No Capítulo IV da Primeira Época dissemos que os religiosos franciscanos passaram a esta ilha Terceira com o capitão Jácome de Bruges no ano de 1456, ou bem próximo a ele, dando-lhe por seu prelado aquele frei João, o da Ribeira, e que nove destes religiosos foram em 1459 habitar no convento de Xabregas, de pouco tempo fundado. O autor da História Seráfica Cronológica da Ordem de São Francisco, no Livro 1.º, capítulo 13.º, antecipa a vinda destes religiosos, e cuida, com a direcção de um memorial antigo, que seria no ano de 1452, depois de haverem deixado nos braços do desamparo a sua pobre casa principiada na ilha de Santa Maria. Porém, se considerarmos Diogo de Teive, despachado a 6 de Dezembro deste ano com o privilégio da fábrica de açúcar na ilha da Madeira, como dissemos no referido capítulo, se achava ali quando o capitão Bruges o foi buscar, por mandado do Infante, para lhe servir de lugar-tenente na ilha Terceira, bem vemos que estes religiosos não podiam chegar aqui senão com ele, ou algum tempo depois, quando já existisse povoação, que deles recebesse os socorros espirituais, único fim do sua missão; porquanto é de presumir que Diogo de Teive não deixaria a cultura da sua incumbência sem primeiro tirar experiência dos lucros. Assim prece evidente quer estes religiosos só entraram na Terceira com o dito capitão, e em tal número que já no ano de 1459 foi parte deles residir no mencionado convento de Xabregas.

A pouca curiosidade dos antigos deixou em silêncio os nomes e número destes religiosos; porém não pôde escurecer a glória que mereceram neste feito. Todavia sabemos que o convento com orago da Senhora da Guia, foi desde logo o centro de toda a província. O Doutor Frutuoso, alegado pelo padre Cordeiro, no Livro 6.º, Capítulo 12.º, confessa não saber quem fosse o seu fundador, e o mesmo Cordeiro só adianta que os ditos religiosos eram da regra dos conventuais[1]; e que no ano de 1568 vieram os franciscanos observantes para as ilhas, e estando somente dois anos, delas foram mandados para Portugal e tornando a ficar os conventuais, e lhes vêm então por comissário e guardião de Angra frei Lourenço de Pina. Que depois, juntando-se os observantes e conventuais, todos eles renderam obediência ao geral da observância frei Francisco Gonzaga, no capítulo feito em Xabregas de Lisboa, dando-se os conventos todos à província do Algarve, e ficaram os destas ilhas sendo observantes até ao fim.

Quanto ao fundador, os nossos cronistas[2] persuadem-se fora o dito frei João, o da Ribeira. E a respeito do número de frades, que vieram, segundo o Eminentíssimo Cardeal frei Luiz Gonzaga[3], consta serem mandados da província dos Algarves às ilhas dos Açores 25 religiosos, para nelas residirem; e com eles se deu princípio à fundação dos 5 conventos que já no ano de 1480 existiam nestas ilhas, e provavelmente (diz Maldonado no Alento 1.º, § 32 da História Insulana) seriam o de Santa Maria, Vila Franca, e Ponta Delgada, em São Miguel; o da Praia, e o de Angra na Terceira; e afirma que já naquele ano estavam instituídos, e ordenados em custódia, vindo a eles visitadores, feitos no capítulo sinodal da província dos Algarves de que eram filhos: e por várias combinações se colige ser de 1466 em diante, que eles, na Terceira foram recolhidos em clausura, por ser o tempo em que residiu nela Afonso Gonçalves de Antona, o qual depois do ano de 1475, passando à Praia com Álvaro Martins Homem, lhes doou o sítio e casas que lhe ficaram em Angra para nelas mais comodamente edificarem o seu convento[4].

Seja porém o que for, em tanta obscuridade de tempos se não pode afirmar qual seja a verdade: o certo é que a este piedoso estabelecimento foi confiada a doutrina dos povos nos púlpitos e confessionários; e foram eles os primeiros, e únicos, mestres aos quais se encomendou o ensino da mocidade terceirense, pois tinham as escolas de primeiras letras, e as de gramática latina, as de teologia moral, e outras, onde ensinavam de portas abertas a quem os procurava. Exercício piedoso que lhes incumbira o Infante D. Henrique e o Rei D. Manuel, o qual, para melhor serem aceites, continuando o costumado concurso de sua grandeza[5], a 19 de Janeiro de 1497 mandou publicar em todas estas ilhas, com razões demonstrativas do seu especial afecto, ser protector destes religiosos e defensor de suas imunidades, isentando-os de subsídios e tributos, e isso mesmo aos seculares que os serviam. Exemplo que depois seguiu a benevolência de doutros Monarcas, com iguais privilégios. Tal foi o estabelecimento dos religiosos Franciscanos na ilha Terceira, centro da província dos Açores; tal o exercido piedoso destes religiosos durante aqueles tempos.

Sigamos a narração abreviada do governo que no lastimoso espaço do 1474 a 1480 teve lugar nesta ilha. Pelo que fica demonstrado no Capítulo antecedente, foram os herdeiros do primeiro donatário, Jácome de Bruges, excluídos para sempre da sucessão da capitania, não lhes restando mais do que inquietações, ódios, e gravíssimos desgostos, que sempre arrastam após si semelhantes pendências. Até nos parece que seria impossível[6] a Duarte Paim, como legal administrador de sua mulher, haver em algum tempo conseguido a posse da capitania com os poderes de seu sogro[7]; porém, depois de feita a doação aos seus competidores, Álvaro Martins Homem e João Vaz Corte Real, é indubitável que ele não tomou jamais posse de tal cargo, nem Diogo de Teive lho entregou, nem a outrem; pois vemos que, estando servindo de ouvidor e capitão em toda a ilha, ainda em 18 de Agosto de 1475, e já depois de separada a mesma ilha em duas capitanias, deu de sesmaria a João Leonardes, o Velho, a terra, que por este facto se chamou das Contendas, aonde está o pico do mesmo nome, abaixo da vila de S. Sebastião, que eram 24 moios e trinta alqueires[8], partindo (diz a sentença) com rio e água do mar, até ao monte sobre a fonte da povoação, partindo para o fundo com Vasco Lourenço, e com João Coelho. Sobre isto procedeu aquele grande e celebrado pleito[9], que por fazer o principal objecto da história daqueles tempos, levamos copiado sob a letra — Documento F —.

Alegava o autor João Leonardes, o Velho, que estando na ilha Terceira Diogo de Teive com o cargo de capitão e ouvidor geral, na sobredita era de 1475, lhe deu de sesmaria as terras mencionadas[10]; cuja doação ratificara depois o réu João Vaz Corte Real: e que finalmente arrependido, sendo em Junho de 1480, fizera doação a seu filho Gaspar Corte Real[11] faltando ainda dois meses para se concluir a dada; que por isso tal doação não valia, muito mais sendo a seu filho e por mais de 5 anos — diz a sentença — sem que fosse por escrivão de ofício, e em outra forma, e não como alvará de palha.

Alegou mais o autor que em 18 de Agosto de 1482 lhe passara o escrivão do almoxarifado Ambrósio Álvares carta de data, assinada por Afonso do Amaral, ouvidor com cargo de capitão; e por isto vemos, e ainda por outras sentenças de alguns ouvidores, que João Vaz a maior parte do tempo esteve fora da ilha, talvez defendendo-se de pleitos que sobre a posse da capitania contra ele corriam por parte de Duarte Paim.

Advertimos outrossim pelo teor desta mesma sentença, que os réus João Vaz, e sua mulher Maria de Abarca, nunca alegaram contra o autor nulidade no título de doação, que lhe fizera Diogo de Teive, sendo já passados 17 meses em que a Infanta D. Brites havia dividido a ilha, preterindo a filha e descendentes do capitão Bruges: o que assaz justifica haverem sido recebidos os embargos por parte de Duarte Paim, e andarem litigiosas as cartas de doação e divisão das capitanias.

Também parece evidente que Diogo de Teive em todo o tempo que mediou desde o desaparecimento do capitão Bruges até Agosto de 1475, em que vemos fez esta doação, usou de título legal para exercer o cargo de capitão e doar as terras: porque sabemos não lhe fosse arguido em contrário e provavelmente que ele se conservou até se decidirem os embargos das ditas cartas de Álvaro Martins e João Vaz; o que temos por certo que foi até ao ano de 1480, em que este último fez a doação das terras das Contendas a seu filho Gaspar Corte Real, como já dissemos.

No espaço que decorreu de 1475, em que Diogo de Teive ainda estava na Terceira e doava as terras na qualidade de ouvidor com o cargo de capitão, até ao ano de 1480, em que já na parte de Angra governava João Vaz da Costa Corte Real e doava a terra das Contendas a seu filho, como temos visto, deixou Diogo de Teive de governar; e sucedendo ir a Lisboa (conta o padre Cordeiro) foi preso em razão de culpas lá cometidas; e sabendo-o a dama viúva de Jácome de Bruges, foi queixar-se a El-Rei que Diogo de Teive lhe matara o seu marido, requerendo-lhe o obrigasse a dar conta dele. Então El-Rei lhe mandou intimar à prisão para que dentro de dez dias desse conta de Jácome de Bruges, ou vivo ou morto, sob pena de mandar proceder contra ele. O que ouvido por Diogo de Teive, ele tanto se apaixonou que no sexto dia faleceu. É esta a tradição. Mas o Padre Cordeiro, e alguns outros escritores, antepõem a morte de Teive ao casamento de Duarte Paim com a filha de Jácome de Bruges, Antónia Dias de Arce: quando ainda ele viveu muitos anos depois, como temos expendido; e copiosamente se depreende na leitura da carta de sentença referida copiada no Documento F. Do que se conclui ignorar-se também em que tempo faleceu Diogo de Teive, e o género de morte que teve.

  1. O citado autor da História Seráfica chama-lhe observantes [Nota do Editor: Eram franciscanos do ramo dito espiritual, influenciados pelos ensinamentos de Gioacchino da Fiore, aos quais se deve a introdução das Irmandades do Divino Espírito Santo e das crenças joaquimitas nos Açores].
  2. Lembramos somente o M. frei Diogo das Chagas e o padre Manuel Luís Maldonado.
  3. No seu volumoso livro, impresso em Roma no ano de 1587: — De origine Seraphicae Religionis Franciscanae, ejusque progressibus.
  4. O padre Maldonado diz que eles antes de fundarem o convento grande tinham uma mui diminuta e pobre casa, onde alguns poucos residiram.
  5. Veja-se o citado autor da História Cronológica Seráfica.
  6. Podemos asseverar isto com os diferentes manuscritos que temos lido.
  7. O padre Jerónimo Emiliano de Andrade na segunda parte da sua Topografia, a página 40, n.º 5, atribui a Duarte Paim a dada das terras do Pico das Contendas, confiado nos autos da demanda que correu João Leonardes contra João Vaz e seus herdeiros; mas esta notícia não é exacta, o que ousamos asseverar em presença da cópia da sentença, que adiante oferecemos, — Documento F —, e o nome do autor de onde a extraímos.
  8. Duarte Paim não é que fez a doação das terras do Pico das Contendas, foi Diogo de Teive em 1475, como se vê do teor da sentença que vai copiada sob a letra F (Documento F), extraída do autógrafo, composto pelo citado Mestre frei Diogo das Chagas no ano de 1641, como ele diz na segunda parte, capítulo 1.º. Diz mais que a sentença era escrita em 5 folhas de pergaminho de três palmos de comprido, e palmo e meio de largo; e que se achava em certo cartório de um escrivão de órfãos que lhe adviera de seus antepassados. Desta sentença trata largamente o padre Maldonado no Alento 1.º, § 28.
  9. Este pleito findou do ano de 1514. Veja-se o que ali dizemos a respeito do seu resultado.
  10. Dividia esta herdade a Canada da Ponta que começa nas faldas do Pico da Vigia, e a estrada que vai à baía da Salga. Compreende esta grande data o melhor, e mais pingue, terreno que pertence à dita vila de São Sebastião.
  11. Deste Gaspar Corte Real tratámos no ano de 1500.