A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Paraíso/II

Sobem à lua. Exortação aos leitores. Dante pergunta a Beatriz se as manchas da lua dependem da maior ou menor densidade do astro. Beatriz confuta o erro. Todos os astros são iluminados pela virtude que do primeiro móvel se difunde aos céus sotopostos. Na lua a virtude é menor que nos outros céus.

Vós, que em frágil barquinha navegando,
Desejosos de ouvir, haveis seguido
Meu baixel, que proeja e vai cantando,

Volvei à plaga, donde haveis partido,
O pélago evitai; que, em me perdendo,
Vosso rumo talvez tereis perdido.

Ondas ninguém cortou, que vou correndo,
Sopra Minerva e me conduz Apolo
E o Norte as Musas mostram-me, a que eu tendo.

Vós, que, raros, a tempo haveis o colo
Erguido ao pão dos anjos, que alimenta,
Mas não sacia, no terráqueo solo,

A vossa nau guiai, de medo isenta,
No salso argento, após a minha esteira,
Enquanto água o seu sulco inda apresenta.

A que em Colcos surgiu gente guerreira,
Menos que vós, atônita ficara
Jasão vendo aplicado à sementeira.

Perpétua, inata sede nos tomara
Do império deiforme e nos levava
Quase bem como o céu, que jamais pára.

Olhava o céu Beatriz, eu a encarava.
Tão depressa talvez, quanto arrojada
Ao ar, a seta do arco se destrava,

Cousa vi, que prendeu maravilhada
A vista minha súbito; e então ela,
Que do meu cogitar stava inteirada,

Voltou-se e disse leda, quanto bela:
“A Deus eleva a mente, agradecido,
Chegados somos à primeira estrela.”

Lúcido, espesso, sólido e polido
Vulto, qual nuvem, nos cobrir parece,
Quase diamante pelo sol ferido.

Na per?la eterna entramos: assim desce
Raio de luz pela água, que recebe
No seio, mas unida permanece.

Se eu era corpo, e aqui se não percebe
Como uma dimensão outra compreende,
Senão se um corpo em outro corpo embebe,

Com mais razão desejo em nós se acende
De ver aquela essência, que é patente
Como a nossa natura a Deus se prende.

Ali o que por fé se crê somente
Sem provas por si mesmo será noto,
Como a verdade prima o que o home? assente.

— “Ante o Senhor com ânimo devoto
Humilho-me” — tornei-lhe — “enternecido,
Pois do mundo mortal me tem remoto.

“Mas dizei: neste corpo o que tem sido
As manchas negras, com que lá na terra
Sobre Caim se hão fábulas urdido.” —

Sorriu-se e respondeu: — “Se assim tanto erra
Dos mortais o juízo no que a chave
Dos sentidos verdade não descerra,

“Não mais depois o espanto em ti se agrave;
Pois vês como, aos sentidos se rendendo,
Nos curtos vôos a razão se trave.

“Mas fala, idéias tuas me dizendo.” —
— “O que parece aqui ser diferente
De corpo raro e denso vir stou crendo.” —

— “Tu verás” — replicou — “bem claramente
Ser falsa a crença tua, se escutares
Os argumentos, que lhe oponho em frente.

— “Na oitava esfera há muitos luminares,
Nos quais, por qualidade e por grandeza,
Notam-se aspetos vários, singulares.

“Se o denso e o raro atua, com certeza
Virtude única em todos tem regência,
Influindo com mais, menos graveza:

“São as virtudes várias conseqüência
Dos princípios formais que destruídos
Seriam, exceto esse: é de evidência.

“Se são por corpo raro produzidos
Tais sinais, ou neste astro muitos postos
De matéria estão destituídos,

“Ou, como o gordo e o magro sobrepostos
No corpo vês, quadernos diferentes
Este astro em seu volume tem dispostos.

“Nesse caso estariam bem patentes
Nos eclipses do sol da luz efeitos,
Que são, nos corpos raros, transparentes.

“Assim não é. No outro, se desfeitos
Forem seus fundamentos, demonstrado
Terei teu erro em ambos os respeitos.

“Não indo o raro de um ao outro lado
Limite deve haver onde, já denso,
Não possa o corpo ser atravessado;

“E sobre si o lume torne intenso,
Bem como a cor, por vidro refletida,
Ao qual o chumbo é por detrás apenso.

“Dirás que a luz se mostra escurecida
Aí, mais do que outra e em qualquer parte,
Por ser de mais distância refrangida.

“Desta instância consegue libertar-te
Experiência, se dela te ajudares,
Por ser sói a fonte de toda arte.

“De espelhos três se a dois tu colocares
Com igual intervalo, e o derradeiro
Mais longe, entre os primeiros encarares;

“Se houveres pelas costas um luzeiro,
Que os espelhos já ditos esclareça,
Dos dois repercutido e do terceiro:

Conquanto uma extensão menor pareça
No espelho que se avista mais distante,
Verás como igual luz o resplandeça.

“Como aquecida do astro rutilante,
A neve se derrete e se esvaece,
A frigidez perdendo e a cor brilhante,

“Assim, pois que o teu erro desparece,
Mostra-te clarão vou tão refulgente,
Que cintila qual luz que do céu desce.

“No céu da paz divina um corpo ingente
Gira: em sua virtude está guardado
O ser de quanto é ele o continente.

“O céu seguinte, de astros marchetado,
Aquele ser reparte por essências
Distintas, mas que tem nele encerrado.

“Os outros céus, por várias influências,
Distinções que contêm, dispõe, lhes dando
Quanto serve aos seus fins e conseqüências.

“Esses órgãos do mundo (estás notando)
Seguem, pois, gradação, que não varia;
Vêm de cima os que abaixo vão passando.

“Comprendes já como é segura a via,
Por onde ir à verdade desejada:
Depois o vau tu passarás sem guia.

“Deve aos santos motores imputada
Ser, como ao fabro o efeito do martelo,
Dos céus a ação, desta arte revelada.

“E o céu, que tantos lumes fazem belo,
Do Ser Supremo, que no espaço o agita.
A imagem toma e a insculpe como selo.

“E como alma, que a humana argila habita,
Por diferentes membros atuando,
Faculdades diversas exercita,

“A Inteligência assim multiplicando
Dos astros nos milhões sua bondade,
Sobre a Unidade sua vês girando.

“Cada virtude, em sua variedade,
A cada precioso corpo é unida
A que dá, como em vós vitalidade.

“A virtude, em tais corpos infundida
Refulge, de um ser ledo procedente
Qual ledice em pupila refletida.

“Daí vem que uma luz de outra é dif?rente,
Não por efeito do que é denso e raro:
Esse é formal princípio eficiente

Conforme a sua ação o turvo e o claro.” —