A Divina Comédia (Xavier Pinheiro)/grafia atualizada/Paraíso/V

Continuando no discurso do canto anterior, Beatriz explica a Dante que o voto é um pacto entre o homem e Deus. Pode mudar-se a matéria do voto, mas deve ser substituída com oferecimentos de maior mérito. Beatriz lamenta a leviandade dos cristãos.

Beatriz e Dante voam depois para a esfera de Mercúrio, onde estão as almas dos homens que viveram uma vida digna, adquirindo fama no mundo. Um espírito fala ao Poeta.

<poem>
Se no fogo do amor te resplandeço
Em modo, que o terreno amor precede;
Se aos olhos teus a força desfaleço;

&#0147;Não te espantes: efeito é que procede
Desse perfeito ver, que o bem compreende,
E, o compreendendo, em se apurar progrede.

&#0147;Já patente me está quanto resplende
Na inteligência tua a Luz eterna,
Que, apenas vista, sempre amor acende;

&#0147;E, se outro objeto humano amor governa,
Vestígio dela é só mal percebido,
Só transluzindo em sua forma externa.

&#0147;Saber queres se um voto não cumprido
É de outras obras resgatado, e tanto,
Que em juízo de Deus fique absolvido.&#0148; —

Começou Beatriz desta arte o canto;
E, como quem no discorrer não pára,
Seguiu assim no seu elóquio santo:

&#0147;O mor bem que ao universo Deus doara,
O que indicara mais sua bondade
O que em preço mais alto avaliara,

&#0147;Foi do querer, por certo, a liberdade,
Que a toda criatura inteligente
Há dado em privativa faculdade.

&#0147;Daqui, por dedução, fica evidente
Do voto a alta valia, quando é feito
Por acordo entre Deus e a humana mente.

&#0147;Por contrato, entre Deus e o home? aceito,
Esse tesouro é vítima imolada,
Que ao sacrifício vai com ledo aspeito.

&#0147;Pode ser porventura compensada?
Se cuidas usar bem do que ofertaste,
Crês fazer bem com prata mal ganhada.

&#0147;Certo do ponto capital ficaste;
Com a dispensa a Igreja, parecendo
Em tal caso contrário ao que escutaste,

&#0147;Convém, que um pouco à mesa te detendo,
Para o rijo manjar, que hás ingerido,
Socorro aguardes, que te dar pretendo.

&#0147;Ao que te explico atento presta ouvido
E guarda-o na alma; pois não dá ciência
Ouvir o que depois fica no olvido.

&#0147;Exige do sagrado voto a essência
Aquele objeto em sacrifício dado
E do próprio contrato a consistência.

&#0147;Jamais pode ser este obliterado,
Ainda que infringido: já bem clara
Demonstração sobre este ponto hei dado.

&#0147;Lei rigorosa a Hebreus determinara
Fazer pia oblação; mas concedida
A permuta da oferta lhes ficara.

&#0147;Da matéria do voto é permitida
Conversão quando ensejo se oferece,
Sem ser por isso falta cometida.

&#0147;Mas não se muda, quando bem parece,
O fardo; só se a Igreja, tendo usado
Das chaves de ouro e prata, o concedesse.

&#0147;Crê que toda permuta é passo errado,
Quando o antigo no novo não se inclua,
Bem como quatro em seis vês encerrado.

&#0147;Se o voto é tal na gravidade sua,
Que obrigue a se inclinar toda balança,
Outro voto não há, que o substitua.

&#0147;Não contraí, mortais, votos por chança!
Cumpri-os, mas não Jefté imitando,
A quem deu louco voto a desesp?rança.

&#0147;— Fiz mal! — dissesse ao voto seu faltando,
Por não fazer pior cumprindo-o. Estulto
Foi o potente Rei dos gregos, quando

&#0147;À filha fez chorar seu belo vulto
E à piedade moveu quantos ouviram
Falar daquele abominável culto.

&#0147;A razões pesai bem, que vos inspiram,
Cristãos! não sêde pluma a qualquer vento!
As nódoas com toda a água se não tiram!

&#0147;Tendes o Velho e o Novo Testamento
E da Igreja o pastor, que os passos guia:
Que mais quereis por vosso salvamento?

&#0147;Se má cobiça o peito vos vicia,
Homens sêde e não brutos animais:
Que entre vós o Judeu de vós não ria.

&#0147;Como o cordeiro simples não façais,
Que contra si combate petulante,
Da mãe o leite não querendo mais.&#0148; —

Beatriz assim disse. Eis anelante
E arrebatada em êxtase voltou-se
À parte, onde o universo é mais brilhante.

Ante o enlevo em que o gesto transmutou-se,
Calou-se o meu desejo impaciente:
De outras questões, já prestes, refreou-se.

Como a seta, que o alvo de repente
Atinge antes que a corda esteja quieta,
No céu segundo entramos velozmente.

Tão leda eu via Beatriz dileta,
Daquele céu nas luzes penetrando,
Que mais vivo esplendor mostra o planeta.

E se a estrela sorriu, se transformando,
Como não fiquei eu, que fez natura
Mudável, impressões todas tomando?

Como viveiro de água mansa e pura,
Pela esp?rança, de pasto, que se of?reça,
Sofregamente o peixe o anzol procura,

Mais de mil esplendores vindo à pressa,
— &#0147;Eis aí quem nos traz de amor aumento!&#0148; —
A voz de cada qual nos endereça.

De cada sombra o alegre sentimento,
Em se acercando a nós, se denuncia
No fulgor do seu claro luzimento.

Quão sôfrego o desejo não seria
Em ti leitor, se acaso interrompesse
A narração de quanto então se via?

Imaginas, portanto, o que eu tivesse
De conhecer aquela grei formosa,
Tanto que ante os meus olhos aparece.

— &#0147;Ó criatura, que assim vês ditosa
Os tronos do eternal triunfo, inda antes
De finda a terreal guerra afanosa,

&#0147;Nos lumes, que no céu há mais brilhantes,
Ardemos: te darei, se as pretenderes,
Ao teu desejo informações bastantes.&#0148; —

Assim falou. — &#0147;Responde que assim queres.&#0148; —
A Beatriz ouvi — &#0147;diz com franqueza,
E crê como divino o que entenderes.&#0148;

— &#0147;O ninho tens, já vejo com certeza,
Na luz eterna: o seu fulgor revela
Dos olhos teus, sorrindo-te a viveza.

&#0147;Mas não sei quem tu és, ó alma bela,
Nem por que por degraus tens esta esfera,
Que aos mortais nos clarões de outra se vela.&#0148;

Assim disse, voltado à luz que houvera
Primeira a voz alçado: refulgindo,
Mais coruscante a vi ao que antes era.

Bem como o sol os lumes encobrindo
No seu próprio esplendor quando esvaece
As cortinas que estavam-nos cingindo,

Da alegria no excesso desparece
Nos próprios raios a figura santa.
Na sua luz envolta que recresce,

Disse o que o canto que se segue canta.