusques et de crustaces tres appreciés au Brésil, é a famosa frigideira de siris molles, á qual, sem exaggero, cahe a denominação de divina.
E que direi eu do Vatapá, a mais prodigiosa invenção do genio da Bahia?
Lá estava elle, sciente do seu valor, certo de não ser vencido por preparava o seu complicado macarrão, que lhe causava mais orgulho que o Barbeiro de Servilha.
Espalhada pelo mundo a fama da nossa cozinha, quantos estranjeiros não viriam aqui, simplesmente para comer? Não deixariam de amar a nossa natureza; ella porém, passaria ao papel secundário de fornecer o elemento decorativo para o almoço ou o jantar. Almoçar no alto do Corcovado, jantar á sombra de mangueiras majestosas, que prazer! Mas a mesa, rústica ou pomposa, seria o principal. E a panela do vatapá, consagrado pelo consenso unanime dos povos, — ficaria mais alta que as nossas montanhas.
Quando sahissem daqui, lambendo os beiços, os viajantes não teriam palavras azedas para os hospedes e levariam impressões intensas. A gratidão do paladar é mais duradoira que a de outros sentidos. Musica que entra por um ouvido póde sahir pelo outro. A visão de uma paizagem esmorece na memória frágil. Mas a reminiscencia de um bom vatapá é eterna.
Demais, quem teve a fortuna de proval-o, quer repetição. E nem todos os que ouviram uma opera fazem questão de ouvil-a novamente.
Não se diga que seja indigno do orgulho nacional o empenho de ganhar a attenção do mundo por quitutes.
A celebridade alcançada por esse meio não é inferior á que se obtem pela philosophia, pela arte e pela sciencia.
Uma cozinheira póde revelar genio e os genios são iguaes. Na culminancia da sua arte, ella fica no mesmo plano superior a que subiram Kant, Raphael, Mozart e outros habitantes das grandes alturas.
Quando Presidente da Republica, THIERS era visitado por MIGNET, que apparecia em palacio, sempre, com um embrulho em baixo do braço. Aquillo havia de ser um livro. Pois, não era. O que elle levava era uma lata hypocrita, e dentro della havia a famosa bouilabaisse, à moda de Marselha. Fechavam-se os dois no gabinete da presidencia e ahi se entregavam á delicia daquelle prato regional, ás escondidas de Mme. Thiers, que obrigava o marido a uma severa dieta.
Quando se despediam, era com esta frase de enthusiasmo: — «É obra-prima do espirito humano!»
Isso diziam dois historiadores, que deveriam reservar aquellas palavras para as obras de Tácito e Tito Livio.
Animados por esse exemplo, não hesitemos em affirmar que a humanidade nos deve obras-primas do espirito humano, dessas que glorífícam uma nação e immortalizam um povo. O vatapá póde considerar-se tão sublime quanto a Critica da Razão Pura, com a vantagem de ser igualmente profundo e mais accessivel ao gosto do genero humano, que parece preferir á melhor philosophia — os bons bocados. — C.»
Os gryphos são nossos.
(De A Tarde de 16—10—1930).