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AO PRINCIPE DO NATURALISMO

EMILIO ZOLA;

aos meus amigos
Luiz de Mattos, M. H. de Bittencourt, J. V. de Almeida e Joaquim Elias;

ao distinto physiologo,
DR. MIRANDA AZEVEDO


O. D. C.



Je ne suis pas téméraire, je n’ai pas la prétention de suivre vos traces : ce n’est pas prétendre suivre vos traces que d’écrire une pauvre étude tant soit peu naturaliste. On ne vous imite pas, on vous admire.

Nous nous échauffons, dit Ovide, quand le dieu que vit en nous s’agite[1] : eh bien ! le tout petit dieu qui vit en moi s'est agité, et j’ai écrit La Chair.

Ce n’est pas L'Assommoir, ce n’est pas La Curée, ce n'est pas La Terre ; mais, diantre ! une chandelle n’est pas le soleil, et pourtant une chandelle éclaire.

Quoiqu’il en soit voici mon labeur.

Agréerez-vous la dédicace que je vous en fais ? Pourquoi pas&nbsp? Les rois, quoique gorgés de richesses, ne dédaignent pas toujours les chétifs cadeaux des pauvres paysans.

Permettez que je vous fasse mon hommage complet, lige, de serviteur féal en empruntant les paroles du poète florentin :


Tu duca, tu signore, tu maestro.


St. Paul, le 25 janvier 1888.


O doutor Lopes Mattoso não foi precisamente o que se póde chamar um homem feliz.

Aos desoito annos de sua vida, quando apenas tinha completado o seu curso de preparatorios, perdeu pae e mãe com poucos meses de intervallo.

Ficou-lhe como tutor um amigo da familia, o coronel Barbosa, que o fez continuar com os estudos e formar-se em direito.

No dia seguinte ao da formatura, o honesto tutor passou-lhe a gerencia da avultada fortuna que lhe coubera, dizendo:

— Está rico, menino, está formado, tem um bonito futuro diante de si. Agora é tratar de casar, de ter filhos, de galgar posição. Si eu tivesse filha você já tinha noiva; não tenho, procure-a você mesmo.

Lopes Mattoso não gastou muito tempo em procurar: casou-se logo com uma prima de quem sempre gostára, e juncto á qual viveu felicissimo por espaço de dous annos.

Ao começar o terceiro, morreu a esposa, de parto, deixando-lhe uma filhinha.

Lopes Mattoso vergou á força do golpe, mas, como homem forte que era, não se deixou abater de vez: reergueu-se, e acceitou a nova ordem de cousas que lhe era imposta pela imparcialidade brutal da natureza.

Arranjou de modo seguro seus negocios, mudou-se para uma chácara que possuia perto da cidade, segregou-se dos amigos, e passou a repartir o tempo entre o manusear de bons livros e o cuidar da filha.

Esta, graças ás qualidades da ama que lhe foi dada, cresceu sadia e robusta, tomando-se desde logo a vida, a nota alegre do eremiterio que se constituira Lopes Mattoso.

Visitas de amigos raras tinha elle, porque mesmo não as acoroçoava : convivencia de familias não tinha nenhuma.

Leitura, escripta, grammatica, arithmetica, algebra, geometria, geographia, historia, Francez, Hespanhol, natação, equitação, gymnastica, musica, em tudo isso Lopes Mattoso exercitou a filha, porque em tudo era perito: com ella leu os classicos portuguezes, os auctores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de mais selecto na litteratura do tempo.

Aos quatorze annos Helena ou Lenita, como a chamavam, era uma rapariga desenvolvida, forte, de kharacter formado e instrucção acima da vulgar.

Lopes Mattoso entendeu que era chegado o tempo de tornar a mudar de vida, e voltou para a cidade.

Lenita teve então optimos professores de linguas e de sciencias; estudou o Italiano, o Allemão, o Inglez, o Latim, o Grego; fez cursos muito completos de mathematicas, de sciencias physicas, e não se conservou extranha ás mais complexas sciencias sociologicas. Tudo lhe era facil, nenhum campo parecia fechado a seu vasto talento.

Começou a apparecer, a distinguir-se na sociedade.

E não tinha nada de pretenciosa, blas-bleu: modesta, retrahida mesmo, nos bailes, nas reuniões em que não de raro se achava, ella sabia rodear-se de uma como aura de sympathia, escondendo com arte infinita a sua immensa superioridade.

Quando, porém, algum bacharel formado de fresco, algum tourist recemvindo de Paris ou de New-York queria campar de sabio, queria fazer de oraculo em sua presença, então é que era vel-a. Com uma candura adoravelmente simulada, com um sorriso de desdenhosa bondade, ella enlaçava o pedante em uma rede de perguntas perfidas, ia-o pouco a pouco estreitando em um circulo de ferro e, por fim, com o ar mais natural do mundo, obrigava-o a contradizer-se, reduzia-o ao mais vergonhoso silencio.

Os pedidos de casamento succediam-se : Lopes Mattoso consultava a filha.

—É il-os despedindo, meu pae, respondia ella. Escusa que me consulte. Já sabe, eu não me quero casar.

—Mas, filha, olha que mais cedo ou mais tarde é preciso que o faças.

—Algum dia talvez, por emquanto não.

—Sabes que mais ? estou quasi convencido de que errei e muito na tua educação : dei-te conhecimentos acima da bitola commum e o resultado é ver-te isolada nas alturas a que te levantei. O homem fez-se para a mulher, e a mulher para o homem. O casamento é uma necessidade, já não digo social, mas physiologica. Não achas, de certo, homem algum digno de ti?

—Não é por isso, é porque ainda não sinto a tal necessidade do casamento. Si eu a sentisse, casar-me-ia.

—Mesmo com um homem mediocre?

—De preferencia com um homem mediocre. Os grandes homens em geral não são bons maridos. Demais, si os taes senhores grandes homens escolhem quasi sempre mulher abaixo de si, porque eu que, na opinião de papae, sou mulher superior, não faria como elles, escolhendo marido que me fosse inferior ?

—Sim, para teres uns filhos palermas…

—Os filhos puxariam por mim : a physiologia genesica ensina que a hereditariedade directa do genio e do talento é mais commum da mãe para o filho.

—E do pae para a filha, não ?

—De certo, e por isso é que eu sou o que sou.

—Lisonjeira !

—Lisonjeiro é papae que quer á fina força que eu seja moça prodigio, e tanto tem feito que até eu já começo acreditar. Voltando ao assumpto, sobre casamento temos conversado, não fallemos mais nisso.

E não fallaram. Lopes Mattoso ia despedindo os pretendentes com grandes affectações de magua—que a menina não queria casar, que era uma original, que elle bem a aconselhava, mas que era trabalho baldado, mil cousas emfim que suavisassem a repulsa.

Sempre no mesmo teor de vida chegou Lenita aos vinte e dous anos, quando um dia amanheceu Lopes Mattoso a queixar-se de um mal estar indescriptivel, de uma oppressão fortissima no peito. Sobreveiu um accesso de tosse, e elle morreu de repente sem haver tempo de chamar um medico, sem cousa nenhuma. Matara-o congestão pulmonar.

Lenita quasi enlouqueceu de dor : o imprevisto do successo, vacuo subito e terrivel que se fez em torno della, a superioridade e cultura do seu espirito que refugia a consolações banaes, tudo contribuia para acendrar-lhe o soffrimento.

Dias e dias passou a infeliz moça sem sahir do quarto, recusando-se a receber visitas, tomando inconscientemente, a instancias dos famulos, algum ligeiro alimento.

Por fim reagiu contra a dor : pallida, muito pallida nas suas roupas de luto, ella apareceu aos amigos do pae, recebeu os pesames fastidiosos do estylo, procurou por todos os meios afazer-se á vida solitaria que se lhe abria, vida tristissima, erma de affectos, povoada de lembranças dolorosas. Tratou de dar direcção conveniente aos negocios da casa, e escreveu ao coronel Barbosa, avisando-o de que se retirava temporariamente para a fazenda delle.

Os negocios da casa nenhuma difficuldade offereciam : a fortuna de Lopes Mattoso estava quasi toda em apolices e acções de estradas de ferro. Sendo Lenita, com era, filha unica, não havia inventario, não havia delonga alguma judicial.

A resposta do coronel Barbosa não se fez esperar—que fosse, que fosse quanto antes ; que sua velha esposa entrevada folgára doidamente com a noticia de ir ter juncto de si uma moça, uma companheira nova ; que com elles só morava um filho unico, homem já maduro, casado, mas desde muito separado da mulher, caçador, exquisitão, mettido comsigo e com os seus livros ; emfim que se não demorasse com apromptações, que atabulasse, e que marcasse o dia para elle a ir buscar.

Uma semana depois estava Lenita installada na fazenda do velho tutor de seu pae : tinha levado comsigo o seu piano, alguns bronzes artisticos, alguns bibelots curiosos e muitos livros.

Peior do que na cidade, horrivel foi a principio o isolamento de Lenita na fazenda.

A velha octogenaria, além de entrevada era muito surda. O coronel Barbosa, pouco mais moço do que a mulher, soffria de rheumatismo, e, ás vezes, passava dias e dias mettido na cama. O filho, o divorciado, estava caçando havia meses no Paranápanema.

O trabalho da fazenda era dirigido por um administrador caboclo, homem affavel, mas ignorantissimo sobre tudo o que não dizia com a lavoura.

Lenita comia quasi sempre só na vastissima varanda : depois de almoçar ou de jantar ia conversar com o coronel, e fazia exforços incriveis para conseguir fazer-se ouvir da velha que, resignada e risonha, augmentava com a mão tremula a concha da orelha para apanhar as palavras.

Tal entretenimento cançava a moça, e ella recolhia-se logo aos seus commodos para ler, para procurar distrahir-se.

Tomava um livro, deixava ; tomava outro, deixava ; era impossivel a leitura. Apertava-lhe, constringia-lhe o animo a lembrança do pae. E tudo lh’o fazia lembrar—uma passagem marcada a unha em um livro, uma folha dobrada em outro.

Sahia, ia de novo conversar, tornava a voltar, tornava a sahir, era um inferno.

A mulher do administrador, carinhosa já por indole, recebera do patrão recommendações especiaes a respeito de Lenita.

A todo o momento eram copos de leite quente, copos de garapa, café, doces, fructas.

Lenita ora recusava, ora acceitava uma ou outra cousa, indifferentemente, só por comprazer á boa da mulher.

O coronel Barbosa dera a Lenita uma sala independente, um quarto amplo com duas janellas, e uma alcova ; puzera-lhe ás ordens, para seu serviço especial, uma mulatinha esperta, de alta trunfa e côr deslavada, e tambem um molecote acaboclado, risonho, de dentes muito brancos.

Lenita, por vezes, passava horas e horas á janella, contemplando as dependencias da fazenda.

Estava esta a meia encosta de um outeiro, a cuja fralda corria um ribeirão. Em frente estendia-se o grande pasto. A monotonia de verdura clara era quebrada aqui e alli pelo sombrio da folhagem basta de alguns paus d’alho, deixados propositalmente para sombra, e pelo amarello sujo das reboleiras de sapé. Ao fundo, de um lado, em córte brusco, a matta virgem, escura, accentuada, massiça quasi, confundindo em um só tom mil cores diversissimas ; de outro, em collinas suaves, o verde claro alegre e uniforme dos canaviaes agitados sempre pelo vento ; mais além, os cafezaes alinhados, regulares, continuos, como um tapete crespo, verde negro, estendido pelo dorso da morraria. Em um ou outro ponto a terra roxa de pedra de ferro desnudada punha uma nota estridula de vermelho escuro, de sangue coagulado.

E sobre tudo isso azul, diaphano, puro, setinoso recurvava-se o céo em uma festa de luz branca, vivificante, mordente…

Quando se embruscava o tempo a paizagem mudava : o céu pardacento, carregado de nuvens plumbeas, como que se abaixava, como que queria afogar a terra. O revestimento verde perdia o brilho, empanava-se, amortecia em um desfallecimento humido.

Lenita deu em sahir, em passear pelas cercanias, ora a pé, acompanhada pela mulata, ora a cavallo, seguida pelo rapazinho.

Mas o exercicio, a pureza do ar, a liberdade do viver da roça, nada lhe aproveitou.

Uma languidez crescente, um exgotamento de forças, uma prostração quasi completa ia-se apoderando de todo o seu ser : não lia, o piano conservava-se mudo.

Com a morte do pae parecia ter-se-lhe transformado a natureza : já não era forte, já não era viril como em outros tempos. Tinha medo de ficar só, tinha terrores subitos.

Ia para o quarto da entrevada, recostava-se em uma cadeira preguiçosa e ahi se deixava ficar quieta horas e horas, mal respondendo ás perguntas sollicitas do coronel.

Quando voltava para os seus aposentos, tomada em caminho por um pavor inexplicavel, agarrava-se tremula á mulata.

Não podia comer, tinha um fastio desolador, cortado por desejos violentos de cousas salgadas, de cousas extravagantes.

Sobrevieram-lhe salivações constantes, vomitos biliosos quasi incoerciveis.

Uma manhã não se poude levantar.

Acudiram apressados o coronel e a mulher do administrador, abeiraram-se do leito, instando com a enferma para que tomasse um chá de herva cidreira, um remedio qualquer caseiro, emquanto não vinha o medico que se tinha mandado chamar a toda a pressa.

Quando este chegou estava Lenita abatidissima : emaciada, livida, com os olhos afundados em uma aureola côr de bistre, comprimia o peito, estertorava suffocada. Uma como bola subia-lhe do estomago, chegava-lhe á garganta, estrangulava-a. No alto da cabeça, um pouco para a esquerda, tinha uma dor circumscripta, fixa, lancinante, atroz : era como se um prego ahi estivesse cravado.

O seu sistema nervoso estava irritadissimo : o mais ligeiro ruído, o jogo de luz produzido pelo abrir da porta arrancava-lhe gritos.

O doutor Guimarães, medico já velho, de phisionomia intelligente e bondosa, approximou-se da cama, examinou a enferma detidamente, em silencio, sem tomar-lhe o pulso, sem incommodal-a na minima cousa, baixando-se muito, com as mãos cruzadas nas costas, para ouvir-lhe a respiração, para escutar-lhe os gemidos, para atentar-lhe nas contracções da face.

—Quando começou isto, coronel ? perguntou.

—Doente tem ella estado desde que aqui chegou, mas assim, ruim, é só hoje.

—Suffoco ! acudam-me ! gritou de repente Lenita e, revolvendo-se, escoucinhando, dilacerava a camiza com as mãos ambas, arranhava o peito. Um rubor subito, vivissimo, colorira-lhe o rosto, brilhavam-lhe os olhos de modo insolito.

—Sei o que isto é, disse o medico, tenho pela frente um conhecido velho, não me dá cuidado. Volto já.

E sahiu.

Poucos minutos depois reappareceu, trazendo uma seringuinha de Pravaz.

—Dê-me o braço, minha senhora ; vou fazer-lhe uma injecção, e verá como daqui a pouco nada mais ha-de sentir.

Lenita extendeu a custo o braço, nu, e o doutor, tomando-o, poz-se a beliscal-o morosamente, demoradamente, em um logar, só na altura do biceps : depois, segurando a parte malaxada entre o dedo indice e o pollegar da mão esquerda, com a direita fez penetrar por baixo da pelle a agulha do instrumento e, calcando no cabo do pistão injectou todo o conteudo do tubo de vidro.

Lenita, apesar do seu estado de irritabilidade nervosa, nem pareceu sentir.

O effeito foi prompto. Dentro de pouco tempo as faces descoraram, cessaram as crispações nervosas dos membros, cerraram-se os olhos, e um suspiro de allivio entumeceu-lhe o peito.

Adormeceu.

—Deixemol-a assim, disse o medico, deixemol-a dormir, quando acordar estará boa. Todavia vou receitar : não dispenso para estes casos o meu brumoreto de potassium.

E sahiram nos bicos dos pés. Juncto de Lenita ficou a mulher do administrador.

Realisou-se o prognostico do medico.

Lenita, após um comprido somno, acordou calma, com os nervos socegados, com os musculos distendidos, soltos. Mas estava abatida, molle, queixava-se de peso na cabeça, de grande cançasso. Passou dous dias na cama, e só ao terceiro poude levantar-se.

O apetite foi voltando aos poucos, e suas refeições foram sendo tomadas com prazer, a horas regulares.

Podia-se dizer que entrára em convalescença do cataclysma organico produzido pela morte do pae.

E Lenita sentia-se outra, femininizava-se. Não tinha mais gostos viris de outros tempos, perdera a sede de sciencia : de entre os livros que trouxera procurava os mais sentimentaes. Releu Paulo e Virginia, o livro quarto da Eneida, o sétimo do Telemakho. A fome picaresca de Lazarilho de Tortnes fel-a chorar.

Tinha uma vontade exquisita de dedicar-se a quem quer que fosse, de soffrer por um doente, por um invalido. Por vezes lembrou-lhe que, si casasse, teria filhos, criancinhas que dependessem de seus carinhos, de sua sollicitude, de seu leite. E achava possivel o casamento.

A imagem do pae ia-se esbatendo em uma penumbra de saudade que ainda era dolorosa, mas que já tinha encanto.

Passava horas e horas juncto da entrevada, conversava com o coronel, por vezes ria.

—Isto vai melhor, muito melhor, dizia o bom do homem. É pôr-se você por ahi alegre, filhinha. O mundo é assim mesmo : o que não tem remedio remediado está.

Uma tarde, achando-se só em sua sala, Lenita sentiu-se tomada de uma languidez deliciosa, sentou-se na rede, fechou os olhos e entregou-se á modorra branda que produzia o balanço.

Em frente, sobre um consolo, entre outros bronzes que trouxera, estava uma das reducções celebres de Barbedienne, a da estatua de Agasias, conhecida pelo nome de Gladiador Borghese.

Um raio mortiço de sol poente, entrando por uma frincha da janella, dava de chapa na estatua, afogueava-a, como que fazia correr sangue e vida no bronze mate.

Lenita abriu os olhos. Attraiu-lhe as vistas o brilho suave do metal ferido pela luz.

Ergueu-se, acercou-se da mesa, fitou com attenção a estatua : aquelles braços, aquellas pernas, aquelles musculos resaltantes, aquelles tendões retezados, aquella virilidade, aquella robustez, impressionaram-n-a de modo extranho.

Dezenas de vezes tinha ella estudado e admirado esse primor anatomico em todas as suas minudencias cruas, em todos os nadas que constituem a perfeição artistica, e nunca experimentára o que então experimentava.

A cerviz taurina, os biceps encaroçados, o thorax largo, o pelvis estreito, os pontos retrahidos das inserções musculares da estatua, tudo parecia corresponder a um idéial plastico que lhe vivera sempre latente no intellecto, e que despertava naquelle momento, revelando brutalmente a sua presença.

Lenita não se podia arredar, estava presa, estava fascinada.

Sentia-se fraca e orgulhava-se de sua fraqueza. Atormentava-a um desejo de cousas desconhecidas, indefinido, vago, mas imperioso, mordente. Antolhava-se-lhe que havia de ter goso infinito si toda a força do gladiador se desencadeasse contra ella, pisando-a, machucando-a, triturando-a, fazendo-a em pedaços.

E tinha impetos de comer de beijos as fórmas masculinas estereotypadas no bronze. Queria abraçar-se, queria fundir-se com ellas. De repente corou até á raiz dos cabellos.

Em um momento, por uma como intuscepção subita, aprendera mais sobre si propria do que em todos os seus longos estudos de physiologia. Conhecera que ella, a mulher superior, apezar de sua poderosa mentalidade, com toda a sua sciencia, não passava na especie de uma simples femea, e que o que sentia era o desejo, era a necessidade organica do macho.

Invadiu-a um desalento immenso, um nojo invencivel de si propria.

Robustecer o intellecto desde o desabrochar da razão, perscrutar com paciencia, aturadamente, de dia, de noute, a todas as horas, quasi todos os departamentos do saber humano, habituar o cerebro a demorar-se sem fadiga na analyse subtil dos mais abstrusos problemas da mathematica transcendental, e cahir de repente, com os arkhanjos de Milton, do alto do céo no lodo da terra, sentir-se ferida pelo aguilhão da carne, espolinhar-se nas concupiscencias do cio, como uma negra boçal, como uma cabra, como um animal qualquer… era a suprema humilhação.

Fez um exforço enorme, arrancou-se do feitiço que a dementava, e, vacillante, encostando-se aos moveis e ás paredes, recolheu-se ao seu quarto, fechou com difficuldade as janelas, atirou-se vestida sobre a cama.

Jazeu immovel largo espaço.

Uma humidade morna, que se lhe ia extendendo por entre as coxas, fel-a er-guerse de subito, em reacção violenta contra a modorra que a prostrára.

Com movimentos sacudidos, nervosos, atirou o chale, desabotoou rapida o corpete, arrebentou os coses da saia preta e das anaguas, ficou em camiza.

Uma larga mancha vermelha, rutila, viva, maculava a alvura da cambraia.

Era a onda catamenial, o fluxo sanguíneo da fecundidade que reçumava de seus flancos robustos como da uva esmagada jorra o mosto rubejante.

Mais de cem vezes já a natureza se tinha assim nella manifestado, e nunca lhe causára o que ella então estava sentindo.

Quando aos quatorze annos, após um dia de quebramento e cançasso, se mostrára o phenomeno pela vez primeira, ella ficára louca de terror, acreditára-se ferida de morte, e, com a impudicicia da innocencia, correra em gritos para o pae, contára-lhe tudo.

Lopes Mattoso procurára socegal-a—que não era nada ; que isso se dava com todas as mulheres ; que evitasse molhadellas, sol, sereno ; que dentro de tres dias, ou de cinco ao mais tardar, havia de estar boa, que se não assustasse da repetição todos os mezes.

Com o tempo, os livros de physiologia acabaram de a edificar ; em Küss aprendera que a menstruação é uma muda epithelial do utero, conjuncta por sympathia com a ovulação, e que o terrivel e calumniado corrimento é apenas uma consequencia natural dessa muda.

Resignára-se, afizera-se a mais essa imposição do organismo, assim como já estava afeita a outras. Sómente, para estudo de si propria, começára de marcar, com estigmas de lapis vermelho, em kalendariosinhos de algibeira as datas dos apparecimentos.

Anoiteceu.

A mulata a veiu chamar para a ceia. Encontrou-a deitada, encolhida, aconchegando-se nas roupas.

Perguntou-lhe si estava doente : ao saber que effectivamente o estava, sahiu, avisou o senhor, trouxe as suas cobertas e travesseiros, arranjou uma cama no tapete, ao pé do leito, quedou-se sollícita para o que fosse preciso.

O coronel, cheio de cuidados, veiu á porta do quarto interrogar Lenita.

—Que não era nada, respondeu ella, que aquillo não passava de uma indisposição sem consequencias, que havia de acordar boa no dia seguinte.

—Menina, você sabe que agora seu pae sou eu. Si precisar de alguma cousa, franquezinha, mande-me chamar a qualquer hora, não receie me incommodar. A pobre da velha lá está afflicta, amaldiçoando o tolhimento que a faz não prestar para nada. Não quererá você um chá de salva, um pouco de vinho quente ?

—Obrigada, não quero cousa nenhuma.

—Bem, bem, já a deixo em paz. Até ámanhã. Procure dormir.

E sahiu.

Lenita adormeceu. A principio foi um dormitar interrompido, irrequieto, cortado de pequenos gritos. Depois apoderou-se d’ella um como languor, um extase que não era bem vigilia, e que não era bem somno. Sonhou ou antes viu que o gladiador avolumava-se na sua peanha, tomava estatura de homem, abaixava os braços, endireitava-se, descia, caminhava para o seu leito, parava á beira, contemplando-a detidamente, amorosamente.

E Lenita rolava com delicias no effluvio magnetico do seu olhar, como na agua deliciosa de um banho tepido.

Tremores subitos percorriam os membros da moça : seus pellos todos hispidavam-se em uma irritação mordente e lasciva, dolorosa e cheia de goso.

O gladiador extendeu o braço esquerdo, apoiou-se na cama, sentou-se a meio, ergueu as cobertas, e sempre a fital-a, risonho, fascinador, foi-se recostando suave até que se deitou de todo, tocando-lhe o corpo com a nudez provocadora de suas fórmas viris.

O contacto não era o contacto frio e duro de uma estatua de bronze : era o contacto quente e macio de um homem vivo.

E a esse contacto apoderou-se de Lenita um sentimento indefinivel : era receio e desejo, temor e volupia a um tempo. Queria, mas tinha medo.

Collaram-se-lhe nos labios os labios do gladiador, seus braços fortes enlaçaram-n-a, seu amplo peito cobriu-lhe o seio delicado.

Lenita offegava em extremeções de prazer, mas de prazer incompleto, falho, torturante. Abraçando o phantasma de sua hallucinação, ella revolvia-se como uma besta fera no ardor do cio. A tonicidade nervosa, o erethismo, o orgasmo manifestava-se em tudo, no palpitar dos labios tumidos, nos bicos dos seios cupidamente retezados.

Em uma convulsão desmaiou.

Lenita voltava á saude á vista de olhos.

Levantava-se cedo, tomava um copo de leite quente, dava um passeio pelo campo, almoçava com apetite, depois do almoço sentava-se ao piano, tocava com brio peças marciaes, alegres, movimentadas, de rhythmo sacudido.

Ia ao pomar, comia fructas, trepava em arvores.

Jantava, ceiava, deitava-se logo depois da ceia, levava a noute de um somno.

Tornára-se garrida : mirava-se muito ao espelho, cuidava com impertinencia do alinho do vestir, tomava os cabellos, que eram muito pretos, com flores de côr muito viva.

Abusava de perfumes : a sua roupa branca rescendia a vetiver, a sandalo, a ixora, a peau d’Espagne.

Corria, saltava, fazia longas excursões a cavallo, quasi sempre a galope, estimulando o animal com o chicotinho, com o chapéo, de faces rubras, brilhantes os olhos, cabellos soltos ao vento.

Caçava.

Um dia calmoso, depois do almoço, tomou uma espingardinha Galand de que habitualmente usava, atravessou o pasto, enfiou por um carreadouro sombrio, através de um vasto tracto de mata virgem.

Seguiu distrahida, em scisma, avançou muito, foi longe.

De repente prendeu-lhe a attenção um murmurejar de aguas, doce, monotono, á esquerda.

Tinha sede, teve desejo de beber, tomou para lá, seguindo uma trilha estreita.

Parou assombrada ante o scenario magestoso que a pouca distancia se lhe adregou.

No fundo de uma barroca muito vasta erguia-se um paredão de pedra negra, musgoso, talhado a pique : por sobre elle atirava-se um jorro de agua que ia formar no thalweg da barroca um lagosinho manso, profundo, crystallino.

Escadeando por sobre o açude natural que fechava a barroca pelo lado de baixo, derivava-se a agua, sonorosa, fugitiva.

No espelho calmo do lago reflectia-se a vegetação luxuriante que o emmoldurava.

Perovas gigantescas de fronde escura e casca rugosa ; jequitibás seculares, esparramando no azul do céo a expansão verde de suas copadas alegres ; figueiras brancas de raizes chatas, protrahidas a extender ao longe, horizontalmente, os galhos desconformes, como grandes membros humanos aleijados ; canchins de folhas espinhentas, a distillar pelas fibras do cortex vermelho escuro um leite caustico, venenoso ; guaratãs esbeltos, lisos no tronco, muito elevados ; tayuvas claras ; paus de alho verde-negros, viçosissimos, fetidos ; guaiapás perigosos abrolhados em aculeos lancinantes e peçonhentos ; mil lianas, mil trepadeiras, mil orkhideas diversas, de flores roxas, amarellas, azues, escarlates, brancas—tudo isso se confundia em uma massa matizada, em uma orgia de verdura, em um deboche de cores cruas que excedia, que fatigava a imaginação. O sol, dardejando feixes luminosos por entre a folhagem, mosqueava o solo pardo de reflexos verdejantes.

Insectos multicores esvoaçavam zumbindo, sussurrando. Um sorocoá bronzeado soltava de uma canelleira seu sibilo intercadente.

Uma exhalação capitosa subia da terra, casava-se estranhamente á essencia subtil que se desprendia das orkhideas fragrantes : era um mixto de perfume suavissimo de cheiro aspero de raizes e de seiva, que relaxava os nervos, que adormecia o cerebro.

Lenita hauriu a sorvos largos esse ambiente embriagador, deixou-se vencer dos amavios da floresta.

Apoderou-se della um desejo ardente, irresistivel de banhar-se nessa agua fresca, de perturbar esse lago calmo.

Circumvolveu os olhos, perscrutou toda a roda, a vêr se alguem a poderia estar espreitando.

—Tolice ! pensou, o coronel não sai, o administrador e os escravos estão no serviço, no cafezal, não ha ninguem de fóra na fazenda. Demais, nem isto é caminho. Estou só, absolutamente só.

Depoz a espingarda e juncto della o chapéo de palha, de abas largas que a protegia nesses passeios ; começou a despir-se.

Tirou o paletózinho, o corpete espartilhado, depois a saia preta, as anaguas.

Em camiza, baixou a cabeça, levou as mãos á nuca para prender as tranças e, emquanto o fazia, remirava complacente, complacente, no cabeção alvo, os seios erguidos, duros, setinosos, betados aqui e alli de uma veiazinha azul.

E aspirava com delicias, por entre os perfumes da matta, o odor de si propria o cheiro bom de mulher moça que se exhalava do busto.

Sentou-se, cruzou as pernas, desatou os cordões dos borzeguins Clark, tirou as meias, afagou carinhosamente, demoradamente, os pésinhos breves em que se estampára o tecido fino do fio de Escossia. Ergueu-se, saltou das anaguas, retorceu-se um pouco, deixou cahir a camiza. A cambraia achatou-se em dobras molles, envolvendo-lhe os pés.

Era uma formosa mulher.

Moreno-clara, alta, muito bem lançada, tinha braços e pernas roliças, musculosas, punhos e tornozellos finos, mãos e pés aristocraticamente perfeitos, terminados por unhas roseas, muito polidas. Por sob os seios rijos, protrahidos, afinava-se o corpo na cintura para alargar-se em uns quadris amplos, para arredondar-se de leve em um ventre firme, ensombrado inferiormente por vello escuro abundantissimo. Os cabellos pretos com reflexos azulados cahiam em franginhas curtas sobre a testa, indo frisar-se lascivamente na nuca. O pescoço era proporcionado, forte, a cabeça pequena, os olhos negros, vivos, o nariz direito, os labios rubros, os dentes alvissimos. Na face esquerda tinha um signalzinho de nascença uma pintinha muito escura, muito redonda.

Lenita contemplava-se com amor proprio satisfeito, embevecida, louca de sua carne. Olhou-se, olhou para o lago, olhou para a selva, como reunindo tudo para formar um quadro, uma synthese.

Acocorou-se faceiramente, assentou a nadega direita sobre o calcanhar direito, cruzou os braços sobre o joelho esquerdo erguido, lembrando, reproduzindo a posição conhecida da estatua de Salona, da Venus Accroupie.

Esteve, esteve assim muito tempo : de repente deu um salto, atufou-se na agua, surgiu, começou a nadar.

O lago era profundo, mas estreito. Lenita ia e vinha de uma margem para a outra, do paredão ao açude, do açude ao paredão. Passava por sob o jorro, e dava gritos de prazer e de susto ao choque duro da massa liquida sobre o seu dorso assetinado.

Virava de costas e deixava-se boiar, com as pernas extendidas, com o ventre para o céo, com os braços alargados, movendo as mãos abertas, vagarosamente, por baixo da agua.

Voltava-se e recomeçava a nadar, rapida como uma flecha.

Um calafrio avisou-a de que era tempo de sahir da agua.

Sahiu com o corpo arrepiado, gglido, a tiritar. Quedou-se ao sol, em uma aberta, esperando a reacção do calor, soltando, torcendo, sacudindo os cabellos. De seu corpo desprendia-se um vaporzinho subtil, uma aura tenue, que a envolvia toda.

O calor do sol e o seu proprio calor enxugaram-n-a de pronto. Vestiu-se, espalhou pelas costas os cabellos ainda molhados, poz o chapéo, tomou a espingarda, e partiu para casa, a correr, tarauteando um trecho dos Sinos de Corneville.

—Oh ! meus peccados ! gritou o coronel ao vel-a chegar, alegre, risonha, com os cabellos humidos. Pois não é esta louquinha que se foi banhar no poço do paredão ! Aquillo é agua gelada… Com certeza pilhou um formidavel resfriamento !

—O que eu pilhei foi um formidavel apetite : hoje ao jantar heide comer por quatro.

—O’ moleque, anda, vae, traze cognac lá de dentro, depressa.

—O coronel vai beber cognac ?

—Você vai beber cognac.

—Nunca provei tal cousa.

—Pois agora ha de proval-a, é o unico meio de fazermos as pases.

Veio o cognac, um cognac genuino, velho, de 1848. Lenita bebeu um calicezinho, tussiu, lagrimejaram-lhe os olhos, achou forte mas gostou ; repetiu.

Chegára o dia de principiar a moagem.

Já de vespera tinham os negros andado em uma faina a varrer a casa no engenho, a lavar os cochos e as bicas, a arear, a polir as caldeiras e o alambique, com grandes gastos de limão e cinza.

Mal amanhecera entrou-se a ver no cannavial fronteiro uma fita estreita de emmurchecimento que augmentava, que avançava gradualmente no sentido da largura. Era o córte que começára. As roupas brancas de algodão, as saias azues das pretas, as camizas de baeta vermelha dos pretos punham notas vivas, picantes, naquelle oceano de verdura clara, agitado por lufadas de vento quente.

No casarão do engenho, varrido, aceado, quatro caldeiras e o alambique de cobre vermelho reverberavam polidos, reflectindo a luz que entrava pelas largas frestas. As fornalhas afundavam-se lobregas, escancarando as grandes bocas gulosas.

A agua, ainda presa na calha, espirrava pelas junctas da comporta sobre as linguas da roda, em filetes crystallinos. As moendas brilhavam limpas, e os eixos e endentações luziam negros de graxa. Compridos cochos e vasta resfriadeira abriam os bojos amplos, absorvendo a luz no pardo fosco da madeira muito lavada.

Ao longe, quasi indistincto a principio, mas progressivamente acentuado, fez-se ouvir um chiar agudo, continuo, monotono, irritante. Nuvens amarelladas de pó ergueram-se do caminho largo do cannavial. A crioulada reunida em frente ao engenho levantou uma gritaria infrene, tripudiando de jubilo.

Eram os primeiros carros de cannas que chegavam.

Arrastados pesadamente por morosos mas robustos bois de grandes aspas, avançavam os ronceiros vehiculos estalando, gemendo, sob a carga enorme de grossas e compridas cannas, riscadas de verde e roxo.

Carreiros negros, altos, espadaudos, cingidos na altura dos fins por um tirador de couro cru, estimulavam, dirigiam os ruminantes com longas aguilhadas, com brados estentoricos :

—Eia, Lavarinto ! Fasta, Ramalhete ! Ruma, Barroso !

Os carros entraram no compartimento das moendas. Negros ageis saltaram para cima delles, a descarregar. Em um momento empilharam-se as cannas, de pé, atadas em feixe com as proprias folhas.

Fez-se fogo na fornalha das caldeiras, abriu-se a comporta da calha, a agua despenhou-se em queda violenta sobre as linguas da roda, esta começou de mover-se, lenta a principio, depois accelerada.

Cortando os atilhos de um feixe a golpes rapidos de facão, o negro moedor entregou as primeiras cannas ao revolvêr dos cylindros. Ouviu-se um estalejar de fibras esmagadas, o bagaço vomitado picou de branco o desvão escuro em que gyravam as moendas, a garapa principiou a correr pela bica em jorro farto, verdejante. Após pequeno trajecto foi cahir no cocho grande, marulhosa, gorgolante, com grande espumarada resistente.

Os negros banqueiros, empunhando espumadeiras de compridos cabos, tomaram logar juncto ás caldeiras.

Levada por uma bica volante, a garapa encheu-os em um átimo. A fornalha esbrazeou-se, encandesceu, irradiando um calor doce por toda a vasta quadra. As espumadeiras destras atiravam ao ar em louras espadanas o melaço fumegante, que tornava a cahir nas caldeiras, refervendo aos gorgolões.

Dominava no ambiente aroma suave, sakkharino, cortado a espaços por uma lufada tepida de cheiro humano aspero, de catinga suffocante exhalada dos negros em suor.

O coronel gostava da lavoura de canna: vencendo o seu rheumatismo, passava os dias da moagem sentado em um banco de cabreuva, alto, largo, fixo entre duas janellas, a distancia razoavel das caldeiras. Dirigia o trabalho, tomando o ponto ao melaço em um tachinho de cobre muito limpo, muito areado, remechendo com uma pá o assucar na resfriadeira, quando este, tranvazado os reminhóes por uma bica volante especial, ahi parava, coalhando-se por cima em crosta amarella, quebradiça.

Lenita não sahia do engenho: tudo queria ella saber, de tudo se informava.

O coronel passava por verdadeiros interrogatorios—quaes os meses do plantio da canna; que tempo levava esta na terra até ficar prompta para o córte; quando e quantas vezes devia ser carpida; como se cortava; que era baixar, que era levantar o podão ; quaes os signaes de maturidade ; como se conhecia a canna passada ; que era carimar ; porque tinha menos viço e mais doçura a canna de terra safada ; como se plantavam as pontas.

Entrava em detalhes de lavoura, tomava notas : sabia que um alqueire agrario paulista tem cem braças cincoenta ; que a quarta parte dessa area, em relação á lavoura de cannas, chama-se quartel ; que um quartel de terra propria, em annos favoraveis, dá de quarenta a cincoenta carros de cannas ; que um carro de cannas boas produz cinco arrobas de assucar ; que o assucar sem barro, mascavo, faz mais conta em commercio do que o assucar com barro, alvo ; que o barro é supprido com vantagem pelo estrume bovino.

Subia ao tendal, contava as fôrmas, duas em cada pau ; computava o producto em assucar das quatro tarefas de cada dia ; calculava o que haviam de produzir, em aguardente, os residuos, a espuma, o mel ; avaliava a capacidade dos caixões, dos estanques, dos vasos de tanôa de grande arqueação ; punha-se ao facto dos preços ; comparava os do anno corrente com os dos nove annos anteriores do decennio ; generalisava, induzia, chegava a conclusões positivas sobre a renda do municipio em futuro proximo, dada mesmo a eliminação do factor servil.

O coronel admirava-a. Um dia disse-lhe:

—Com uma mulher como você é que eu devia ter casado. Pobre eu não sou, mas estaria podre de rico si a tivesse tido para minha administradeira desde os meus principios. Inda si eu tivesse um filho ou um neto da sua idade para se casar com você…

—Por fallar em filho, quando vem o seu que está em Paranápanema ? perguntou Lenita.

—Eu sei lá ?! Aquillo é um exquisitão, sempre foi. Mette-se com os livros e fica meses e meses sem sahir de casa, e até ás vezes sem sahir do quarto. De repente, vira-lhe a mareta, e lá se vai elle para o sertão, põe-se a caçar e adeus ! Não se lembra mais de nada.

—É casado, parece-me ter ouvido dizer.

—Desgraçadamente.

—Onde está a mulher ?

—Na terra della, em França.

—Com que, então, é franceza ?

—É, elle casou-se por extravagancia em Paris : no fim de um anno nem elle podia supportar a mulher, nem ella a elle. Separaram-se.

—Não sabia que seu filho tinha estado na Europa.

—Esteve, esteve lá dez annos : quando voltou até já fallava mal o Portuguez.

—Em que paizes esteve ?

—Um pouco em toda a parte : esteve na Italia, na Austria, na Allemanha, em França. Na Inglaterra foi que parou mais tempo : demorou-se lá, aprendendo com um typão que affirma que nós somos macacos.

—Darwin ?

—Exactamente.

—Então seu filho é homem muito instruido?

—É : falla umas poucas linguas, e conhece bastantes sciencias. Sabe até medicina.

—Deve ser muito agradavel a sua companhia.

—Ha occasiões em que é de facto, ha outras em que nem o diabo o pode aturar. Está então com uma cousa que elle chama em Inglez… um nome arrevesado.

Blue devils ?

—Ha de ser isso. Então você tambem pesca um pouco da lingua dos bifes ?

—Fallo Inglez soffrivelmente.

—Bem bom, quando Manduca vier e estiverem de veneta, temperarão lingua para matar o tempo.

—Estimarei muito ter occasião de praticar.

E Lenita dahi em diante pensou sempre, mesmo a seu pezar, nesse homem excentrico que, tendo vivido por largo espaço entre os esplendores do mundo antigo, a ouvir os corypheus da sciencia, a estudar de perto as mais subidas manifestações do espirito humano ; que, tendo desposado por amor, de certo, uma das primeiras mulheres do mundo, uma parisiense, se deixára vencer de tedio a ponto de se vir encafuar em uma fazenda remota do oeste da provincia de S. Paulo, e que, como si isso lhe não bastasse, lá se ia para o sertão desconhecido a caçar animaes ferozes, a conviver com bugres bravos.

Sabia que era homem de quarenta e tantos annos, pouco mais moço do que lhe morrera o pae. Figurava-o em uma virilidade robusta que, si já não era mocidade, ainda não era velhice ; emprestava-lhe uma plastica fortissima, athletica, a do torso do Belvedere ; dava-lhe uns olhos negros imperiosos, profundos, dominadores. Anciava por que lhe chegasse a noticia de que elle vinha vindo, de que já tinha pedido os animaes para transportar-se da estação á fazenda.

E continuava na sua alegria progressiva : a saudade do pae já não era dolorosa, era apenas melankolica.

Bebia garapa, mas preferia-a picada. Gostava muito de chupar cannas : que era melhor do que garapa, dizia ; que a canna descascada, torneada a canivete, triturada pelos dentes tinha um frescor, uma doçura especial, que o esmagamento pelas moendas lhe tirava.

Detestava o furú-furú, mas em compensação adorava o ponto, o puxa-puxa. Quando o melaço começava na resfriadeira a engrossar, a cobrir-se de espuma amarella, ella corria-lhe o indice da mão direita pela superficie quente, tirava uma dedada grande, lambia-a com prazer, dando estalinhos com a bocca, fechando os olhos. Um dia um preto que tinha a seu cargo guiar a carroça de bagaço para o bagaceiro, e que trazia ao pé esquerdo uma grande pêga de ferro, fallou-lhe :

—Sinhá, olhe como está esta perna ; está toda ferida. Ferro pesa muito, falle com sinhô para tirar.

E mostrava o tornozello ulcerado pela pêga, fetido, invôlto em trapos muito sujos.

—Mas, que fez você para estar soffrendo isto?

—Peccado, sinhá, fugi.

—Era maltratado, estava com medo de apanhar ?

—Nada, sinhá : negro é mesmo bicho ruim, ás vezes perde a cabeça.

—Si você me promette não fugir mais, eu vou pedir ao coronel que mande tirar o ferro.

—Promette, sinhá: negro promette, palavra de Deus ! Deixa estar, S. Benedicto hade dar a sinhá um marido bonito como sinhá mesmo.

E deu uma grande risada alvar.

Lenita gostou do bom desejo, e do cumprimento, sorriu-se.

De tarde fallou ao coronel—que aquillo não tinha razão de ser, que era uma barbaridade, uma vergonha, uma cousa sem nome, que mandasse tirar o ferro.

—Ai, filha ! você não entende deste riscado. Qual barbaridade, nem qual carapuça ! Neste mundo não existe cousa alguma sem sua razão de ser. Estas philantropias, estas jeremiadas modernas de abolição, de não sei que diabo de igualdade, são patranhas, são cantigas. É chover no molhado—preto precisa de couro e ferro como precisa de angú e baeta. Havemos de ver no que hade parar a lavoura quando esta gente não tiver no eito, a tirar-lhe as cocegas, uma boa guasca na ponta de um pau, manobrada por um feitor destorcido. Não é porque eu seja maligno que digo e faço estas cousas ; eu até tenho fama de bom. É que sou lavrador, e sei o nome aos bois. Emfim você pede, eu vou mandar tirar o ferro. Mas são favas contadas—ferro tirado, preto no matto.

A moagem continuava, o cannavial se ia convertendo em palhaça : á verdura clara, viva succedia um pardo fosco, sujo, muito triste. O vento esfregava as folhas mortas, resequidas, arrancando dellas um som aspero de attrito, estalado, metallico, irritantissimo.

O bagaceiro crescia, avultava : na brancura esverdinhada punham notas escuras os suinos, bovinos e muares que ahi passavam o dia, mastigando, mascando, esmoendo. De repente armava-se uma grande briga ; ouviam-se grunhidos agudos, mugidos roucos, orneios feros. Uma dentada obliqua, um guampaço, uma parelha de couces tinha dado ganho de causa ao mais forte.

O odor suave do primeiro ferver da garapa no começo da moagem se accentuára em um cheiro forte, entontecedor, de assucar cozido, de sakkharose fermentada, que se fazia sentir a mais de um quarto de legua de distancia.

Terminára a moagem, ia adiantada a primavera.

A flora tropical rejuvenescera na muda de todos os annos : os gomos, os brotos, a fronde nova rebentára pujante, aqui de um verde claro deslavado, velludoso, muito tenro ; alli lustrosa, vidrenta, côr de ferrugem ; além rubra. Depois tudo isso se expandira, se robustecera, se consolidára em uma verdura forte, sadia, vivaz.

A natureza mudára de toilette, e entrára no periodo dos amores.

Irrompia a florescencia com todo o seu luxo de fórmas, com toda a sua prodigalidade de matizes, com todo o seu esbanjamento de perfumes.

Por sobre os cafezaes escuros atirára ella, com suave monotonia, um lençol de corollas alvissimo, deslumbrante.

Na matta toda arvore, todo arbusto, toda a planta tomava-se de extranha energia.

As flores, em uma abundancia impossivel, comprimiam-se nos galhos, empurravam-se, deformavam-se. No quebrantamento volupia amorosa pendiam, reviravam os calices, entornavam no ambiente ondas de pollen, de pulverulencia fecundante.

Á lascivia da flora se vinha junctar o furor erotico da fauna.

Por toda a parte ouviam-se gorgeios e assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do inambú, o piar do macuco, o berrar do tucano, o grasnar gargalhado do jacú, o retinir da araponga, o chiar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quasei humano dos felinos.

A essa tempestade de notas, a esse cataclysma de gemidos cupidos, sobrelevava o regougo aspero do cachorro-do-matto, o guincho lancinante, phrenetico do cará-cará perdido na amplidão.

A folhagem tremia agitada, esbarrada, machucada. Insectos brilhantes, verdes como esmeraldas, rubros como rubins, revoluteavam em sussurro, agarravam-se frementes. Os passaros buscavam-se, beliscavam-se, em vôos curtos, fortes, sacudidos, com as pennas arrufadas. Os quadrupedes retouçavam, perseguiam-se, aos corcóvos, arripiando o pello. Serpentes silvavam meigas, enroscando-se em luxúria aos pares.

A terra casava suas emanações quentes, ásperas, elétricas com o mormaço lúbrico da luz do sol coada pela folhagem.

Em cada buraco escuro, em cada fenda de rocha, por sobre o solo, nas hastes das ervas, nos galhos das árvores, na água, no ar, em toda a parte, focinhos, bicos, antenas, braços, élitros desejavam-se, procuravam-se, encontravam-se, estreitavam-se, confundiam-se, no ardor da sexualidade, no espasmo da reprodução.

O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar lufadas de tépida volúpia. Sobressaía a todos os perfumes, dominava forte um cheiro acre de semente, um odor de cópula, excitante, provocador.

Lenita estava preguiçosa. Internava-se na mata e, quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava-se aconchegando o corpo na alfombra espessa de folhas mortas, entregava-se à moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Voltava à casa, estendia-se na rede, com uma perna estirada sobre outra, com um livro que não lia caído sobre o peito, com a cabeça muito pendida para trás, com os olhos meio cerrados, e assim quedava-se horas e horas em um lugar cheio de encantos.

Pensava constantemente, continuamente, sem o querer, no caçador excêntrico do Paranapanema, via-o a todo o momento junto de si, robusto, atlético como o ideara, dialogava com ele.

Ficara cruel: beliscava as criolinhas, picava com agulhas, feria com canivete os animais que lhe passavam ao alcance. Uma vez um cachorro reagiu e mordeu-a. Em outra ocasião pegou num canário que lhe entrara na sala, quebrou-lhe e arrancou-lhe as pernas, desarticulou-lhe uma asa, soltou-o, findo com prazer íntimo ao vê-lo esvoaçar miseravelmente, com uma asa só, arrastando a outra, pousando os cotos sangrentos na terra pedregosa do terreiro.

O escravo, a quem ela fizera tirar o ferro do pé, fugira de fato, como tinha previsto o coronel: um dia voltou preso, amarrado com uma corda pelos lagartos dos braços, trazido por dois caboclos.

Que não havia remédio, disse o coronel, que dessa feita o negro tinha de tomar uma funda mestra por ter abusado do apadrinhamento de Lenita, que ia tornar a pôr-lhe o ferro, e que não o tiraria mais nem à mão de Deus Padre.

Lenita, muito de adrede, não intercedeu. Sentia uma curiosidade mordente de ver a aplicação do bacalhau, de conhecer de vista esse suplício legendário, aviltante, atrozmente ridículo. Folgava imenso com a ocasião talvez única que se lhe apresentava, comprazia-se com volúpia estranha, mórbida na idéia das contrações de dor, dos gritos lastimados do negro misérrimo que não havia muito lhe despertara a compaixão.

Disfarçadamente, habilmente, sem tocar de modo direto no assunto, conseguiu saber do coronel que o castigo havia de ter lugar na casa do tronco, no dia seguinte, ao amanhecer.

Passou a noite em sobressalto, acordando a todas as horas, receosa de que o sono imperioso da madrugada lhe fizesse perder o ensejo de ver o espetáculo por que tanto anelava.

Cedo, muito escuro ainda, levantou-se, saiu, atravessou o terreiro, e, sem que ninguém a visse, entrou no pomar.

Do lado de leste era este fechado pela fila das senzalas, cujas paredes de barro cru erguiam-se altas, inteiriças, muito gretadas.

Havia uma casa mais vasta duas vezes do que qualquer outra: era a casa do tronco.

A essa chegou-se Lenita, encostou-se e, tirando do seio uma tesourinha que trouxera, começou a abrir um buraco na parede, à altura dos olhos, entre dois barrotes e duas ripas, em lugar favorável, donde já se protraía um torrão muito pedrento, muito fendido, meio solto.

A tesourinha era curta, mas reforçada, sólida, de aço excelente, de Rodgers. A obra avançava, Lenita trabalhava com ardor, mas também com muita paciência, com muito jeito. O aço mordia, esmoía o barro friável quase sem ruído. Um rastilho de pó amarelado maculava o vestido preto da moça.

Deslocou-se o torrão, e caiu para dentro, dando um som surdo ao tombar no chão fofo, de terra mal batida.

Estava feito o buraco.

Lenita retraiu-se, ficou imóvel, sustendo a respiração.

Após instantes estendeu o pescoço, espiou. Nada pôde ver: estava muito escuro dentro. Ouvia-se um ressonar alto, igual.

Passou-se um longo trato de tempo.

O brilho das estrelas empalideceu. Uma faixa de luz branca desenhou-se ao nascente, ruborizou-se, purpurejou inflamada com reflexos cor de ouro. O ar tornou-se mais fino, mais sutil e a passarada rompeu num hino áspero, desacorde, mas alegre, festivo, titânico, saudando o dia que despontava.

Ouviu-se o sino da fazenda vibrar muito sonoro.

Lenita tornou a espiar: a casa do tronco já estava clara.

A um canto espalmava-se um estrado de madeira engordurado, lustroso pelo rostir de corpos humanos sujos. As tábuas que o constituíam embutiam-se em um sólido pranchão de cabriúva, cortado em dois no sentido do comprimento: as duas peças por ele formadas justapunham-se, articulando-se de um lado por uma dobradiça forte, presas de outro por uma fechadura de ferrolho. Na parte superior da peça fixa e na inferior da móvel havia piques semicirculares, chanfrados, que, ao ajustarem-se essas peças, coincidiam, perfazendo furos bem redondos, de um decímetro mais ou menos de diâmetro.

Era o tronco.

Sobre o estrado, de ventre para o ar, com as pernas passadas, pouco acima dos tornozelos, nos buracos dos pranchões, envolto em uma velha coberta de lã parda, despedaçada, imunda, tinha atravessado a noite o escravo fugido.

Dormira, ao bater do sino acordara.

Segurando-se a um joelho com as mãos ambas, sentara-se por um pouco, espreguiçara, volvera a deitar-se, com os membros doloridos, resignado.

Abriu-se a porta, e entrou o administrador seguido por um dos caboclos que tinham trazido o preto.

—Olá, seu mestre! gritou o caboclo, olhe o que aqui lhe trago:


chocolate, café, berimbau.
E a correia na ponta do pau!

Vai chuchar cinquenta para largar da moda de tirar cipó por sua conta. Não sabe que negro que foge dá prejuízo ao senhor? Olhe só este pincel, está tinindo, está beliscando!

E sacudia ferozmente o bacalhau.

É um instrumento sinistro, vil, repugnante, mas simples.

Toma-se uma tira de couro cru, de três palmos ou pouco mais de comprimento, e de dois dedos de largura. Fende-se ao meio longitudinalmente, mas sem separar as duas talas nem em uma, nem outra extremidade. Amolenta-se bem em água, depois se torce e se estira em uma tábua, por meio de pregos, e põe-se a secar. Quando bem endurecido o couro, adapta-se um cabo a uma das extremidades, corta-se a outra, espontam-se as duas pernas a canivete, e está pronto.

O administrador abriu o tronco, o negro ergueu-se bafo, trêmulo, miserável.

Sob a impressão do medo como que se lhe dissolviam as feições.

Caiu de joelhos, com as mãos postas, com os dedos nodosos enclavinhados.

Era a última expressão do rebaixamento humano, da covardia animal.

Infundia dó e nojo.

—Pelo amor de Deus, seu Mané Bento, nunca mais eu fujo!

E chorava desesperadamente.

—Não faça barulho, rapaz, respondeu o administrador. São ordens do senhor, hão de ser cumpridas.

—Vá chamar o sinhô!

—O senhor está deitado, não vem, não pode vir cá. Deixe-se de história, arreie as calças e deite-se.

—Nossa Senhora me acuda!

—Você não chama por Nossa Senhora quando trata de fugir, gritou impaciente o caboclo. Vamos, vamos acabar com isto, ande.

O infeliz volveu os olhos em torno de si, como procurando uma aberta para a fuga. Desenganado, decidiu-se.

Com movimentos vagarosos, tremendo muito, desabotoou a calça suja, deixou-a cair, desnudou as suas nádegas chupados de negro magro, já cheias de costuras, cortadas de cicatrizes.

Curvou as pernas, pôs as mãos no chão, estendeu-se, deitou-se de bruços.

O caboclo tomou posição à esquerda, mediu a distância, pendeu o corpo, recuou o pé esquerdo, ergueu e fez cair o bacalhau da direita para a esquerda, vigorosamente, rapidamente, mas sem esforço, com ciência com arte, com elegância com a elegancia de profissional apaixonado pela profissão.

As duas correias tesas, duras, sonoras, metálicas, quase silvavam, esfolando a epiderme com as pontas aguçadas.

Duas riscas branquicentas, esfareladas, desenharam-se na pele roxa da nádega direita.

O negro soltou um urro medonho.

Compassado, medido, erguia-se o bacalhau, descia rechinante, lambia, cortava.

O sangue ressumou a princípio em gotas, como rubins líquidos, depois estilou contínuo, abundante, correndo em fios para o solo.

O negro retorcia-se como uma serpente ferida, afundava as unhas na terra solta do chão, batia com a cabeça, bramia, ululava.

—Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!

Parou um momento o algoz, não para descansar, não estava cansado; mas para prolongar o gozo que sentia, como um bom gastrônomo que poupa um acepipe fino.

Saltou por cima do negro, tomou nova posição, fez vibrar o instrumento em sentido contrário, continuou o castigo na outra nádega.

—Uma! duas! três! cinco! dez ! quinze! vinte! vinte e cinco!

Os uivos do negro eram roucos, estrangulados: a sua carapinha estava suja de terra, empastada de suor.

O caboclo largou o bacalhau sobre o estrado do tronco e disse:

—Agora uma salmorazinha para isto não arruinar.

E, tomando da mão do administrador uma cuia que esse trouxera, derramou o conteúdo sobre a derme dilacerada.

O negro deu um corcovo; irrompeu-lhe da garganta um berro de dor, sufocado, atroz, que nada tinha de humano. Desmaiou.

Lenita sentia um como espasmo de prazer, sacudido, vibrante; estava pálida, seus olhos relampejavam, seus membros tremiam. Um sorriso cruel, gelado, arregaçava-lhe os lábios, deixando ver os dentes muito brancos e as gengivas rosadas.

O silvar do azorrague, as contrações os gritos do padecente, os fiar de sangue que ela via correr embriagavam-na, dementavam-na, punham-na em frenesi: torcia as mãos, batia os pés em ritmo nervoso.

Queria, como as vestais romanas no ludo gladiatório, ter direito de vida e de morte; queria poder fazer prolongar aquele suplício até à exaustão da vítima; queria dar o sinal, pollice verso, para que o executor consumasse a obra.

E tremia, agitada por estranha sensação, por dolorosa volúpia. Tinha na boca um saibo de sangue.



Havia quase uma semana que estava chovendo continuamente. As mattas alegres, viçosas, muito lavadas reviam água pela fronde. O tapete espesso de folhas mortas, que cobria o solo nas mattas, estava ensopado, desfeito, ia-se reduzindo a humus. A terra nua nos caminhos, limosa, esverdeada nos taludes e nas rampas, empapada, semiliquida no leito plano, cortada longitudinalmente pelas trilhas dos carros, batida, revolvida, amassada pelos pés dos animaes, ora alteava-se em almofadas de lama, ora cavava-se

em poças de agua barrenta, amarella em uns logares, em outros côr de sangue. Corria o enxurro torrentoso, rapido, enxadrezado nos declives; manso, espraiado em toalhas, banhando as raizes das gramineas no chato, no descampado.

Os campos eram brejos, os brejos lagos. No pomar as laranjeiras pendiam os grelos em um desfallecimento humido; as ameixeiras, as mangueiras, os pecegueiros, os cajueiros viçavam muito lustrosos. O céo pardo, como que descido, parecia muito perto da terra. O ribeirão transbordando roncava em marulhos.

Lenita sentada, encorujada na rede, com as pernas cruzadas, á chineza, levava a mór parte do dia a ler, conchegando-se no chale, friorenta, abhorrecida, esplenetica. Rememorava por vezes as mudanças, as alternativas physio-psykhicas por que tinha passado na fazenda, onde não encontrára uma pessoa de sua edade, de seu sexo ou de sua illustração a quem communicar o que sentia, que a pudesse comprehender, que a pudesse aconselhar, que a pudesse fortalecer nessa terrivel batalha dos nervos.

Analysava a crise hysterica, o erotismo, o accesso de crueldade que tivera. Estudava o seu abatimento actual irritadiço, dissolvente, cortado de desejos inexplicaveis. Surprenhendia-se amiudadas vezes a pensar sem o querer no filho do coronel, nesse homem já maduro, casado, a quem nunca vira; sentia que lhe pulsava apressado o coração quando fallavam nelle na sua presença. E concluia que aquillo era um estado pathologico, que minava um mal sem cura. Depois mudava de pensar: não estava doente, seu estado não era pathologico, era physiologico. O que ella sentia era o aguilhão genesico, era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da CARNE a exigir della o seu tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade para a grande obra da perpetuação da especie.

E lembrava-lhe a nymphomania, a satyriasis, esses horrores com que a natureza se vinga de femeas e machos que lhe violam as leis, guardando uma castidade impossivel; lembrava-lhe o horror sagrado que aos povos da Grecia e Roma inspiravam esses castigos de Venus.

Entrevia como em uma nuvem as nymphas gregas de Dictynne, as vestaes romanas, as odaliscas mollitas, as monjas khristãs pallidas, convulsivas, com os labios em sangue, com os olhos em chamas , a contorcerem-se nos bosques, nos leitos solitários; a morderem-se loucas, bestiais, espicaçadas pelos ferrões do desejo.

Desfilavam-lhe por diante, lúbricas, vivas, palpáveis quase, Pasifae, Fedra; Júlia, Messalina, Teodora, Impéria; Lucrécia Borgia, Catarina da Rússia.

Um dia entrou na sala o coronel.

—Grande novidade! Aí me vem o rapaz... rapaz é um modo de falar, o velho, o caçador do Paranapanema.

—Seu filho?

—Sim. Também era tempo, eu já estava com saudades.

—Mas não preveniu, não pediu condução...

—Pois eu não dizia? aquilo é assim mesmo, é espeloteado. Não quer, não sabe esperar; não está para demoras. Alugou animais no Rio Claro, e aí vem vindo.

—Como soube?

—Por um caboclo que partiu de lá ao amanhecer, e que agora passou por aqui.

—Então seu filho vem tomando esta chuvarada?

—Isso para ele é um pau para um olho, está acostumado.

—A que horas acha que chega?

—São seis léguas de caminho. Ele de certo saiu depois do almoço, às 10 horas. Como a estrada está ruim, gastará umas seis ou sete horas. As quatro, às cinco horas ao mais tardar, rebenta por aí. O que eu quero saber é se você quer jantar às horas do costume ou se concorda em que o esperemos.

—Havemos de esperar, boa dúvida!

O coronel saiu.

Lenita saltou lesta da rede, correu ao seu quarto, penteou-se com desvanecimento, ergueu os cabelos, prendeu-os no alto da cabeça; deixando a nuca bem a descoberto. Espartilhou-se, tomou um vestido de merinó afogado, muito singelo, mas muito elegante brincos, broche, braceletes de ônix , calçou sapatinhos Luiz xv, cuja entrada muito baixa deixava ver a meia de seda preta com ferradurinhas brancas em relevo. No peito, à esquerda, pregou duas rosas pálidas, meio fechadas, muito cheirosas.

—Bravo! que linda que está a senhora D. Lenita! bradou o coronel, entusiasmado ao vê-la. Pena é que esteja gastando cera com ruim defunto: o rapaz não é rapaz, e ainda, por mal de pecados, é beco sem saída.

Lenita corou um pouco, riu-se.

—Vamos, vamos lá para dentro: quero que a velha a veja nesse reto. Francamente, está bonita a fazer virar a cabeça ao próprio Santo Antão ! Como lhe assenta a você essa roupa preta afogadinha! Sim, senhora!

Ia quase anoitecendo.

A chuva caía forte, compassada, ininterrompida: em todas as depressões de terreno estancava-se a água; por todos os declives corria ela em torrentes, em borbotões, em jorros, em filetes.

No alto do morro fronteiro, cortado pela estrada, assomaram dois cavaleiros e uma besta de canastrinhas.

Vagarosos, escorregando a cada passo na ladeira lamacenta, lisa, começaram a descer procurando a fazenda.

A água da chuva, pulverizada no ar, esbatia-lhes os contornos em urna como atmosfera cinzenta, riscada obliquamente pelo peneirar dos pingos grossos.

O coronel viu-os por uma janela, através dos vidros embaciados.

—Lá vem Manduca, disse. Coitado! vem como um pinto !

Lenita parou o movimento brando da cadeira de balanço, largou o Correio da Europa que estava lendo, deixou cair os braços sobre as coxas, recostou a cabeça no espaldar, quedou-se imóvel, muito pálida, quase desfalecida. O sangue refluíra-lhe ao coração que batia descompassado.

Chegaram os viajantes.

Ouviu-se o tinir de freios sacudidos nervosamente pelas cavalgaduras, depois o chapinhar pesado de botas ensopadas, enlameadas, e o arrastar sonoro de esporas no pedrado do alpendre.

O coronel, trôpego, correu ao encontro do filho.

—Que raio de tempo! Disse este ao entrar na ante-sala, batendo duro os pés na soleira da porta, e tirando a capa de borracha que foi pendurar a uma estaqueira. Adeus, meu pai, vosmecê bom, eu vejo; minha mãe na mesma, não?

—Tudo na forma do costume. E você? boas caçadas? boa saúde?

—Caçadas esplêndidas, hei de lhe contar. Saúde de ferro, a não ser a maldita enxaqueca que me não larga, e que neste momento mesmo me está atormentando de modo horroroso. Vou lá dentro ver minha mãe, e sigo para o meu quarto: deve estar pronto. Mande o Amâncio levar-me uma chaleira de água a ferver, e uma pouca de farinha mostarda, para eu tomar um pedilúvio sinapizado.

—Você não jantou, e de certo almoçou mal: coma alguma coisa que há de fazer-lhe bem.

—Comer! mal de mim se comesse estando de enxaqueca.

—Que maçada! Eu e a Lenita que o estávamos esperando para jantar...

—Lenita! Quem é Lenita?

—É a neta do meu velho amigo Cunha Matoso, filha do meu pupilo, o doutor Lopes Matoso, que morreu logo depois que você foi para o Paranapanema. Não recebeu a minha carta nesse sentido?

—Recebi, lembra-me muito o Lopes Matoso. Com que então a filha está agora aqui?

—Está, coitada. Não pôde ficar na cidade, era-lhe muito dolorosa a falta do pai. Vem cá, Lenita, vem ver o meu filho. Chama-se Manuel Barbosa.

Lenita veio da sala, adiantou-se para o recém-chegado, cumprimentou-o com uma inclinação da cabeça.

Ele tirou o seu chapéu alagado, retribuiu o cumprimento.

—Um seu criado, minha distinta senhora. Desculpar-me-á não apertar-lhe a mão: estou imundo, estou que é só barro da cabeça aos pés.

Manuel Barbosa era homem de boa altura, um tanto magro. A roupa molhada colava-se-lhe ao corpo, acentuando-se as formas angulosas. Cabelos desmesuradamente grandes, empastados, correndo água, cobriam-lhe a testa, escondiam-lhe as orelhas. As barbas grisalhas, crescidas, davam-lhe um aspecto inculto, quase feroz. Com a enxaqueca estava pálido, muito pálido, baço, terroso. Piscava muito os olhos para furtar-se à ação da luz. Tinha as pálpebras batidas, trêmulas, e muitos pés de galinha encarquilhavam-lhe os cantos externos dos olhos.

Lenita, desapontadíssima, mirava-o com uma curiosidade dolorosa.

—Minha senhora, continuou ele, sinto imenso que vossa excelência tenha esperado por mim para jantar, e que a minha negregada enxaqueca prive-me hoje do prazer de sua companhia. Queira conceder-me licença.

E varou para o interior, sacudidamente, brutalmente, fazendo soar as esporas, deixando no assoalho as marcas úmidas das botas enlameadas. O coronel acompanhou-o.

Lenita recolheu-se ao seu quarto, bateu as janelas, não quis jantar, não quis cear, respondeu quase com desabrimento ao coronel, que insistia com ela para que fosse à mesa comer uma asa de frango, uma talhadinha de presunto, algum doce ao menos.

Sacou do peito com violência as duas bonitas rosas, atirou-as ao chão, calcou-as aos pés, esmurregou-as, despiu-se freneticamente, aos pinchos, arrancando os botões arrebentando os colchetes.

Com um movimento de pernas rápido, sacudido, fez voar longe os sapatinhos, atirou-se à cama encolheu-se como uma bola, mordeu os braços, despediu num pranto convulso.

Chorou, soluçou por muito tempo. Esse descarregamento nervoso aliviou-a; acalmou-se, sossegou.

Entrou a refletir.

Conceber um ideal, pensava ela, animá-lo como uma mãe amima o filho, ajeitá-lo, vesti-lo cada dia com uma perfeição nova, e, de repente, ver a realidade impor-se esmagadoramente prosaica, chatamente bruta, bestialmente chata!

Idealizar um caçador de Cooper, um Nemrod forte até diante de Deus, um atleta musculado como um herói da antiguidade, e ver sair pela frente um sujeito pulha, enlameado, velho, de melenas intonsas e barbas grisalhas, um almocreve, um arneiro que quase a tratara mal!

E ainda por cima juraria que ele tresandava a cachaça: sentira-lhe a bifada quando ele falou.

Mas, em suma, que lhe importava a ela esse homem, com quem nunca conversara, que nunca sequer tinha visto, cuja existência até pouco ignorava?

Pois não havia ela em tempo desprezado a corte assídua de uma nuvem de pretendentes?

E nesse momento mesmo, debaixo de certo ponto de vista, não estava até melhor, relativamente a coisas do coração? Sem pai, sem mãe, sem irmãos, emancipada, absolutamente senhora de si, rica, formosa, inteligente, culta, bastava-lhe mostrar-se na cidade, ou melhor em São Paulo, na côrte, apparecer nas reuniões, deixar-se admirar para thronejar, para ser soberana, para receber ovações, para haurir, a saciedade, o incenso da lisonja. Por que teimar em permanecer na fazenda?

Se era a necessidade orgânica, genésica de um homem que a torturava, porque não escolher de entre mil prócos um marido forte, nervoso, potente, capaz de satisfazel-a, capaz de sacial-a?

E si um lhe não bastasse, porque não conculcar preconceitos ridiculos, porque não tomar dez, vinte, cem amantes, que lhe matassem o desejo, que lhe fatigassem o organismo?

Que lhe importava a ella a sociedade e as suas estupidas convenções de moral?

Mas a côr amarellenta de Manuel Barbosa, seus olhos piscos, seus cabellos por cortar, sua barba repugnante, sua roupa molhada!

E o fartum de pinga, a bifada?

Não lhe podia perdoar, odiava-o, tinha vontade de insultal-o, esbofeteal-o, de cuspir-lhe no rosto.

Era um contrasenso; estar sempre a recahir, a ocupar-se de uma creatura vulgar, communissima, que lhe não merecia odio, com a qual não valia a pena perder um pensamento.

Voltaria para a cidade... não, iria a S. Paulo, fixar-se-ia ahi de vez, compraria um terreno grande em um bairro aristocratico, na Rua Alegre, em Santa Iphigenia, no Chá, construiria um palacete elegante, gracioso, rendilhado, à oriental, que sobressaísse, que levasse de vencida esses barracões de tijolos, esses monstrengos impossíveis que por aí avultam, chatos, extravagantes, à fazendeira, à cosmopolita, sem higiene, sem arquitetura, sem gosto. Fá-lo-ia sob a direção de Ramos de Azevedo, tomaria para decoradores e ornamentistas Aurélio de Figueiredo e Almeida Júnior. Trastejá-lo-ia de jacarandá preto, encerado, com esculpidos foscos. Faria comprar nas ventes de Paris, por agentes entendidos, secretárias, mesinhas de legítimo Boule. Teria couros lavrados de Córdova, tapetes da Pérsia e dos Gobelins, fukusas do Japão. Sobre os consolos, sobre os dunquerques, em vitrinas; em armários de pau ferro rendilhado, em étageres, pelas paredes, por toda a parte semearia porcelanas profusamente, prodigamente —as da China com o seu branco leitoso, de creme, com as suas cores alegres suavissimamente vívidas, as do Japão, rubro e ouro, magníficas, provocadoras, luxuosas, fascinantes; os grés de Satzuma, artísticos, trabalhos árabes pelo estilo, europeus quase pela correção do desenho. Procuraria vasos, pratos da pasta tenra de Sévres, ornamentados por Bouchet, por Armand, por Chavaux pai, pelos dois Sioux; contrapor-lhes-ia as porcelanas da fábrica real de Berlim e da imperial de Viena, azuis de rei aquelas, estas cor de sangue tirante a ferrugem; enriquecer-se-ia de figurinhas de Saxe, ideais, finamente acabadas, deliciosíssimas. Apascentaria os olhos na pátina untuosa dos bronzes do Japão, nas formas tão verdadeiras, tão humanas da estatuária grega, matematicamente reduzida em bronze por Colas e Barbedienne. Possuiria mármores de Falconet, terracotas de Clodion, netskés, velhíssimos, rendilhados, microscópicos, prodigiosos. Mirar-se-ia em espelhos de Veneza, guardaria perfumes em frasquinhos facetados de cristal da Boêmia. Pejaria os escrínios, as vide-poches de jóias antigas, de crisólitas e brilhantes engastados em prata, de velhos relicários de ouro do Porto.

Teria cavalos de preço, iria à Ponte Grande, à Penha à Vila Mariana em um huit-ressorts parisiense sem rival, tirado por urcos pur-sang, enormes, calorosos, de cor escura, de pêlo muito fino.

Far-se-ia notar pelas toilettes elegantíssimas, arriscadas, escandalosas mesmo.

Viajaria pela Europa toda, passaria um verão em São Petersburgo, um inverno em Nizza subiria ao Jungfrau, jogaria em Monte Carlo.

Havia de voltar, de oferecer banquetes; havia de chocar paladares, habituados ao picadinho e ao lombo de porco, dando-lhes arenques fumados, caviar, perdizes faisandées, calhandras assadas com os intestinos, todos os mil inventos dos finos gastrônomos do velho mundo: seus convivas haviam de beber Johannisberg, Tokai, Constança, Lácrima Christi, Chatêau Iquem, tudo quanto fosse vinho caro, tudo quanto fosse vinho esquisito.

Teria amantes, por que não? Que lhe importavam a ela as murmurações, os diz-que-diz-que da sociedade brasileira, hipócrita, maldizente. Era moça, sensual, rica — gozava. Escandalizavam-se, pois que se escandalizassem.

Depois, quando ficasse velha, quando se quisesse aburguesar, viver como toda a gente, casar-se-ia. Era tão fácil, tinha dinheiro, não lhe haviam de faltar titulares, homens formados que se submetessem ao jugo uxório que lhe aprouvesse a ela impor-lhes. Era pedir por boca, era só escolher.


Cessára a chuva, estava um tempo esplendido. A luz branca do sol coava-se por um ar muito fino em um céo muito azul, sem uma nuvem. A natureza expandia-se alegre como um enfermo que volta á vida, como um convalescente.

Lenita levantou-se de boa saude, mas abhorrecida, contrariada. A lembrança de Manuel Barbosa torturava-a. Ter de encontrar-se com elle a todas as horas, á mesa, na sala, vel-o passear pela casa, pelo terreiro, vê-lo refestelar-se, bamboar-se nas cadeiras de balanço, com as melenas, com as barbas grisalhas... era horroroso.

Quando a chamaram para almoçar foi cheia de displicência, contrariadíssima. Atara os cabelos negligentemente, envolvera-se em um xale, ao desdém, sem se espartilhar, sem se apertar sequer. Calçara chinelos.

Entrou na varanda com os olhos baixos, resolvida a não encarar o antipático comensal.

À mesa estava o coronel.

—Bom dia, Lenita, então, como vai isso agora? muito desapontada com o rapaz, não? Pois olhe, ele ainda fê-la melhor: partiu hoje de madrugada para a vila. Tinha um negócio urgente a tratar, pelo menos foi o que disse: chegou e saiu. A enxaqueca dele é assim, atormenta-o que é um desespero, mas com uma hora de sono passa sem deixar vestígios.

—Estimo muito que tenha sarado, respondeu Lenita secamente e pensou baixo: que durma um dia até não acordar mais. Um animal daqueles o melhor que pode fazer é morrer, é rebentar. O mundo é da força e também da beleza, porque em suma a beleza é uma força. As barbas! as barbas! Que leve o diabo a ele, mais a elas.

E ficou muito contente por não ter de ver, por não ter de aturar Manuel Barbosa, ao menos esse dia.

Demais estava resolvida, não havia de ficar muito tempo na fazenda, partiria logo para a cidade e de lá para São Paulo.

Almoçou com prazer, tocou piano, deu um grande passeio a pé, jantou, só pensou em Manuel Barbosa duas ou três vezes, isso mesmo com menos indignação, sem ressentimento, indiferente quase, achando-se apenas ridícula a si própria por tê-lo arvorado um herói durante um longo acesso de extravagância histérica. Era um pobre diabo, caipirão, velhusco, achacoso. Caçava por caçar, sem intuição poética, bestialmente, como qualquer caboclo. Bebia pinga. Verdade era que tinha estado na Europa, mas ter estado na Europa não muda a constituição a ninguém. Ele era o que ela devia esperar que ele fosse, um tipo muito sem importancia, reles, abaixo até da craveira comum.

Ao anoitecer recolheu-se, começou a arrumar os seus bronzes, os seus bibelots de marfim, de porcelana. Envolvia-os cuidadosamente, amorosamente em papel de seda, arranjava-os no fundo de um enorme baú americano que trouxera, calçava-os, protegia-os com jornais velhos fuxicados, com guardanapos, com lenços, com pequenas roupas. Tinha cuidados meticulosos, maternais, de amadora apaixonada. Por vezes esquecia-se a remirar embevecida uma jarrinha de Sévres, uma estatueta primorosa: no auge do entusiasmo beijava-a.

Alta noite, muito tarde, estando já deitada ouviu um tropear de animais, passos de gente, tinidos de esporas.

—Aí chega o bruto, disse consigo, e continuou a pensar na sua ida próxima para a cidade, e de lá para São Paulo.

O tempo estava firme: a uma noite limpa, estrelada, fria, sucedera um dia como o da véspera, luminoso, assoalhado.

Lenita levantou-se muito cedo, tomou um copo de leite, deu um passeio pelo pasto. De volta entrou no pomar a ver os figuinhos novos, os cachos tenros das vides.

De uma laranjeira-cravo, que se erguia folhuda desde o chão, viçosa, esparramada, esfuziou de súbito um tico-tico.

Tem ninho, pensou consigo Lenita, e começou a procurar, abrindo, afastando os ramos.

Deteve-se, aspirou o ar: sentia um cheiro bom de sabonete Legrand e de charuto havana.

Deu volta à laranjeira e topou com Manuel Barbosa que se encaminhava para ela, risonho, palacianamente curvado, na mão direita o chapéu, na esquerda um cravo rubro, perfumado, esplêndido.

Perto o charuto, que ele deitara fora, desprendia uma espiral de fumo, azulada, tênue.

Lenita parou confusa, atônita, sem saber o que pensasse.

O homem que aí vinha não era o Barbosa da véspera, era uma transfiguração, era um gentleman em toda a extensão da palavra.

A testa alta, estreita, lisa, mostrava-se a descoberto, com uma zona muito alva à raiz do cabelo: esse, cortado, à meia cabeleira, recurvava-se a frente em uma elegante pastinha à Capoul, a que dava certo realce muitos fios cor de prata. O rosto era regularíssimo, estava muito bem barbeado. À palidez da véspera sucedera uma cor sadia de pele clara, mordida, bronzeada pelo sol. A boca, de tipo saxônio puro, encimada por um bigode cuidadosamente aparado e seu tanto ou quanto grisalho, abria-se em um sorriso bondoso e franco, mostrando dentes fortes, regulares, muito limpos. Estatura esbelta, pés delicados, mãos muito bem feitas, muito bem tratadas.

Trazia um costume folgado de casimira clara, gravata creme, camisa alvíssima, de colarinho deitado, mostrando em toda a sua força o pescoço robusto. Na lapela do veston tinha uma rosa de cheiro muito repolhuda.

Chegou-se a Lenita polidamente, graciosamente.

—Minha senhora, triste juízo há de vossa excelência ter feito de mim anteontem. Quando estou com enxaqueca deixo de ser homem, torno-me urso, torno-me hipopótamo. Quer fazer-me a honra de aceitar este cravo? Olhe, dê-me licença, eu sou um velho, podia ser seu pai.

E com uma familiaridade confiada prendeu a flor no cabelo da moça.

Depois, afastando-se dois passos, mirou-a, entortando a cabeça, com ares de entendedor, e disse:

—Que bem que vai esse vermelho vivo nos seus cabelos pretos. Está linda.

O olhar que coava por entre as pálpebras semicerradas de Barbosa era tão doce, tão paterna, a sua fala era tão untuosa, que Lenita não se revoltou, não repeliu a ousadia. Sorriu-se e perguntou:

—Está agora perfeitamente bom, não tem cansaço da viagem, não tem ressaibos da moléstia?

—Oh! não. Viagens não me fatigam, e a minha enxaqueca, em passando, passou, não deixa vestígios. Quer aceitar o meu braço?

—Vamos dar uma volta pelo pomar, fazer horas para o almoço?

Lenita acedeu.

Em um instante, como por ação elétrica, seus sentimentos se tinham transformado: aos ardores pelo homem ideal da cisma histérica, à antipatia pelo homem real da antevéspera, entrevisto em circunstâncias desfavoráveis todas, sucedera aí nesse lugar, repentinamente um afeto calmo e bom que a subjugava, que a prendia a Barbosa. Achava nele que era de bonomia superior, de familiaridade comunicativa que lhe lembrava Lopes Matoso.

Passearam, conversaram muito. Falaram principalmente de botânica. Barbosa estabeleceu um confronto detalhado entre a flora do velho mundo e a do novo; entrou em apreciações técnicas; desceu a minudências de sua própria observação pessoal. À alternativa matemática das estações do ano na Europa contrapôs a magnificência monótona da primavera eterna brasileira. Fez notar que lá domina nas matas o exclusivismo de uma especie, que ha bosques só de carvalhos, só de castanhos, só de álamos, ao passo que cá acotovelam-se, emaranham-se em pequeno espaço cem famílias, diversíssimas a ponto de não se encontrarem, muitas vezes, dois indivíduos da mesma variedade em um raio de mil metros. Abriu uma exceção em Minas e no Paraná para a Araucaria brasiliensis, abriu exceções para as palmeiras intertropicais, a que chamou legião. Lenita acompanhou-o com interesse sumo, revelando conhecimento aprofundado da matéria, fazendo-lhe perguntas de entendedora. Citou Garcia D'orta, Brótero e Martins, criticou Correia de Melo e Caminhoá, confessou-se, em relação a espécies, sectária, ardente de Darwin, cujas ensinamentos Barbosa ouvura em Londres, de Hæckel, cujas prelecções elle seguira em Iena. A comunidade de opiniões radicou a estima entre ambos; quando entraram para almoçar estavam amigos velhos.

—Olá! disse o coronel, da porta, ao vê-los chegar de braço dado. Muito bom dia ! Leve o diabo as tristezas. Com que amiguinhos, era o que eu esperava. Mas vamos, vamos para dentro, que já não é sem tempo; o almoço arrefece de uma vez; há meia hora que está na mesa.

—Sim, senhor, meu pai, a Exma. senhora dona Helena é para mim uma surpresa, uma revelação. Sabia-a muito bem educada, mas supunha-a bem educada, como o são em geral as moças com especialidade as brasileiras — piano, canto, quatro dedos de francês, dois de inglês, dois de geografia e... pronto! Pois enganei-me: a Exma. senhora dona Helena dispõe de erudição assombrosa, mais ainda, tem ciência, verdadeira, é um espírito superior, admiravelmente cultivado.

—É por demais bondoso, senhor Manuel Barbosa, volveu Lenita visivelmente satisfeita.

—Olhem vocês uma coisa, acabem-me com essas excelências, com essas senhorias. É Lenita para cá, Manduca para lá e... toca! Cerimônias só para a igreja: a num me fazem elas mal aos nervos, até agravam-me o reumatismo. Vamos almoçar.

Daí em diante Lenita e Barbosa não se deixaram: liam juntos, estudavam juntos, passeavam juntos, tocavam piano a quatro mãos.

Na sala do coronel armaram um gabinete de física eletrológica.

A velha quadra de paredes corcovadas, carequentas, povoou-se estranhamente de instrumentos científicos moderníssimos , nos quais o brilho fulvo do latão envernizado se casava ao preto baço das partes enegrecidas, à transparência cristalina dos tubos de vidro multiformes, ao lustroso da madeira brumida dos suportes, à verdura fresca da seda das bobinas.

Botelhas de Leyde, jarras enormes, agrupadas em baterias formidáveis, máquinas de Ramsden e Holtez, pilhas compartimentos Kruikshank e de Wollanston, pilhas enérgica de Grove, de Bunsen, de Daniell, de Leclanché; pilhas elegantíssimas de bicromato de potassa, acumuladores de Planté, bobinas de Ruhrnkorf, tubos de Geissler, reguladores de Foucault e Duboscq, bugias de Jablochkff, lâmpadas de Edson, telefones, telégrafos, tudo isso por aí protraía as formas esquisitas, fosco, diáfano, reverberante a um tempo; absorvendo, refrangendo, refletindo a luz de mil modos diferentes.

A eletricidade sussurrava, multiplicavam-se por toda parte faíscas azuladas, ouviam-se estalidos secos, tintinações sonoras de campainhas.

O ar estava picado de um cheiro acre, irritante, de ácido azótico e de ozone.

Barbosa e Lenita, ocupados, embebidos em experiências, trocavam palavras rápidas, quase ásperas, como dois velhos colegas.

Davam-se um ao outro ordens breves, imperiosas. De repente um deles batia o pé, contraía o rosto, piscava duro, sacudia o braço: era que tinha havido um descuido, punido logo por um choque. O coronel espiava da porta.

—Que a sua sala estava convertida em senzala de feitiçarias, afirmava ele, que de repente havia de vir um raio e espatifar aquelas burundangas todas.

Aos convites instantes de Lenita e do filho para que chegasse a ver de perto os efeitos luminosos da eletricidade no vácuo, as colorações brilhantes produzidas nos tubos de Geissler, recusava-se — que lá não entraria nem por um decreto; que para livrar-se por toda a sua santa vida do desejo de investigar eletricidades, bem lhe bastavam dois choques que apanhara uma feita, na estação telegráfica.

A observação de que a eletricidade lhe podia ser útil para a cura do reumatismo, contestava que se curasse quem quisesse com tal medicina, que ele não.

Satisfeita a curiosidade científica de Lenita quanto ao estudo experimental da eletrologia, que ela dantes só aprendera teoricamente, passaram à química e à fisiologia. Depois foram à glótica, estudaram línguas, grego e latim com especialidade: traduziram os fragmentos de Epicuro, o De Natura Reram de Lucrécio.

Em estudos, em conversações que eram prolongamentos dos estudos, em passeios e excursões campestres, voava o tempo. Levantavam-se muito cedo, estendiam os serões até muito tarde. Uma vez o moleque, que fora buscar o correio, trouxe para Barbosa um volume lacrado. Era a exposição das teorias transformistas de Darwin e Haeckel por Viana de Lima. Lenita ficou doida de contente com a novidade escrita em francês por um brasileiro. Começaram a leitura depois da ceia, prolongaram-na pela noite adiante, e embeveceram-se a tal ponto que o dia os surpreendeu.

Ao empalidecer a luz das velas com os primeiros albores do dia, foi que deram acordo de si. Riam muito, recolheramse desapontados aos seus aposentos, não dormiram. Compareceram ao almoço e depois dele continuaram com a leitura.

À noite, quando depois de despedir-se de Barbosa, entrava para o quarto, Lenita despia-se, concentrando o pensamento, refletindo sobre o seu estado de espírito, achava-se feliz, notava que tinha afetos brandos por tudo que a rodeava, que via a natureza por um prisma novo. Sentia, com uma ponta de remorso, que lhe ia esquecendo o pai. E parecia-lhe interminável o que restava da noite, o que ainda faltava para tornar a ver Barbosa.

Deitava-se, aconchegava-se, procurava adormentar o cérebro, repelindo, baralhando as idéias que se apresentavam. Adormecia.

Cedo, muito cedo, ao amiudar dos galos, acordava: erguia-se de pronto, alegríssima; escovava os dentes cuidadosamente, mirava-os com desvanecimento ao espelho, chegando muito a luz à boca, arregaçando muito os beiços para ver as gengivas; refrescava a epiderme do busto com uma larga ablução fria, umedecia, perfumava o cabelo com água de violetas, penteava-os com esmero, substituía a camisola de dormir por uma camisa finíssima de cambraia crivada; apertava-se, vestia-se com garridice; limava, espontava, alisava, coloria, brunia as unhas.

E tudo isso pensando em Barbosa, antegostando a delícia do momento de vê-lo, de ouvir-lhe a voz em um bom dia afetuosíssimo, jubiloso; de apertar-lhe a mão, de sentir-lhe o contato quente.

Barbosa já não era moço, pouco dormia, poucas horas de sono lhe bastavam.

Deitava-se, procurava ler, mas debalde. A imagem de Lenita interpunha-se entre ele e o impresso. Via-a junto de si, absorvia-se em contemplá-la nessa semi-alucinação, falava-lhe em voz alta, desesperava, depunha o livro ou o jornal, estendia-se, virava-se, revirava-se, adormecia, acordava, riscava fósforo, olhava o relógio, via que era noite, tornva a adormecer, tornava a acordar, e assim continuava até que amanhecia, até que chegava a hora de levantar-se.

—Que não sabia o que aquilo era, pensava. Admiração por talento real em uma moça, por faculdades inegavelmente superiores em uma mulher? Possível. Mas em Paris trabalhara ele muito tempo com madame Brunet, a tradutora sapientíssima de Huxley; com ela fizera centenares de dissecações anatômicas, com ela aprofundara estudos de embriogenia

respeitava-a, admirava-a; e nunca sentia junto dela o que sentia junto de Lenita. E todavia madame Brunet não era feia, bem ao contrário. Não, aquilo não era simples admiração. Mas que diabos, era aquilo então? Amor verdadeiro, com objetivo definido, carnal também não era
ao pé de Lenita ainda não tivera desejo algum lascivo, ainda não sofrera o pungir do espinho da carne. Tivera em tempo uma paixão que o levara à tolice suprema do casamento, mas isso passara; tinha-se até divorciado da mulher com cujo gênio se não tinha podido harmonizar. Casto, era-o até certo ponto: só procurava relações genésicas, quando as exigências fisiológicas do seu organismo de macho se faziam sentir, imperiosas, ameaçando-lhe a saúde. E não ligava a isso mais importância do que o exercício de uma outra função qualquer, do que satisfação de uma simples necessidade orgânica. Mas que era então o que sentia por Lenita? Amizade no rigor do termo, como de homem para homem, e até de mulher para mulher, não era: a amizade é impossível entre pessoas de sexo diferente, a não ser que tenham perdido todo o caráter de sexualidade. Amor ideal, romântico, platônico? Era de certo isso. Mas ridículo, santo Deus? que oceano de ridículo! Quebradeiras sentimentais na casa dos quarenta, quando a enduração do cérebro já não permite fantasias, quando a luta pela vida já tem morto as ilusões?

O caso era que não podia estar longe da moça, que só junto dela vivia, pensava, estudava, era homem. Estava preso, estava aniquilado.

Quebrara em Santos uma casa comissária importantíssima.

O coronel perdia na quebra cerca de trinta contos.

— Que aquela praça era uma cova de Caco, uma Calábria disse ele ao saber da notícia, um dia de manhã: que comiam o fazendeiro por uma perna; que misturavam o café bom, mandado por ele, com o café de refugo, com o café escolha comprado ao desbarato; que essa honestíssima manipulação chamavam bater, fazer pilha, no que tinham carradas de razão porque era mesmo uma batida de dinheiro, uma verdadeira pilhagem de cobres, que davam contas de venda ao fazendeiro como e quando muito bem lhes parecia, e que diabo havia de se ver grego para verificar a exatidão de tais contas; que à custa do fazendeiro comia o intermediário, comia a estrada de ferro com as suas tarifas de chegar, comia o governo com os velhos e novos impostos, comia a corporação dos carroceiros, comia a três carrilhos o comissário, comia o zangão ou o corretor, comia o exportador, comiam todos. Que afinal, para coroar a obra, para evaporar o restinho de cobre que ficava, lá vinha a santa da quebra, a bela da falência, casual, já se deixava ver, porque onde há guarda-livros peritos ninguém quebra fraudulentamente.

Ficou decidido que Barbosa partiria no dia seguinte para Santos, a ver se conseguia salvar alguma coisa do naufrágio. Logo depois do almoço conversou ele por largo espaço com o pai, discutiu, fez contas, ajustou condições, dispôs as bases da negociação e, montado a cavalo, foi à fazenda do vizinho mais próximo, major Silva com quem era necessário entender-se, porque também era interessado no negócio.

Ao dizer-lhe adeus Barbosa, Lenita sentiu-se fazer em torno dela um vácuo imenso, certa muito embora de que a ausência era só até à tarde.

A idéia de outra ausência, da ausência futura, da ida para Santos torturava-a.

Como lenitivo à sua mágoa, quis ela própria fazer a mala de Barbosa, pretextando que não ficaria bom o arranjo pelas mãos descuidosas de uma escrava.

Seguiu a mucama encarregada da roupa branca, entrou pela primeira vez no quarto de Barbosa.

Ao fundo uma cama estreita de solteiro, estendida, com lençóis e fronhas muito alvas; junto da cabeceira um criado-mudo de tampo de mármore, e sobre ele um castiçal de alfenide com um coto de vela de estearina, uma fosforeira de prata e um número de Diário Mercantil; ao alcance da mão uma mesa vasta, forrada de baeta verde com alguns livros, aprestos para escrever, dois revólveres, um punhal japonês e uma fotografia de Sarah Bernhardt; aos pés da cama um mancebo para roupa, com muitos braços. Pelas paredes, nos espaços deixados por um lavatório e uma enorme cômoda, botelhas entrançadas de vime, facões, armas finas, de caça e de alvo, de carregar pela boca, de retrocarga , de repetição, mareadas por Pieper, por Habermann, por Greener, por Fruwirth. Um armário, uma cadeira preguiçosa e várias cadeiras simples completavam o trastejamento.

Entrando, Lenita sentiu-se tomada de embaraço inexplicável. Seu pudor revoltava-se, parecia-lhe que respirava indecência naquele aposento de homem.

Correu-se de pejo, corou e com voz mal segura perguntou à mucama pela roupa branca de Barbosa.

A mucama abriu uma cômoda, tirou dela e empilhou sobre a cama camisas brancas engomadas, camisas de dormir de flanela macia, ceroulas de linho alvíssimo, toalhas, lenços brancos e de bretanha, lenços de seda de cor, meias de fio de Escócia.

Foi buscar e colocou junto da cama uma grande mala inglesa de bojo elástico de fole; no couro preto, punha uma nota viva, um pedaço de papel encardido com o letreiro - Tamar, cabin. Desafivelou as correias, abriu-a em duas.

Lenita forrou um dos compartimentos com uma toalha de algodão mineiro finíssimo, crivada, franjada em abrolhos, e, com esse cuidado meticuloso, com esse jeito peculiar às mulheres moças, começou a arrumar peça sobre peça, perfumando cada uma com um borrifo de essência Vitória vaporizada.

Na candidez dos linhos destacava-se, em notas cruas, o vermelho-sangue, o azul-de-rei dos lenços de seda, o ouro-fosco, o verde-garrafa, o preto-lustroso das meias de fio de Escócia.

A mucama saiu, passou a outro quarto para trazer umas roupas de casimira que Barbosa lhe dissera querer levar.

Lenita ficou só. Foi a tirar a última camisa de sobre a cama e notou que, no retesado da coberta, havia um afundamento apenas visível sobre a travesseira rendada uma depressão mais cava. Depois de feita a cama, Barbosa com certeza nela se estendera a descansar.

Inconscientemente, automaticamente, atraída, puxada pelos nervos, Lenita pôs as mãos no colchão fofo, curvou-se, aproximou a cabeça.

Da travesseira, misturando-se a um aroma suave de água de Lubin, desprendia-se um cheiro animal bom, de corpo humano, são, asseado.

Lenita, haurindo essa emanação sutil, sentiu quer que era elétrico abalar-lhe o organismo: era um anseio vago, uma sede de sensações que a torturava. Quase em delíquio, deixou-se cair de bruços sobre a cama, afundou o rosto na travesseira, sorveu a haustos curtos, açodados, o odor viril, esfregou, rostiu os seios de encontro ao fustão áspero da colcha branca.

Sentia quase o mesmo que sentira na noite da alucinação com o gladiador, um prazer mordente, delirante, atroz, com estranhas repercussões simpáticas, mas incompleto, falho.

Trincou nos dentes a cambraia da fronha, gemendo, ganindo em contrações espasmódicas.

—Eah! gritou a mucama que entrava, sinhazinha está com ataque! e, atirando sobre a cadeira a roupa que trouxera, correu para ela, ergueu-a nos braços, sacudiu-a com força.

Lenita acalmou-se sem demora: estava pálida, trêmula, tinha os olhos muito brilhantes, a boca pegajosa, a fala travada.

—Não é nada disse, foi uma vertigem, já passou. Vá buscar um copo d'água.

—Sinhazinha, ponderou a mucama, o que lhe fez mal foi o cheiro forte do vidro que vassuncê estava pondo na roupa: a mim também me tonteou. Cuidado.

E saiu.

À tarde, Barbosa, quando voltou da fazenda do major Silva, estranhou a Lenita. Ela não o procurava, não lhe falava, mal respondia às suas numerosas e reiteradas perguntas.

Contra o costume recolheu-se cedo, antes da ceia, pretextando incomodo.

Barbosa despediu-se do pai e da mãe: não os queria ir acordar de madrugada, e contava partir antes de amanhecer.

Entrou para o quarto mas não pôde dormir. A viagem que tinha de fazer contrariava-o imenso. Não sabia como passar ausente de Lenita. As poucas horas que estivera na fazenda do major Silva tinham-lhe parecido eternidades. Viera a galope. E mais, para coroar a obra, os modos bruscos da moça.

Acabou de arrumar a mala.

—Sim, senhor, disse, a Marciana arranjou isto muito bem. Está admirável, até com gosto, com arte. Mas, onde diabo foi ela buscar essência Vitória? Cheira que é uma delícia. Fez jus a cinco mil-réis, há de tê-los.

Tirou do armário uma garrafa de conhaque, bebeu um cálice, acendeu um charuto.

Entrou a pensar.

—Que teria Lenita? Teria adoecido assim de repente? Regras, aquilo de certo eram regras: “tota mulier in utero„ bem disse Van Helmont. Mas não era que estava mesmo apaixonado pela rapariga? Tinha graça!

Puxou com força uma fumaça, e continuou a pensar!

—Era casado, era quase um velho. Onde iria parar aquilo?... Não levava a fatuidade ao ponto de crer que a rapariga estivesse apaixonada também pela sua respeitável pessoa... mas, em suma, por que não? Muitos velhos tinham inspirado paixões. A mulher de Lesseps era uma mocinha nova, quase uma criança, e casara por paixão. E demais ele, Barbosa, não era velho, era homem maduro apenas. Dado que o que havia entre ele e Lenita não fosse, como não podia mesmo ser, uma mera afeição de camaradagem, uma simples estima recíproca, que havia ele de fazer? Casar com Lenita não podia, era casado. Tomá-la por amante? Certo que não. Preconceitos íntimos não os tinha: para ele o casamento era uma instituição egoística, hipócrita, profundamente imoral, soberanamente estúpida. Todavia era uma instituição velha de milhares de anos, e nada mais perigoso do que arrostar, contrariar de chofre as velhas instituições; elas hão de cair, sim, mas com o tempo, a mesma lentidão com que se formaram, e não de chofre, como um relâmpago. A sociedade estigmatizava o amor livre, o amor fora do casamento; força era aceitar o decreto antinatural da sociedade. Demais, seu pai tivera Lopes Matoso em conta de filho; tinha a Lenita em conta de neta: um escândalo magoá-lo-ia profundamente, matá-lo-ia talvez.

Sentou-se junto à mesa, quebrou em um cinzeiro a cinza do charuto, apoiou o cotovelo do braço esquerdo sobre o joelho correspondente, encostou a cabeça no rebordo interno da mão, engolfou-se em cisma, tirando fumaça sobre fumaça.

Após largo espaço ergueu-se, atirou fora a ponta do charuto, entrou a passear nervoso de um para outro lado.

—Não, exclamou de repente, é preciso que isto acabe, há de acabar.

Deitou-se.

Às três horas ergueu-se sem ter conciliado o sono, chamou o pajem, mandou-o encilhar os animais, lavou-se, vestiu-se, calçou botas, calçou luvas, envergou o guarda-pó, pôs o chapéu, tomou às pressas uma xícara de café, que uma preta lhe trouxe, saiu, montou a cavalo e, acompanhado pelo pajem, seguiu jornada.

Lenita também não dormira.

O cheiro humano masculino que respirara na travesseira de Barbosa fora realmente um veneno para os seus nervos. Sentia-se de novo presa do mal-estar do histerismo antigo. Tinha anseios, tinha desejos, mas anseios, desejos acentuados, visando a objetiva certo. Ela ansiava por Barbosa. Ela desejava Barbosa.

A seus olhos avultara ele, tomara proporções novas, realizara-lhe o ideal. Deixara-se subjugar, dominar pelo físico robusto e nervoso, pela pujante e culta mentalidade de Barbosa.

A fêmea altiva, orgulhosa, mas cônscia da sua superioridade, encontrava o macho digno de si: a senhora se fizera escrava.

Ao ouvir o estrupido dos animais na partida, Lenita abriu a janela, ergueu a vidraça, acompanhou com o olhar os vultos dos dois cavaleiros que se iam perdendo nas brumas da madrugada.

Notou que paravam, que se voltava o cavaleiro da frente, cujo guarda-pó muito claro punha uma nota muito branca no nevoeiro matutino.

Seria por um dos mil pequenos incidentes de viagem que paravam? seria para contemplar Barbosa ainda mais uma vez, a casa em que ela ficara? seria uma despedida?

Sem o querer, inconscientemente, Lenita apinhou os dedos, levou-os à boca, atirou um beijo ao espaço.

E desatinada, ardendo em pejo, muito embora certa de que ninguém a vira, fechou a janela arrojou-se à cama desatou em pranto convulso.

Despontou o sol, trazendo dia radiante, lindíssimo.

Lenita ergueu-se, vestiu-se às pressas, saiu a dar uma volta pelo pomar, deixando intactos o copo de leite e a xícara de café que lhe levara a servente.

O ar fino da manhã puríssima, saturado das emanações balsâmicas das árvores abafava-a, sufocava-a: parecia-lhe que respirava chumbo.

A luz do sol, a dourar a verdura mole do campo, era crua e incomparável a seus olhos. Achava algo de hostil na vegetação, em tudo.

Era-lhe odiosa a imobilidade dos cerros vizinhos, das montanhas que ao longe divisava. Um terremoto, um cataclismo que desmoronasse as serranias, alteando os vales, derramando os rios, convulsionando tudo, iria muito melhor ao seu estado de espírito do que essa calma da natureza, bárbara, estúpida.

Figurava-se-lhe estar dentro de um círculo de altas muralhas de aço brunido, cujo diâmetro se fosse a cada instante estreitando. Tudo lhe falava de Barbosa, tudo lhe recordava.

Aqui era a laranjeira-cravo junto da qual o vira, como em um avatar, como em uma transfiguração, risonho, franco, comunicativo, sob o aspecto que em um momento a cativara.

Ali era um grupo de ameixeiras, que servira de assunto a uma preleção de botânica industrial. Lembrava-lhe muito bem — ameixeira da Índia, ameixeira do Canadá, nomes impróprios, origens falsas. A árvore é autóctone da China e do Japão, onde vive em estado selvagem, é a eriobotria, a Mespilus japonica. Está destinada a um grande papel no futuro, quando este país se tomar industrial. A geléia que produz não tem competidora, e a sua aguardente, coobada, levará de vencida a famosa kirchwasser.

Além era um renque de ananazeiros, a cujo respeito a exposição luminosa e fácil de Barbosa lhe tirara muitas dúvidas. Como lhe vivia na memória a descrição que ele fizera — Bromelia arianas, família das bromeliáceas; folhas em corimbos, duras, quebradiças, alfanjadas, de perto de metro, às vezes, guarnecidas de acúleos; flor vermelha ou roxa, a emergir de um cálice duro, cor de sangue, em pecíolos longos de vinte a trinta centímetros; fruto lindo, pinhiforme, verde, branquicento, dourado, vermelho, constituído por uma série de bagas em hélice, soldadas, unificadas umas com as outras, em escamas orladas de pequenas folhas escarlates, coroado tudo por um penacho espinhento. Abacaxi, nanã, macambira , onore, uaca, achupala, naná-iacua, chamava-se no continente sul-americano essa fruta adorável que, em 1514, Fernando, o Católico, declarou, na Espanha a primeira fruta do mundo. Gonzalo Hernandez, Lery, Benzoni descreveram-na em suas obras; Cristóvão Acosta deu-lhe o nome que hoje tem. Conta nada menos de oito variedades; penetrou na África até às margens do Congo, na Ásia até o coração da China: é soberbo em Pernambuco, mas onde atinge a perfeição em forma, em aroma, em gosto, onde chega a ser divino é no Pará.

Ainda além um mamoeiro...

E Lenita sacudiu a cabeça, interrompendo desesperada o seu curso de idéias; os ensinamentos de Barbosa, a sua erudição, o que ela reproduzia, mais lhe acendravam o desalento da saudade.

Não o podia crer ausente: ele lá estava, lá devia estar na sala do coronel, a arranjar um aparelho elétrico desmanchado: ou na varanda, a procurar em grossos léxicos uma raiz grega ou sânscrita. Sim, lá devia estar dentro, fazendo uma das coisas do costume. Quem sabe se precisava dela para o ajudar...

E correu. Antes de chegar ao portão parou. Tolices, Barbosa estava longe, partira, ela o vira partir.

A essa hora já tinha andado umas duas léguas, seis mil braças, treze mil e duzentos metros: cada minuto afastava-o dela cento e dez metros. No outro dia, às seis horas e dez minutos, precisamente, da tarde, deveria estar, estaria em Santos, a quarenta e cinco léguas, a trezentos quilômetros, a trezentos mil metros!

Recolheu-se abatida, mal almoçou, jantou ainda pior.

Ao entardecer, quando o sol, no descambar, derramava sobre a terra torrentes de luz amarela, suave, cor de ouro-velho, projetando ao longe, gigantescas, as sombras dos animais, das árvores, das casas, dos cerros, Lenita com o peito opresso, a arfar em fôlegos curtos, foi sentar-se em um bosquezinho denso de amoreiras, sobre um alcantil, à beira do ribeirão.

Oculta pelo tramado da folhagem, ela abrangia um vasto trato de terreno no arco de círculo percorrido pelo raio visual. Na verdura veludosa do pasto, punham notas fortes grandes vacas muito pretas, malhadas de branco.

Um touro andaluz, vermelho, mugia ao longe, escarvando a terra. Um rebanho de ovelhas fuscas de cabeças e pernas muito negras pascia irrequieto, às cabriolas, tosando a grama aqui e ali.

Quase a seus pés, sob o alcantil das amoreiras, o riacho espraiava-se em uma corredeira rasa, sobre fundo de seixinhos alvos. Um capão de mato ralo começava à beira da água, indo morrer a pequena distância.

Lenita contemplava o amplo cenário, abstrata, distraída, imersa em cisma, olhando sem ver. Um mugido fero, ao perto, chamou-a à realidade.

O touro tinha-se aproximado de uma vaca muito gorda, cuja cria, terneira alentada, pastava já longe, deslembrada quase da teta.

Chegara-se farejando ansioso, cheirava o focinho da vaca, cheirava-lhe o corpo todo: erguera cabeça aspirando ruidosamente o ar, mostrando, no arregaçar luxurioso da beiça, a gengiva superior desdentada; soltara um berro estrangulado.

Fora o que Lenita ouvira.

O touro lambeu a vulva da vaca com a língua áspera, babosa, e depois, bufando, com os olhos sanguíneos esbugalhados, pujante, temeroso na fúria do erotismo, levantou as patas dianteiras, deixou-se cair sobre a vaca, cobriu-a, pendendo a cabeça à esquerda, achatando o perigalho de encontro ao seu espinhaço.

A vaca abriu um pouco as pernas traseiras, corcovou-se, engelhou a pele das ilhargas para receber a fecundação. Consumou-se esta em uma estocada rubra, certeira, rápida.

Era a primeira vez que Lenita via, realizado por animais de grande talhe, o ato fisiológico por meio do qual a natureza viva se reproduz.

Espírito culto, em vez de julgá-lo imoral e sujo, como se praz a sociedade hipócrita em representá-lo, ela achou-o grandioso e nobre em sua adorável simplicidade.

Um assobiar requebrado e terno que se fazia ouvir no riacho fê-la voltar para esse lado. Olhou, viu a Rufina, uma crioula nova de seios pulados e duros, de dentes muito brancos.

Chapinhava na água rasa da corredeira, de cabeça alta, risonha, erguendo as fraldas muito alto; descobrindo-se até o púbis, mostrando as coxas grossas, musculosas de um negro mate arroxado.

A assobiar sempre, avançou até o começo da corredeira, onde o álveo se afundava um tanto, sofraldou-se mais, prendeu a roupa à cinta, curvou-se, imergiu as nádegas na água murmurosa, e, às mãos ambas, procedeu a uma ablução de asseio, tônica ao mesmo tempo e excitante.

Depois, com água a escorrer em filetes lustrosos pela pele escura, baça, internou-se no capão.

Ouvia-se-lhe sempre o assobio requebrado.

Não levou muito e outro assobio respondeu-lhe.

Por uma trilha do ancantil oposto um preto, moço, vigoroso, desceu a correr, atravessou rápido a corredeira, internou-se por sua vez no capão.

Cessaram os assobios.

Lenita ouviu um murmurar confuso de vozes intercortadas, viu agitarem-se uns ramos e, pelos interstícios dos troncos, por entre o emaranhado dos galhos, lobrigou indistintamente uma como luta breve, seguida pelo tombar desamparado, pelo som baço de dois corpos a bater a um tempo no solo arenoso do matagal.

Lenita mais compreendeu do que viu. Era a reprodução do que se tinha passado, havia momentos, mas em escala mais elevada: à cópula, instintiva, brutal, feroz, instantânea dos ruminantes, seguia-se o coito humano meditado, lascivo, meigo, vagaroso.

Abalada profundamente em seu organismo, com a irritação dos nervos aumentada por essas cenas cruas da natureza, torturada pela Carne, mordida de um desejo louco de sensações completas, que não conhecia, mas que adivinhava, Lenita recolheu-se titubeando, fraquíssima.

O coronel tinha passado a noite mal, com um acesso de reumatismo; conservara-se todo o dia na cama.

Lenita foi vê-lo, demorou-se pouco, retirou-se para o seu quarto, fechou-se por dentro.

Já tinha anoitecido.

Não havia luar, mas a noite estava clara. Na transparência escura do céu tropical as estrelas empastavam-se em um amontoamento inverossímil, como punhados de farinha luminosa em tela muito negra.

No terreiro, varado, em frente às senzalas, uma fogueira crepitava alegre, espancando a escuridão com seu brasido candente, com suas línguas de chamas multiformes, irrequietas.

Os negros tinham acabado uma carpa nesse dia, e o coronel dera-lhes permissão para folgar, mandando ao mesmo tempo que o administrador lhes fizesse uma larga distribuição de aguardente.

Ao som de instrumentos grosseiros dançavam: eram esses instrumentos dois atabaques e vários adufes.

Acocorados, segurando os atabaques entre as pernas, encarapitados, debruçados neles, dois africanos velhos, mas ainda robustos, faziam-nos ressoar, batendo-lhes nos couros, retesados, às mãos ambas, com um ritmo, sacudido, nervoso, feroz, infrene.

Negros e negras formavam um vasto círculo agitavam-se, permeavam, compassadamente, rufavam adufes aqui e ali. Um figurante, no meio, saltava, volteava, baixava-se, erguia-se, retorcia os braços, contorcia o pescoço, rebolia os quadris, sapateava em um frenesi indescritível, com uma tal prodigalidade de movimentos, com um tal desperdício de ação nervosa e muscular, que teria estafado um homem branco em menos de cinco minutos.

E cantava:

Serena pomba, serena;

Não cansa de serená!

O sereno desta pomba

Lumeia que nem meta!

Eh! Pomba! eh!

E a turba repetia em coro:

Eh! Pomba! eh!

A voz do cantor, fresca modulada de um timbre sombrio, coberto, tinha uma doçura infinita, um encanto inexprimível.

Fechando-se os olhos, não se podia crer que sons tão puros saísse a garganta de um preto, sujo, desconforme, hediondo, repugnante.

A resposta coral, melopéia inarmônica, mas cadenciada em quebros de uma tristeza suavíssima, repercutia pelas matas no silêncio da noite, com uma grandiosidade melancólica e estranha.

A letra nada dizia; a toada, o canto era tudo.

E os atabaques retumbavam, rufavam os adufes, desesperadamente.

O dançarino, sempre a cantar, sempre naquela agitação, naquela coreomania estupenda, percorria a roda sem sustar-se para retomar alento, sem dar mostras de cansado. Em sua testa baça não brilhava uma baga de suor.

De repente, vendo um tição inflamado na mão de um companheiro, asiu-o, entrou a descrever com ele no ar figuras caprichosas, círculos, elipses, oitos de algarismo. Bateu-o no chão, espalhou na roda milhares de faúlas... O entusiasmo ascendeu ao delírio.

O dançarino deitou fora o tição, arrojando-o longe com impulso vigorosíssimo. Depois afrouxou, moderou um pouco os movimentos. Entreparou ante um dos da roda, bamboando-se, fazendo-lhe gaifonas, como que reptando-o para que saísse ao terreiro.

O desafiado aceitou a provocação, saiu-lhe ao encontro, dançando, saracoteando-se, também.

«  Eh! Pomba! eh!  »

— gemia o coro.

Os figurantes, que eram então os dois, começaram de girar em torno do outro, atacando-se, perseguindo-se, fugindo, como duas borboletas amorosas . Recuaram, depois avançaram de frente, lento, medindo-se. Deixaram pender os braços, afastaram as cabeças, protraíram os ventres, curvando as pernas, fizeram estalar uma embigada artística, sonora, retumbante, que se ouviu longe.

« Eh! pomba! eh! »

continuava a gemer o coro.

O primeiro figurante embarafustou-se por entre os companheiros, rompeu a roda, sumiu-se, deixando só o sucessor que continuou na faina com a mesma galhardia.

Os que não dançavam, que não tomavam parte no samba, grupavam-se aos magotes, acotovelando-se; olhavam em silêncio, enlevados, absortos.

Do solo batido pelo tripudiar de tanta gente erguia-se uma nuvem de pó, avermelhada pelo clarão da fogueira.

A garrafa de aguardente andava de mão em mão: não havia copos; bebiam pelo gargalo.

Ao cheiro de terra pisada, de cachaça, de sarro de pito, sobrelevava dominante um cheiro humano áspero, aliáceo, um odor almiscarado forte, uma catinga africana, indefinível, que doía ao olfato, que cortava os nervos, que entontecia o cérebro, sufocante, insuportável.

Enquanto se dançava no terreiro, Joaquim Cambinda, escravo octogenário, inútil para o trabalho, estava sozinho, sentado em um cepo, ao pé de um fogo de lenha de perova, no paiol velho abandonado, que a rogo seu lhe fora concedido para morada.

Era horroroso esse preto: calvo, beiçudo, maxilares enormes, com as escleróticas amarelas, raiadas de laivos sanguíneos , a destacarem-se na pele muito preta. Curvado pela idade, tardo, trôpego, quando se erguia e, envolto na sua coberta de lã parda, dava alguns passos, similhava uma hiena fusca, vagarosa, covarde, feroz, repelente. Tinha as mãos secas, aduncas; os dedos dos pés reviravam-se-lhe para dentro, desunhados, medonhos.

O paiol velho formava uma vasta quadra de telha vã de chão de terra, esburacado. A um canto um chalo de paus roliços, com uma esteira, um travesseiro negro e lustroso, umas traparias imundas: era a cama do africano. Por baixo do chalo, no desvão escuro, punha uma nota branca um urinol velho de louça ordinária, desbeiçado, com um arquipélago de incrustações úricas no fundo muito fétido, nauseabundo. Junto do chalo, uma caixa de pinho, cuja fechadura nova, envernizada, destacava-se muito lustrosa na madeira carunchada, enegrecida pela fumaça. Em outro canto, fronteiro ao chalo, sobre uma mesa coxa, um oratório vetusto, de gonzos enferrujados, gastos, roído de ratos em vários lugares, muito ensebado. Pelas paredes, saquinhos de boca amarrada, samburás, porungas de pescoço, guampas de boi, cartolas antiquíssimas, sobrecasacas arcaicas, de três pontas na lapela, do tempo do rei. Por todo o chão, abóboras, pepinos maduros, espigas de milho com casca, cabos de instrumentos de lavoura, cepos de madeira, cascas de ovos, talos de couve, montes de cisco.

A porta estava apenas cerrada: abriu-se e entrou uma negra ainda moça, magra, baixinha, de olhos fundos, olhar febril. Estava vestida de cores muito espantadas, saia amarela, casaco vermelho. Tomou a bênção a Joaquim Cambinda, e foi sentar-se em silêncio junto do fogo.

Um a um, vieram outros pretos e pretas. Entravam, davam louvado ao velho, e, silenciosos, acomodavam-se sobre cepos, ao pé do fogo: ao todo dez.

Quando completo esse número, Joaquim Cambinda disse:

—Féssa póta.[2]

A negra que primeiro chegara levantou-se, cumpriu a ordem, voltou a sentar-se em seu lugar.

Reinou silêncio por largo espaço.

Fora ouvia-se o coro retumbando na noite:

« Eh! Pomba! eh! »
Joaquim Cambinda acendera um cachimbo de longo canudo, e fumava tranquilo, sem parecer dar fé dos circunstantes.

Cerca de meia hora levou absorto, com os olhos cerrados meditando, cochilando, a puxar fumaças, morosamente, preguiçosamente.

Quando se consumiu o carrego do cachimbo, sacudiu as cinzas, bateu-o bem, cuidadosamente, soprou-lhe o canudo, encostou-o à parede. Ergueu-se e, lento, titubeante, monstruoso, caminhou para o oratório, chegou, abriu-lhe as folhas da porta de par em par, tirou para fora duas velas de cera que estavam dentro, em castiçais de latão, riscou fósforos, acendeu-as, iluminou o interior do nicho, revestido de papel de prata, mareado.

Dois eram os divos desse e sórdido laranjo: um São Miguel de gesso, cambuto, retaco, muito feio, muito pintado de excretos de moscas; e um manipanço, tecido inteirinho de cordas finíssimas de embira, hediondo, pavoroso, mas admirável pelos detalhes anatômicos, estupendo como obra de paciência.

Os negros ergueram-se todos, reverentes.

—Zelómo, disse Joaquim Cambinda, ussê penso bê nu quê ussê vai fazê, lapássi?

—Penso, mganga.

—Intonsi, ussê qué mêmo si rissá ni rimanári ri San Migué rizáma?

—Qué, mganga.[3]

Que era muito bom, explicou Joaquim Cambinda na sua meia língua, pertencer um preto à irmandade de São Miguel das Almas, mas que também era perigoso; que quem não tinha peito não tomava mandinga; que o branco queria, por força, saber o segredo dos irmãos de São Miguel, e que para isso surrava o preto, mas que o preto que revelava o segredo de São Miguel morria sem saber de quê. Fez o neófito beijar os pés de São Miguel, fê-lo beijar os cornos do Satanás a ele sotoposto, fê-lo beijar as partes genitais do manipanço; ditou-lhe juramentos solenes, cominou- -lhe penas terríveis no caso de infração. Recebeu dele dinheiro, trinta mil-réis, seis notas de cinco mil-réis, que estavam no bolso da calça, muito enleadas em um lenço de chita muito sujo. Passou à parte doutrinária, entrou a iniciá-lo na arte terrível dos feitiços e dos contras, a dar-lhe meios de matar, de curar. Ensinou-lhe que a semente do mamoninho bravo (Datura stramonium), socada, macerada em aguardente, cega, enlouquece, mata dentro de poucas horas; que osso de defunto, cuja carne caiu de podre, raspado e posto em uma comida qualquer, produz amarelão incurável; que o sapo verde do mato virgem, sufocado a fogo lento, dentro de uma panela nova coberta por testo novo, morre largando uma espumarada branca, com a qual, diluída em água, se produz uma hidropisia necessariamente mortal; que as folhas do jaborandi (Pilacarpus pinnatifolius), pisadas, reduzidas a massa, aplicadas aos sovacos, produzem suares e salivação, curam muitas moléstias; que a raiz de Guiné (Mappa graveolens) e a nhandirova (Fieuillea cordifolia) são contras poderosíssimos para todas as coisas feitas.

Ensinou mais uma infinidade de superstições, medonhas umas, outras muito ridículas: que a mão ressequida de uma criancinha morta sem batismo é um talismã precioso para conciliar o amor; que uma lasca de pedra de ara, furtada a uma igreja, fecha o corpo, toma-o invulnerável a tiros de arma de fogo, a pontaços de arma branca; que café coado com água de banho por fralda de camisa de mulher, ou por fundilho de ceroula de homem, sem lavar, capta a simpatia, amansa o gênio bravo; que corda de enforcado faz ganhar dinheiro ao jogo; que uma figa de raiz de arruda, arrancada em sexta-feira maior, é remédio soberano de quebranto, de mal de olhado; que, para inutilizar um mestre feiticeiro, para tirar-lhe o poder, é preciso surrá-lo com uma vara de fumo e quebrar-lhe na cabeça três ovos chocos.

Passou a curar o neófito, fechar-lhe o corpo, a anestesiá-lo para não sentir castigos físicos: mandou que se despisse, que se pusesse de quatro pés, como uma besta. Murmurando palavras inconexas, frases de engrimanço, untou-o com uma pomada rançosa que tirou de uma latinha muito oxidada, borrifou-o com uma água de uma porunga que desprendeu da parede. Disse-lhe que era preciso repetir a operação em mais seis sextas-feiras, para que o encanto ficasse completo, e o corpo insensível de uma vez.

Para provar com fatos o seu poder, para demonstrar a eficácia dos seus sortilégios, chamou a preta magra, a primeira que viera. Acudiu ela, aproximando-se ligeira, muito contente.

Passou-se uma cena estranha.

Joaquim Cambinda tirou do oratório uma agulha de coser sacos, comprida, acerada e, tomando o braço esquerdo da preta, atravessou-o de parte a parte, em vários lugares, por várias vezes, sem que ressumasse uma pinga de sangue: a paciente olhava curiosa para o braço, sem dar a mínima mostra de dor.

Joaquim Cambinda largou a agulha, afastou-se um pouco, baixou-se, fitou-a de modo particular, por sob a pálpebra, com a pupila brilhante, fixa como a de um réptil.

A rapariga soltou um grande grito, e levou as mãos ambas ao peito.

—A bola! a bola! Sufoco! exclamou.

E caiu desamparada, com os olhos esbugalhados, em alvo, com a boca torta, com os membros contorcidos por convulsões tetânicas.

Estenderam-se-lhe, inteiriçaram-se os braços, os punhos viraram-se para fora; os dedos fecharam-se, penetrando quase as unhas nas palmas das mãos; a língua estava negra e pendente, betada aqui e ali por fios de baba escumosa.

E revolvia no solo, aos saltos, como uma cobra cortada aos pedaços.

De súbito largou um berro entrecortado, gutural, rouco, que nada tinha de humano. Deu uma estremeção, curvou-se para trás, assumiu a forma de um bodoque retesado, quedou-se imóvel , dura, firme, em uma posição impossível: por uma parte tinha o alto da cabeça apoiado ao solo, e, por outra, os dois pés que assentavam em cheio, um pouco separados; ao todo três pontos de apoio.

Os punhos continuavam cerrados, e os braços tesos, ao longo do corpo. A rigidez era cadavérica mais ainda, marmórea, metálica.

Joaquim Cambinda sorria-se medonhamente.

Com uma agilidade que desmentia o seu vagar, o seu tolhimento costumeiro, e de que ninguém o teria julgado capaz, trepou de um salto sobre essa esquisita ponte humana.

Com os olhos reluzentes; como o clarão do fogo a refletires-lhe na calva negra, polida mostrando os dentes amarelos em esgares diabólicos, ele pulava, tripudiava sobre o estômago, sobre o ventre, sobre o púbis da convulsionada.

Ela não se abalava, não se mexia sob o impulso dos pés, sob a ação do peso do monstro: semelhava uma ponte de arco, feita de cantaria.

Joaquim Cambinda desceu, foi a um canto buscar um cabo de picareta, e com ele entrou a bater-lhe duro no peito, no ventre.

Os golpes sucediam-se, crebros, com um som baço, abafado, como se fossem dados em um saco de trapos.

De súbito a vítima desinteiriçou-se, recobrou moleza vital, recaiu no solo pesadamente, em atitude humana.

Inundavam-lhe o rosto grossas camarinhas de suor.

Os assistentes estavam aterrados.

O tétrico hierofante desses horrendos mistérios tinha apagado rapidamente as velas, tinha fechado o oratório, estava de novo silencioso, sentado em um cepo, atiçando o fogo.

A rapariga dormia, dormia profundamente, respirando alto, em estertores.

Fora, o samba continuava; ouvia-se tutucar dos atabaques, e o estrupido surdo dos pés; sonoro, melancólico, plangente, repercutiu o estribilho:

« Eh! Pomba! eh! »



Havia muitos dias que Barbosa partira, e apenas tinha escrito uma carta ao coronel, sobre negócios, na qual lhe dava esperanças de salvar trinta por cento do material comprometido.

A princípio Lenita mandava o moleque à vila todos os dias buscar o correio. Muito antes da hora de ele voltar, já ela estava à porta a espiá-lo. Quando no alto do morro despontava o seu vulto, vestido de algodão branco, sacudido pelo chouto de um burrinho ruço velho, , a pôr uma mancha de alvadia e movediça no amarelo baço do caminho, ela corria à porteira da cerca, a encontrá-lo.

Tomava com mão febril o surrãozinho de sola em que vinha a correspondência, abria-o, e, como só caíssem jornais, perguntava nervosa, trêmula, afagando ainda um resto de infundada esperança:

—E as cartas, onde estão as cartas?

É indescritível o seu desapontamento, a sua cólera mesmo ao ouvir a resposta do moleque, voz lenta, doce, meio cantada, indiferente:

—Carta não tem.

Aborreceu-se, não o mandou mais à vila buscar o correio, e, quando ele, de si próprio, lhe ia entregar os jornais, dizia ela com mau modo:

—Ponha lá em cima da mesa.

Um dia, a destacar-se no emaranhamento de letra miúda de um maço de Jornal do Comércio, viu ela uma carta volumosa, empanturrada. O sangue refluiu-lhe todo ao coração quando reconheceu a letra de Barbosa no subscrito liso, do papel diplomata:


Ilma. Exma. Sra.


D. Helena Matoso.
Vila de ***

Província de S. Paulo.

Arrancou-a violentamente da mão do moleque, deixando cair por terra os jornais, que não curou de erguer: acolheu-se ao seu quarto, apenando-a de encontro ao seio.

Fechou a porta por dentro, à chave; semicerrou as janelas, deixando apenas interstício por onde entrasse a luz necessária. Não queria ser vista, não queria que ninguém a pudesse incomodar.

A tremer, com as mãos tactas, despedaçou o envelope, impacientemente, brutalmente quase.

A carta constava de muitas folhas de papel paquete, pelure d’oignon, cobertas de letra cursiva em todas as laudas, tudo numerado muito em ordem.

Lenita leu:


« Santos, 22 de janeiro de 1887.

« Minha prezada companheira de estudos.


Aqui estou, pela primeira vez em minha vida, no porto de mar de nossa província, em Santos, terra cálida, úmida , sufocante, preferida por Martim Afonso aos feiticeiros arredores da baía de Guanabara. Os reverendos Kidder e Fletcher, no livro que publicaram sobre o Brasil, deram-se a perros para descobrirem a razão da preferência e... ficaram em jejum. O mesmo me acontece. Com efeito, por que teria Martim Afonso preferido isto ao Rio de Janeiro? Tudo levava a crer que era o contrário que se devia dar. Que rasgo de intuição genial, que vista interna miraculosa teria revelado ao colonizador português a superioridade imensa desta zona vicentina em que há terra roxa, em que há um clima sem rival para a lavoura, sobre a orla limítrofe, de terra vermelha, árida, sequiosa ? E o caso é que sem razão aparente, sem dados aceitáveis, houve a preferência, e quê, essa preferência criou a primeira província do Brasil, e quiçá o primeiro dos pequenos estados livres do mundo.

Eu me vejo em apuros, mas é para dizer o que vem a ser esta nesga do litoral em relação à climatologia; é para achar-lhe um termo de comparação.

Falam no Senegal: o Senegal é mais quente, valha a verdade, mas não é tão abafado. Lá respira-se fogo, mas respira-se. Aqui não se respira nem fogo, nem coisa nenhuma. O ar é pesado, oleoso; parece que lhe falta algum elemento, isso quando não há o vento célebre que os noroeste: quando sopra, reina esse semoum africano, esse vendaval-peçonha, Santos é miniatura do inferno: Imagine-se um tufão dentro de um forno.

Os dias são horríveis: se há chuva, o que é raro, o sol queima, esbraseia a terra, a ponto de se poderem fritar ovos sobre as pedras das calçadas. Mas ainda há coisa mais horrível do que dias, são as noites. A atmosfera queda-se, morre. Olha-se para as flâmulas dos navios, imóveis; para as franças das árvores, imóveis; para os leques das palmeiras imóveis. A gente a asfixiar no irrespirável e morto parece-se com os mamouths que se encontram inteiros nos gelos da Sibéria, ou com esses insetos mumificados, há milhares de anos, na transparência dourada do âmbar amarelo. É uma situação aflita; desespera, tira a coragem, dá vontade de chorar, lembra os horrores da Treva de Byron.

A vida aqui é uma negação da fisiologia, é um verdadeiro milagre: não há hematose perfeita, as digestões são laboriosíssimas, sua-se como no segundo grau da tísica pulmonar, como na convalescença de febres intermitentes. Eu, se fosse condenado a degredo em Santos, já não digo por toda a vida, mas por um ano ou dois, suicidava-me.

Mas, que peixes! que esplêndidos mariscos! As pescadas amarelas, uma delícia! as garoupas divinas! Comi em França ostra de Cancale, de Merennes, de Ostende; comi a ostra rosácea do Mediterrâneo, a ostra lamelosa da Córsega: nada disso se pode comparar à ostra de Santos. Tenra, delicada, saborosíssima, ela apresenta essa coloração verde, esbatida, tão apreciada pelos finos gourmets: Moquim Tandon, Valenciennes, Bory de St. Vicent, Gaillon, Priestiey, Berthelot inventaram mil teorias cerebrinas para explica-la, e todavia ela é apenas um sintoma de moléstia, é devida a um estado mórbido, a uma anasarca de molusco.

Tão detestável é a terra, o clima em Santos, quanto apreciável é o peixe, quão superior é o homem: maus fatores a darem produtos excelentes, verdade paradoxal, mas verdade irrecusável, absoluta.

O povo santista é polido, afável, obsequioso, franco: a riqueza que lhe proporciona o comércio de sua cidade fá-lo generoso, até pródigo. E tem nervo, tem brio: é o único povo que eu julgo capaz de uma revolução nesta pacata província. Não há muito em uma questão de abastecimento de água ele deu mostras de si...

Gosto, gosto imenso, em Santos, tanto do peixe como do homem.

Um pouco de estudo agora, para não perder-se o costume, para voltarmos a nossa marotte, à nossa telha.

A costa do Brasil, como muito bem faz observar o conde de Lahure em sua obra sobre este país, oferece desde a ilha do Maranhão até Santa Catarina uma singularidade notável: é debruada em toda a sua extensão por dois fundos altos, por dois arrecifes, que a bordam, que lhe constituem um como molhe natural, que a garantem da impetuosidade elas ondas, continuamente agitadas no Atlântico sul-americano.

Um desses arrecifes, o que está mais chegado à costa, é uma como cinta de rochas que envolve o litoral. Em lugares rasga-se até o fundo do mar; em lugares ergue-se, mas não lhe chega à superfície, em lugares está de nível como ela; em lugares alteia-se sobre ela até grande elevação.

São os recorres dessa penedia que formam todas as embocaduras, todas as baías, todos os portos, todas as abras da costa brasileira.

O segundo aparcelamento, como que uma barbacã, do primeiro, está em distância de oito a quarenta quilômetros da costa, em profundeza irregular, quase sempre fraca.

Os pontos descobertos constituem ilhas, algumas elevadíssimas: as Queimadas, os Alcatrazes, o Monte de Trigo são saliências do contraforte externo; a ilha do Enguá-Guaçu ou de Santos, a do Guaíbe ou de Santo Amaro, a da Moela, a encantadora ilhota das Palmas, são os picos do arrecife interno.

E que serão esses parcéis, essas duas cintas de rochas, senão o aparecimento, as primeiras prostrações, ainda marinhas, da Serra do Mar, chamada aqui Serra do Cubatão, Serra de Paranapiacaba. A cordilheira vem dos abismos do oceano, surde, emerge, levanta-se abrupta, fecha o horizonte com seus visos alterosos, que lá se enxergam ao fundo, cobertos de nuvens, a entestar com o céu, como barbaçãs, como muralhas de um castelo titânico.

Meditemos um pouco; reconstrua o raciocínio o que o homem não pode ver no espaço breve de sua vida curta.

O mar outrora banhava a raiz da serra, e os ventos do largo, encanados pelas bocainas, suscitavam maretas temerosas na planície onde hoje corre, arfando, a locomotiva.

As aluviões, os enxurros da cordilheira, grossos de terra, rolando seixos enormes, em luta com a força das marés que se encrespavam em macaréus, foram depositando sedimentos, detritos, em torno dos cúcleos penhascosos do Guaíbe e do Monserrate. No volver de milhares de séculos o fundo alteou-se, emergiu as ondas, constituiu as vastas planuras do sopé da serrania. Vasas moles ao princípio, lamarões, brejos marinhos, essas planícies foram-se cobrindo de mangues verdes, de siruvas e, depois, de outras vegetações mais alentadas: formaram terrenos sólidos, cortados de muitos esteiros.

A planície santista, bem como toda a planície da costa brasílica, é uma conquista da cordilheira.

E essa conquista continua ainda, continuará indefinidamente, de dia, de noite, a todas as horas, a todos os momentos; lenta, imperceptível mas intérmina, incessante; não há tréguas na luta entre a terra e o mar.

As margens dos esteiros, chamados aqui rios, aproximam-se cada vez mais, o fundo sobre. Pelo canal da Bertioga passou, à larga, a frota de Martim Afonso, passava até há bem pouco tempo o vapor costeiro Itambé: hoje o pequeno rebocador Porchat passa com dificuldade, vira com perigo, por vezes encalha.

Em Santos, junto da cidade, não existe mar no sentido rigoroso do termo: existe um estuário de água salobra, que tende a diminuir, que se vai fazendo raso todos os dias. E não há obviar-lhe. O famoso e protelado cais, caso se construísse, seria um pano quente: melhoraria o porto por uns pares de anos, afinal ficaria inutilizado. O fundo vai ganhando, há de ganhar de uma vez; o passado aponta o futuro. Debalde o oceano refluído, repulsado, concentra as forças sobre outro ponto e ataca S. Vicente. Ganhou uma aparência de vitória, é verdade: sobre a antiga povoação de Martim Afonso, ameaça a moderna: mas lá está o inimigo, a montanha, para detê-lo, para sustá-lo, para repeli-lo, com avalanches de pedras, com médão de lodo.

E há exemplos disso, recentes na história geográfica do velho mundo: Luiz ix de França embarcou-se em Aigues-Mortes, para as Cruzadas, duas vezes, uma em 1248; outra em 1269; Aigues-Mortes demora atualmente a seis quilômetros do mar. A cidade de Adria sobre o canal Bianco, derivativo do Pó, está hoje a trinta quilômetros do Adriático; pois era banhada por ele, foi ela até que lhe deu o nome.

Em tais condições não admira o noroeste, não admira o calor de Santos.

O vento largo, o vento de sudeste encana-se por entre as cordilheiras de Santo Amaro e do Monserrate, revoluteia pela planície, vai à cordilheira e de lá, repelido, reboja, volta, mas não volta só. Vem misturado, confundido com o vento quente do interior, com o vento aquecido nas terras roxas do oeste, aquecido no vasto platêau de Piratininga. É o famoso, o temido, o execrado noroeste.

Ora ajunte-se o calor químico, o calor desenvolvido pela fermentação de incalculáveis massas de detritos orgânicos, em uma planície vastíssima rodeada, quase fechada por montanhas; tome-se em consideração que esse calor só é absorvido em parte mínima pelos paredões da cordilheira, que é refletido, convergido por eles sobre Santos; atenda-se a que a vizinhança do mar tende sempre a elevar a temperatura da atmosfera, e cessará a admiração de que seja isto aqui o quinto cúmulo térmico do globo, de que em assuntos da calidez só preste obediência a Abissínia, a Calcutá, a Jamaica e ao Senegal.

É curiosa Santos como cidade, tem cor sua, inteiramente sua.

As casas são quase todas construídas de alvenaria, com soleira e portas de granito lavrado.

O ar, salitroso pelas emanações marinhas, ataca, rói, carcome a pedra. Não há ver aí superfícies lisas. tudo é áspero, caraquento, semidecomposto.

Sobre grande parte dos telhados viceja uma vegetação aérea, forte, vivaz, gloriosa.

Vista do mar, do estuário, a cidade é negra: black town lhe chamam os ingleses.

Os enormes vapores transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos carregadores austríacos, as feias barcas inglesas e americanas de costado branco, os mil transportes de todas as nações, entram pela ria, encostam-se à praia, varam quase em terra, afundam as quilhas no lado negro, constelado de cascas de ostras, de ossos, de cacos de louça, de garrafas, de latas, de ferros velhos, dessas mil imundícies que constituem como que os excrementos de uma povoação. Comunicam com a terra por pranchões lisos, ou canelados a tabicas.

Pelas ruas vai e vem, encontra-se, esbarra-se um enxame de gente de todas as classes e de todas as cores, conduzindo notas de consignação, contas comerciais, cheques bancários, maços de cédulas do tesouro, latinhas chatas com amostras de mercadorias. Enormes carroções articulados, de quatro rodas, tirados por muares possantes, transportam da estação do caminho de ferro para os armazéns, e deles para as pontes, para o embarcadouro, os sacos de loura aniagem, empanturrados, regurgitando de café. Homens de força bruta, portugueses em sua maioria, baldeiam-nos para bordo, sobre a cabeça, de um a um, ou mesmo dois, em passo acelerado, ao som, por vezes, de uma cantiga ritmada, monótona, excitativa de movimento como um toque de corneta.

Nos armazéns, vastos cimentados, manobrando pás polidas, gastas pelo uso, batem o café, fazem pilhas, cantando também.

E não deixam de ter cena elegância bárbara, com um saco vazio, sobre a cabeça, à laia de capelhar, moda árabe, talvez reminiscência inconsciente atávica.

Na praia, a poucos metros da água, um como mercado pantopolista: sobre mesas sólidas, de mármore, estendem-se alinhadas, com reflexos de aço, de prata, de ouro, os peixes admiráveis do lagamar e do alto — as tainhas gordas, de focinho rombo; os paratis que são diminutivos delas; as corvinas corcovadas, pardas; os galos espalmados, magros; os pargos de dentes e de beiços redondos, carnudos; as pescadas do alto, fulvas, enormes; os linguados, vesgos, delicados; as solhas, linguados gigantescos, macias, chatas; as garoupas, de cor de ferrugem, de olhos esbugalhados, atarracadas, escondendo sob formas brutas, um mundo de delícias gastronômicas; as pescadinhas brancas, argênteas, com um fio de ouro verde a sulcar-lhes os flancos os bugres lisos, visguentos, feios; os camarões, brancos, arroxados, com longas barbas, em rodas, sobre tampas de vime; os caranguejos, pelados, morosos, batendo uns nos outros a couraça sonora; os siris azulados...

Em torno a casa, sob os beirais do telhado, sob toldos de pano, ao ar aberto, pilhas de laranjas, de ananases, de melancias, de goiabas, de cocos, de cachos de bananas, mil espécies de frutas em uma abundância fastidiosa, desanimadora, com um cheiro enjoativo de madureza passada; grãos, legumes, hortaliças, raízes, ervas de tempero, tomates, pimentas; quadrúpedes e aves, domésticas e selvagens, leitões, quatis, perus, tucanos; conchas, caramujos, esteiras, cordas, quinquilharias, uma babel, um bric-à-brac infernal.

Às três horas começa de cessar o movimento: a população emigra para São Vicente e para a Barra. À tarde a cidade está silenciosa, deserta, morta. Há todos os dias uma transição crua, brusca, da agitação para o marasmo, que dá tristeza.

Eu subi ao Monserrate.

É uma eminência de cento e sessenta e cinco metros, quase a prumo, coroada por uma igrejinha branca, o que se pode imaginar de mais pitoresco, de mais singelamente grandioso, de mais encantador.

Sobe-se por um caminho acidentado.

O que se vai desenrolando aos olhos durante a ascensão é simplesmente maravilhoso. A planície estende-se ao longe, nivelada pela natureza, coberta de uma alcatifa de mangue; a cidade, em quarteirões regulares, paralelogramáticos, ocupa o sopé do morro, betada de ruas de calçamento pardo, manchado aqui e ali por maciço verde de árvores, por uma palmeira esguia; ao fundo, de um e outro lado a serra do continente; fronteiras as colinas abruptadas de Santo Amaro. O ancoradouro, o pego do Canehu e outros largos do estuário semelham chapas de aço polido, com as quais põem notas de vários tons os pontões desgraciosos, os navios que estão sobre ferro. As canoas, os escaleres resvalam como insetos ligeiros; uma outra vela pica de branco a escuridade metálica da superfície da água, e o sol ilumina tudo com sua luz dourada muito suave.

Os esteiros embebem-se pela verdura fofa dos mangais, um deles, muito sinuoso, afunda-se visível por espaço longo, fraldeia a colina cônica chamada Monte Cabrão, some-se, reaparece muito longe, refletindo a luz do sol, torna a sumir-se. É o canal histórico da Bertioga.

À direita uma imensidade azul que parece vir do infinito, que dir-se-ia um desdobramento do horizonte, avança arfando, em estos chega, beija a praia, morre em uma ourela de espuma alva, móvel, murmurosa... Salve, oceano, alma pater, laboratório da vida terráquea, povoador do planeta!

Ah! Lenita! imagine: o oceano — a força, o ataque; a terra — a firmeza, a resistência; o ar — hematose, a vida; o sol — o calor, a luz, a fecundação, tudo em porfia de prodigalidades, a construir, a ornar um cenário vasto de struggle for life, de luta pela existência, no qual se debatem, se fogem, se perseguem, se matam, se devoram todos os seres da criação, o zoófito, o molusco, o entomazoário, o vertebrado!

Aqui, nestas alturas, sob a imensidade do céu, a dominar a imensidade das águas é que sente-se grande, é que sente-se orgulhoso o antropóide falante que arranca a esponja do abismo, que paralisa a força incalculável do cetáceo , que fulmina a andorinha perdida na amplidão, que avassala o oceano, que escraviza o raio, que rasga os véus do espaço, que desvenda os mistérios do infinito!

Oh! eu a queria, aqui, junto de mim; eu queria ler-lhe a fixidez concentrada do olhar, no descoramento de face a profundeza da impressão que em espírito como o seu produz uma cena como esta!

..............................

Paulo minora canamus; agora terre à terre.

Esta carta vai um pouco de arrepio com as leis da cronologia; eu inverti a sucessão dos fatos, comecei pelo fim, falei de Santos, e calei a viagem.

Faço amende honorable, vou reparar a falta.

Até a capital nada havia para mim de novo: conheço de há muito todos os caminhos de ferro, todas as estradas de rodagem que a ligam ao interior da província; estudei bem e até com interesse porque dela sou acionista, a estrada de Ferro Leste, impropriamente chamada Estrada do Norte.

Da capital a Santos foi que rolei em pleno desconhecido, foi que se me deparou assunto novo de estudo.

Os campos famosos de Piratininga constituem um platêau que coleia suave, em outeiros mansos, emoldurado à direita pelos cabeços longínquos da Serra do Cubatão, à esquerda pelos visos azulados da Cantareira, pelos picos verdoengos do Jaraguá.

De leste a oeste, um pouco ao norte da cidade, rola o Tietê profundo, negro, taciturno, formando um vale extensíssimo, muito largo.

A conformação atual desse vale, a turfa pantanosa que o constitui em grande parte, o alagamento anual que nele se opera, tudo atesta que ele foi em tempo um lago enorme, sinuoso, semeado de ilhas, um mar de água doce, que ia talvez até Mogi das Cruzes.

A serra da Cantareira e a vertente norte da serra do Cubatão deram batalha aluvial ao mediterrâneo doce, venceram-no, entupiram-no: o vale do Tietê é a conquista. As correntes de águas perenes conglobaram-se, aunaram-se, cavaram leitos, formaram os rios que hoje retalham a planície.

Vi de relance o casarão que se está fazendo para comemorar independência, ou melhor, para comemorar... por que não dizê-lo ? para comemorar o desarranjo funcional que levou o Senhor D. Pedro de Bragança e apear-se ali, às quatro horas da tarde do dia 7 de setembro de 1822.

Não há ver nestas paragens a flora maravilhosa das nossas zonas do oeste, os perovões, as batalhas enormes, os jequitibás de cinco metros de diâmetro: a vegetação arborescente é enfezada, baixa, quase anã. Não é basta, contínua: forma reboleiras, restingas, capões, ilhas de verdura, no amarelado pardo do campestre interminável.

Esta região é considerada estéril, maninha: nada mais injusto. Verdade é que não vinga aqui o cafeeiro, que a cana é somenos a de Capivari e mesmo a de Santos, que o algodoeiro não se pode comparar com o de Sorocaba; mas, por Deus! nem só café, açúcar e algodão é riqueza.

A vinha medra de modo assombroso: com uma cultura inteligente, com uma poda antecipada, poderia ela produzir em princípios de dezembro, evitando as chuvas de janeiro que lhe águam os bagos, que lhes deturpam os racimos. Em São Caetano, em terras outrora baldias, de que ninguém fazia caso, há vinhedos formosíssimos plantados por italianos. A vista alegra-se com a simetria das parreiras, o coração rejubila com a idéia de uma prosperidade imensa, geral, em futuro não remoto, por todos os ângulos de nosso... de nossa província eu ia escrevendo estado.

As hortaliças são enormes: um dia destes vi eu uma couve vinda de São Paulo que era um monstro de desenvolvimento: tinha folhas de cinquenta centímetros de diâmetro menor; media-lhe o caule muito mais de dois metros.

E por que não há de se cuidar do trigo? os antigos cuidaram com sucesso: em São em São Paulo comeu-se muito pão de trigo da terra. Ninguém ignora o que a agricultura científica tem feito das landes infecundas da Gasconha. Pois os campos de Piratininga não admitem confronto com as landes da Gasconha: são-lhes infinitamente sublimados.

E a indústria pastoril? Que riqueza imensa a se oferecer espontânea!

De São Bernardo em diante a planície muda de aspecto. Os capões, as restingas vão-se convertendo em um matagal basto, contínuo, verde-negro. Aqui e ali, no dorso de uma colina, no cabeço de um outeiro, rubro, semelhante a uma escoriação, serpeia o leito de um caminho. Na chã que se vai gradualmente alteando destacam-se as gramíneas, moitas de plantas baixas, de folhas escuras, de flores roxas, muito grandes.

De um e de outro lado do trem perpassam , fogem sombras compactas, fortes: são os primeiros topes da serra. Em vários lugares desnuda-se o granito lavado pelo enxurro, arrebatado pelas brocas do mineiro, esfacelado pela marreta do britador.

Em todas as árvores vêem-se parasitas, de flores escarlates, de folhas lustrosas.

A máquina, arfando, em carreira vertiginosa, arrastando o tender, arrastando a longa cauda de carros, triunfante, rumorosa, sobe, galga, vence, domina, salva o declive áspero, rola em terreno plano. O ar torna-se mais fino, mais úmido, a luz mais viva, mais mordente.

À esquerda, rápidas, como que levantadas, emergidas subitamente, alteiam-se montanhas, visos, picos, paredões, agruras, despedaçamentos de cordilheira.

À direita, em anfiteatro pelo dorso escalavrado de uma eminência, casebres miseráveis; sobre o rechano uma igrejinha rústica, desgraciosa, malfeita, com três janelas, com dois simulacros de torres, a picar de branco o azul do céu e o escuro da mata.

É o alto da serra.

Em frente, a alguns decâmetros, abre-se, rasga-se um vão, uma clareira enorme, por onde se enxerga um horizonte remotíssimo, um acinzentamento confuso de serras e céu, que assombra, que amesquinha a imaginação.

Começam aí os planos inclinados por onde, sob a ação das máquinas fixas, sobe e desce a vida social da São Paulo moderna, os carros de passageiros e os vagões de mercadorias.

Ao ganhar-se o declive, ao começar-se a descida, a cena torna-se grandiosa, imponente.

De um lado, peno, ao alcance quase da mão, alturas imensuráveis, talhadas a pique, cobertas de liquens, de musgos, tapando, furtando o céu à vista; pelos grotões desses fraguedos rolam cascatas sussurrantes, alvas, espumosas, já esfuziando em filetes, já encanando-se em jorros, já espadanando em toalhas.

Do outro lado, ao longe, a amplidão, a serra, em toda a sua magnitude selvática.

Às montanhas que entestam com o céu sotopõem-se montanhas que vão também assentar sobre montanhas. Em paredões aprumados umas, arredondadas em cabeços outras, em pirâmides regularíssimas ainda outras, elas abatem, acabrunham o espírito com a enormidade de sua massa. Dir-se-ia que foi aqui a escalada dos céus pelos gigantes, que se feriu nestas paragens a pugna tremenda em que os filhos do céu sufocaram a golpes terríveis, de toda a sorte de armas, a tiros de raios, a arremesso de montanhas inteiras, a revolta tremenda dos filhos da terra.

Pelo sopé dessas moles imanes, corre um vale profundíssimo, a que vão ter roladores medonhos, algares vertiginosos, precipícios assassinos.

Uma vegetação abeberada de umidade, cerrada, basta, emaranhada, inextricável, cobre, afoga o dorso da serrania. Não há ver aqui os picos escalvados das cordilheiras do velho mundo: tudo está coberto por um tapete anegrado, fosco: de longe parece relva, ao perto são árvores desconformes.

Nesse verdejar sombrio a canaleira de folhas avermelhadas põe notas alegres, claras: o ipê florescido pica-o de amarelo cru. As palmeiras, em uma abundância monstruosa, incrível, obscena acentuam na massa confusa o desenho saliente de suas copas estreladas.

Ao longe, na crista cerúlea, indistinta, do mais elevado contra-forte, um floco longo de neblina branqueja muito vivo, como o véu de uma uranide colossal, roto, esgarçado na doce violência de um debate amoroso.

Perto, a tiro de pedra, árvores esbeltas ostentam, no mesmo galho, flores brancas e flores roxas, de pétalas carnudas, cetinosas. A embaúva de folhagem escura e rebentos vermelhos ergue ousada o seu tronco esguio, branquicento.

Os raios do sol acendem, na fronde das árvores vizinhas, cintilações multicores, atiram sobre as cascatas punhados de diamantes: ao longe absorvem-se, não têm reflexão.

Ao findar-se o quarto plano inclinado , primeiro a contar do alto, antolha-se o viaduto da Grota Funda, a vitória do atrevimento sobre a enormidade, do ferro sobre o vazio, da célula cerebral sobre a natureza bruta.

Imagine, Lenita, um algar vasto; mais do que um algar vasto, uma barroca enorme; mais do que uma barroca enorme, um abismo pavoroso, atravessado de parte a parte por uma ponte, que parece aérea, apoiada em colunas altíssimas, tão esguias, tão finas, que, vistas em distância, semelham arames.

Ao contemplar-se do meio da ponte essa vacuidade assombrosa, os ouvidos zunem, a cabeça atordoa-se, a vertigem chega, vem a nostalgia do aniquilamento, o antegosto do nirvana, o delírio das alturas e faz-se mister ao homem uma concentração suprema da vontade para fugir ao suicídio inconsciente.

À medida que se desce a natureza muda; o ar toma-se espesso, pesado, quente, carrega-se de emanações salitrados; começa de aparecer a vegetação do litoral, alastram-se pelas encostas vastíssimos bananais.

Uma prostração de rocha faz um cotovelo no plano inclinado da raiz da serra: ao dobrar-se esse cotovelo, dá-se uma matação de cena em peça mágica. A paisagem abre-se, rasga-se de vez. Por entre contrafortes, por entre alturas de serrania, que se erguem de um e de outro lado, como bastidores titânicos, alonga-se a perder de vista uma planície extensa, chata, lisa, nivelada, pardacenta. De dois outeiros à direita que, simétricos, redondos, suaves, emparelhados, lembram os seios de uma virgem, parte uma linha horizontal, muito escura, muito tersa; é o mar, é o oceano , cuja vista dá nome a serra - Paranapiacaba.

Um como sulco estira-se pela planície, comando aqui e ali superfícies espelhantes de água sossegada: por esse sulco vai e vem enorme, acaçapada, com um desconforme gliptodonte, uma coisa chata, que desliza rápida, vomitando fumo: o sulco é a linha férrea; o gleptodonte, a locomotiva.

Embaixo, no começo da planície, divisa-se um amontoamento de vagões que semelha um bando de hipopótamos adormecidos ao sol.

Quando o homem pára e contempla das alturas o escalejar da serrania, o vale cortado de algares, a planície, o litoral, a linha do mar a confundir-se com o céu; quando atenta nas forças enormes que entram em jogo no âmago e na crosta da terra, na água que a banha , no ar que a comprime, na luz que a ilumina, na vida que a rói; quando por generalização alarga o quadro e considera o planeta inteiro; quando dele passa para os planetas irmãos, para o sol, centro do sistema; quando conclui, por indução irrecusável, que esse sol, esse centro é por sua vez lua, satélite humilde de um astro monstruosamente imane, afogado na vastidão, desconhecido, incognoscível para todo o sempre; quando pensa que ainda esse astro gravita em torno de um outro que gravita em torno de um outro; quando reflete em que tudo isso é uma cena minúscula do drama da vida universal, e que o teatro espantosamente incompreensível dessa evolução intérmina é uma nesguinha insignificante da imensidade do espaço, o homem sente-se mesquinho, sente-se pó, sente-se átomo, e, vencido, esmagado pelo infinito, só se compraz na idéia do não ser, na idéia do aniquilamento.

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A estrada de ferro inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento grandioso da indústria moderna.

De Santos a São Paulo percorre ela uma distância de 76 quilômetros.

Todas as obras de arte dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas.

Até à raiz da serra a distância é de 21 quilômetros: há três pontes, uma das quais notabilíssima, sobre um braço de mar chamado Casqueiro. Mede ela 152 metros, tem dez vãos iguais, assenta sobre pegões robustíssimos.

Da raiz da serra até o rechano do alto, contam-se oito quilômetros. A altura é de 793 metros, o que dá um declive quase exato de dez por cento.

Como se calcam esses desfiladeiros, essas agruras vertiginosas?

De modo simples.

Divide-se a subida da serra em quatro planos uniformes de dois quilômetros cada um. Para uma tração, empregou-se um sistema adotado em algumas minas de carvão da Inglaterra. Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de fios de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um sobe, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o lugar do plano em que se acha o trem, indica o momento de encontro de ambos eles. Um brake de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantaneamente, e um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas máquinas fixas. O cabo, resfriado ao sair por um filete de água, corre sobre roldanas que se revolvem veniginosas, com um ruído monótono, metálico, por vezes forte, por vezes muito suave.

O serviço é regular e tão bem feito, que em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir tanto para a subida como para a descida. Funciona a linha há mais de vinte e um anos e ainda não se deu um só desastre. Pasmoso, não?

Em cada uma das quatro estações de máquinas fixas há cinco geradores de vapor, três dos quais sempre em atividade. As grandes rodas estriadas que engolem e soltam o cabo, as bielas de ferro polido que as movem, os mancais de bronze, os excêntricos em que o ferro rola sobre bronze com atrito doce, tudo está limpo, luzente, azeitado, funcionando como um organismo são. Chaminés enormes, que se enxergam de longe, feitas de cantaria lavrada em rústico, atiram aos ares balcões de fumo, enovelados, densos.

Os desbarrancamentos são remendados a alvenaria; todas as águas perenes, todas as torrentes pluviais estão dirigidas, encanadas, por calhas de pedra, de tijolos, de juntas tomadas, por bicames de madeira. Há encanamentos subterrâneos feitos em granitos, gradeados de ferro, que fazem lembrar os calabouços dos solares feudais.

Na serra de Santos a obra do homem está de harmonia com a terra em que assenta; a pujança previdente da arte mostra-se digna da magnitude ameaçadora da natureza.

O viaduto da Grota Funda é simplesmente uma maravilha. Mede em todo o comprimento 715 pés ingleses, mais ou menos 215 metros. Tem 10 vãos de 66 pés e um de 45 entre duas cabeceiras de cantaria; assenta sobre colunatas de ferro engradadas (treillages) e sobre um pegão do lado de cima. A mais elevada colunata, contando a base, tem 185 pés, 56 a 57 metros. A inclinação é a inclinação geral, dez por cento ou pouquíssimo menos. Começou-se esta obra assombrosa em 2 de julho de 1863; em março de 1865 assentaram-se-lhe as primeiras peças de ferro; em 2 de novembro do mesmo ano atravessou-a o primeiro trem, 2 de novembro, dia de defuntos, os ingleses não são supersticiosos.

Uma empresa hors ligne, esta companhia de estrada de ferro. O resultado foi além da mais exagerada expectativa otimista . O governo geral garantiu cinco por cento sobre o capital empregado na construção, e o provincial dois. De há muito, porém, que a companhia prescindiu de garantia, e que distribui dividendos fabulosos.

Ganham, ganham muito dinheiro, ganham riquezas de Creso os ingleses, e merecem-nas. O progresso assombroso de São Paulo; a iniciativa industrial do paulista moderno; a rede de vias férreas que leva a vida, o comércio, a civilização a Botucatu, a São Manuel, ao Jaú, ao Jaguára, tudo se deve à Saint Paul Rail Road, à Estrada de ferro de Santos a Jundiaí.

Rule, Britannia! Hurrah for the English! já que o nosso governo não presta para nada.

Vai longa esta carta: preciso é pôr-lhe termo.

Estirei-me, porque escrevendo-lhe afigura-se-me tê-la ao meu lado, e eu desejei prolongar o mais possível a figuração...

Estou velho, e todo o velho é mais ou menos autoritário e pedante. Ora a Lenita pôs-se no vezo de condescender com o pendor da idade, escutou-me, deu-me atenção, puxou-me pela língua... Aguente-se, pois, com a caceteação, com a seca para falar classicamente; a culpa é sua.

Não sinto saudade da nossa convivência, de nossas palestras aí no sítio: a expressão saudade tem poesia demais e realismo de menos. O que há é necessidade, é fome, é sede da companhia de quem me compreenda, de quem me faça pensar... da sua companhia.

Imagine que eu levo todo o santo dia e parte da noite a falar só em café, mas em café sob o ponto de vista comercial, em embarques, em saques, em descontos... E ai de mim, se o não fizer: aqui quem se afasta deste tema, quem não discute comércio de café, passa por idiota.

Uma explicação necessária, antes de terminar. Fui minucioso, talvez demais, em descrever a serra, os planos inclinados, as obras de arte da companhia inglesa. Como diabo, fiz eu tanta observação, onde fui apanhar tantos dados? Em uma descida rápida, vertiginosa, em uma descida pelo trem? Não era possível. Uma inspiração, uma comunicação espírita? Nada disso. Confesso com modéstia que são humanos os meios de informação de que disponho: a ciência infusa foi privilégio dos apóstolos, de Santo Tomás, de Ventura de Raulica, e ainda hoje o é do abade Moigno e do imperador do Brasil. A mim me não armarão processo esses santos personagens por empecer-lhes no direito. Nem mesmo me posso gabar de uma simples sugestão mental, de um reles ensinamento hipnótico. Pairo em regiões menos elevadas, aprendo o que sei de modo mais grosseiro. Um dia destes, nada tendo aqui a fazer, fui ao alto da serra e de lá vim a pé, vendo, observando, estudando. Aí está como foi.

Fico anelando pelo dia que julgo próximo de ir dar-lhe um hands-shake forte, enérgico, à inglesa.

Manuel Barbosa...

Lenita leu a carta com impaciência: os detalhes, os dados exatos, as apreciações científicas de Barbosa sobre Santos, sobre a serra irritavam-na: passou por aquilo tudo rapidamente, nervosamente, sem aprofundar, como quem percorre um catálogo. Procurava o que houvesse de íntimo sobre a sua pessoa, qualquer coisa que revelasse, que atraiçoasse o estado afetivo do espírito de Barbosa.

Demorou-se muito na leitura dos trechos finais: teve um prazer vivíssimo, indizível ao ler que Barbosa a supunha, a figurava ao lado de si, e que se prazia nessa figuração. Repetiu as frases silabificando, quase deletreando, com o olho esquerdo fechado, com a atenção concentrada. Gostou imenso da maneira brusca por que terminava a carta.

O semidelíquio erótico que tivera no quarto de Barbosa fora a confirmação de uma suspeita: reconhecera que amava a esse homem, loucamente, perdidamente.

Ante a brutalidade do fato, ao pungir gozoso e acerbo da revelação da carne, revoltara-se com orgulho, esquivara-se em último assomo de resistência, evitara a Barbosa na véspera da partida.

A insônia da noite, o vácuo enorme que a ausência de Barbosa lhe produzira em volta, a necessidade fatal em que se reconhecera de tê-lo junto de si para viver, desejo dele que a mordia, o ganho de causa que levava esse afeto novo sobre o amor profundo que votara ao pai, a Lopes Matoso; que tudo isso a convencera de que não podia recalcitrar, de que a resistência lhe era impossível.

Com a resolução rápida dos espíritos decididos, aceitara o jugo, submetera-se à paixão, confessara-se vencida.

Era o mais difícil.

Em curvar-se, de si própria é que ela tinha vergonha, uma vez cônscia de estar curvada, pouco lhe fazia que o mundo inteiro a visse nessa posição.

Amando, mas sem estar de todo vencida, lutaria, defender-se-ia até à morte contra o que desejava, isso em uma alcova, em um recinto vedado a todos os olhos; entregue, derrotada perante o seu foro íntimo, avaliava em nada o escândalo, desprezava a opinião, era capaz de submeter-se ao vencedor em público, no meio de uma praça, como as prostitutas de Hyde-Park.

Amava a Barbosa confessara-o a si própria: era capaz de lho dizer a ele, era capaz de o proclamar à face do mundo.

E indignava-se, achava-o tímido, queria que ele a adivinhasse, que lhe retribuísse o amor, que sentisse por ela o que ela sentia por ele, que se confessasse por sua vez subjugado, cativo. Amar ela, Lenita, a um homem, e não ver esse homem a seus pés rendido, aniquilado, absorvido?! Impossível.

Releu a carta, mas releu com atenção, meditadamente estudando. As apreciações originais de Barbosa, o seu modo profundamente individual de ver as coisas, o entusiasmo comunicativo a que se entregava por vezes, tudo isso reproduzia-o, aviventava-o no escrito, ao ponto de que a Lenita parecia-lhe tê-lo junto a si, ouvir-lhe a voz, sentir-lhe o hálito.

As teorias sobre a formação da planície santista e sobre o enchimento do vale do Tietê fizeram-na pensar, recordar-se. Tinha estado uma vez em São Vicente, a banhos: conhecia Santos, conhecia a Serra. Os fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles oferecia eram plausíveis.

Lenita admirava-lhe cada vez mais a flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava, que para tudo tinha criterium, que de tudo decidia com justeza.

A admiração pelas faculdades intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia-se mansamente, naturalmente, para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico, que a dementava a ela, que a punha fora de si.

Compreendia então perfeitamente a história bíblica da mulher de Putifar. A vista segura que o escravo hebreu José revelara ter das coisas, a sua alta capacidade administrativa, a sua intransigência, a sua energia, a sua modéstia, prendera a atenção da formosa egípcia; mirando-lhe as formas franzinas, esbeltas de efebo, deixara-se cativar e, ardente, franca, provocara-o, agarrara-o.

E Lenita entusiasmava-se por essa mulher tão estigmatizada em todos os tempos, e todavia tão adoravelmente carnal, tão humana, tão verdadeira: compreendia-a, justificava-a, revia-se nela.



O feitor preto viera dizer a Lenita que uma fruiteira na mata em frente estava ajuntando muito pássaro.

A moça mandou que abrisse uma picada desde o carreadouro até à fruiteira, fez limpar a sua espingardinha Galand, carregou duzentos cartuchos e, no dia seguinte, de madrugada, seguida por sua mucama, foi pôr-se à espera.

Não tinha caído muito orvalho, e grande era a cerração.

O caminho coberto por uma camada veludosa de areia fina, amarelenta, embebiase pela neblina espessa que afogava a terra. A selva formava um maciço negro, compacto. Uma ou outra árvore isolada no pasto transparecia por entre o nevoeiro, como um espectro gigantesco.

Sentia-se um frio seco, picante, sadio. De repente Lenita percebeu o que quer que era , retouçando na areia levemente úmida do carninho, a vinte metros de distância.

Sustou o passo, levou a arma à cara e, rápida, quase sem pontada, desfechou.

— Que foi que atirou, D, Lenita? perguntou a mulata.

— Vá ver, que lá está ainda bulindo, volveu a moça, e fazendo gangorrear o cano da arma, meteu-lhe novo cartucho.

Com efeito, um animal qualquer estrebuchava convulso, raspava a areia, atirava-a longe.

A rapariga aproximou-se cheia de receio, retraindo o corpo, estendendo o pescoço.

É candimba! gritou jubilosa, e, baixando-se, apanhou uma soberba lebre que, ferida na cabeça, ainda não acabara de morrer.

Lenita tomou da rapariga a macia alimaria, examinou-a com volupia orgulhosa de caçadora apaixonada e triunfante, afagou-lhe o pelloo sedoso, passou-o de encontro ao rosto; depois meteu-a em uma bolsa de malhas, entregou-a com cuidado à mulata.

Ia clareando o dia; rareava o véo de neblina. O negror indeciso da mata transmutava-se em verdura. Distinguiam-se as moitas festivas das taquáras, os penachos luzidios dos palmitos, as copas opulentas das paineiras, revestidas literalmente de um tapete côr de rosa, pela infloração precoce.

Perfumes agudos de orkhideas fragrantes, refrescados pelas brisas matutinas, deliciavam o olfacto, sem irritar e sem adormentar os nervos.

Ouvia-se o gorjear dos passaros, o zumbir dos insectos que, em hymno festivo, saudavam o despontar do dia.

Lenita e a mucama penetraram na matta: ahi tudo era escuro, tudo era treva. O diminuto orvalho, cahido durante a noite, se condensára nas folhas, e pingava, batendo docemente, surdamente, na camada de folhas seccas que juncava o solo.

Os pulmões hauriam à larga o oxygenio puro, exspirado da vegetação ambiente.

As duas companheiras caminharam pelo largo carreadouro, até que chegaram a uma peroveira alta, de juncto a qual partia a picada, entranhando-se pelo matto, á esquerda. Por ahi enveredaram, seguiram, até que pararam juncto de uma canelleira esguia, em fructificação temporã.

Dominava o silencio, quebrado apenas pelo gottejar manso e raro da orvalhada tenue.

Lenita mandou que a mucama se afastasse um pouco, que se sentasse, que se escondesse juncto de outra arvore qualquer. Olhou para cima.

A folhagem da canelleira recortava-se indecisa no céo obscuro: de subito accentuou-se, amarellou em partes, como si a tivesse borrifado um jacto de ouro liquido; beijára-a o primeiro raio de sol do dia nascente.

Por cima já luz, vida; por baixo ainda escuridade, mysterio.

Uma sombra escura cortou veloz o espaço: era um jacú guassú. Pousou, balançando-se, em um dos galhos baixos. Ao assentar colheu vagaroso as asas que trazia pandas, librou-se ainda nellas, fechou o leque formosissimo da longa cauda, estendeu o pescoço, cauteloso à direita e à esquerda.

Após momentos de observação, trepou pelo galho, marinhou aos pulos por entre a folhagem, sumiu-se, surgiu no pino da copa, mostrando, banhada de sol, a sua barbela rubra.

Lenita, pallida de emoção, com o seio a arfar, com os nervos frouxos, sentindo dobrarem-se-lhes as pernas, olhava, contemplava extatica a ave elegantissima.

Fazendo um exforço de vontade, aperrou a arma, ergueu-a lentamente, mollemente, pol-a em mira.

Não desfechou, não teve animo: retirou-a da cara, e poz-se de novo a contemplar o alector.

De repente seus olhos brilharam em um como relampago negro, contrairam-se-lhe as feições, seus dentes brancos morderam o lábio rubro, e, fria, resoluta, ella encarou pela segunda vez a espingarda, fez pontaria, puxou o gatilho, o tiro partiu.

O jacú, fulminado, revirou, despencou, veiu bater no chão com um som baço, abafado.

Saltando como um felino, Lenita empolgou-o tremula de felicidade e prazer; ergueu-o à altura do rosto, soprou-lhe as pennas salmilhadas do peito, queria vêr-lhe os ferimentos. Com volupia indicivel sentia humedecerem-se-lhe os dedos no sangue tepido que escorria.

A arma ainda estava descarregada, quando ouviu-se um vôo forte, sacudido, estalado.

Lenita levantou o olhar.

No mesmo galho, de onde derrubára o jacá, uma pomba legitima fazia brilhar ao sol em reflexos furtacores o seu collo gracioso.

Lenita abriu ligeiro a espingarda, carregou-a, levou-a á cara, fez fogo, e a nova vitima cahiu ferida, pererecando em desespero, nas vascas da agonia.

A mucama, com os olhos brilhantes, com as feições expandidas pelo enthusiasmo, acudiu a metter na bolsa os passaros mortos.

— Uma pomba e um jacú, d. Lenita! exclamou cheia de jubilo.

— Silencio!

No galho fatal um tucano acabava de pousar: virava e revirava, para um e para outro lado, o seu grande bico esponjoso. Era uma maravilha o effeito de suas pennas dorsaes a contrastarem negras com o alaranjado soberbo da gorja, com o vermelho vivo do peito: ao vê-lo ostentando ao sol ardente do tropico os esplendores dos seus matizes, dir-se-ia um ente phantastico, uma flor animada, viva, que viera voando de uma região desconhecida, que se fixára naquella arvore.

Um tiro certeiro de Lenita fel-o tombar, e depois a outro, mais outro e a araçarys, e a pavôs, e a aves de bico redondo — uma carnificina, uma devastação.

Eram quase dez horas: o sol ia em alto, derramando torrentes de luz, enlanguecendo, a beijos de fogo, as folhas largas do cahetê, as folhas cordiformes da periparoba. No céo muito azul esgarçavam-se nuvens muito brancas, e nesse festival de cores alegres punha uma nota negra um corvo solitário, perdido na amplidão.

Fazia calor.

—São horas, já passa até de horas de almoçar, disse Lenita. Vamo-nos embora, amanhã voltaremos.

—Que caçadão, d. Lenita. Dezenove pássaros grandes e uma lebre. Não perdeu um tiro.

—Eu nunca perco tiro, respondeu a moça com fatuidade.

—Então é como eu, disse uma voz por traz de ambas, tambem não perco tiro.

Era Barbosa.

A espingarda cahiu das mãos de Lenita: com o coração relaxado, incapaz de injectar sangue nas arterias, descorada, quasi sem vêr, ella teve de encostar-se ao tronco liso da canelleira, para não tombar desamparada.

—Que é isto, minha senhora; que é isto, Lenita, acudiu Barbosa, segurando-a sollicito.

— Tive um tal susto... murmurou a moça mal recobrada.

— Perdoe-me, fui imprudente. O desejo que tinha de vel-a, o prazer de causar-lhe uma surpresa... perdoe-me, sim?

E tomou-lhe as mãos frias que apertou nas suas.

— Perdoar-lhe ? Si lhe agradeço tanto o ter-me antecipado um pouco o gosto de vel-o. Como poude chegar a esta hora? O trem só passa pela estação da villa ás 3 horas da tarde?

— E’ que vim a cavallo, para ganhar algumas horas. Caminhei a noute toda. Quando cheguei a Jundiahy, hontem, já não alcancei o trem. Tinha de estar lá, à espera, até agora: não tive paciencia.

— Não escreveu, não deu parte de que vinha...

— Eu não esperava terminar os negocios antehontem, como terminei. Os homens estavam teimosos, tinham-se encastellado na sua proposta. De repente, quando eu menos esperava, mudaram de accordo, cederam, acceitaram as minhas condições, e ficou tudo acabado.

— Satisfatoriamente?

— O mais satisfatoriamente que era possível esperar.

— Meus parabens sinceros.

— Obrigado. Mas que mortandade, que São Bartholomeu! Arrazou a passarada. Caspite! Araçarys, tucanos, pombas, sabiacys, um jacú e um serelepe... não, não é serelepe, um candimba, uma lebre, e grande! Sim senhora! E’ uma Diana.

E com ares de amador enthusiasta examinava as peças de caça.

— Diga-me, perguntou-lhe a moça, como se chamam estes passaros verdes, de bico redondo?

— Chamam-se sabiacys.

— No Brasil os psittacidios serão representados sómente por arás e papagaios?

— Em S. Paulo, pelo menos, são.

— Quantas especies temos de papagaios?

— Ao certo, que eu saiba, seis: tuins, periquitos, cuiús, sabiacys, que são estes, baitacas e papagaios propriamente ditos.

— E de arás?

— Quatro: tirivas, araguarys, maracanãs e araras.

— Ao todo, dez?

— Que eu conheço; no sertão pode haver mais.

— Lá ia eu com a minha marotte scientifica! Basta, basta de ornithologia. Deve ter chegado cançadissimo e morto de fome.

— Cansado, não; com algum apetite, sim.

— Pois vamos, vamos almoçar.

— Confesso que almoçarei com prazer.

E seguiram.

Era imensa a alegria de Lenita, a gratidão mesmo em que se achava para com Barbosa por tel-a vindo surprehender na matta, por não tel-a esperado em casa. Sentia-se lisonjeada em seu orgulho de mulher. E mais, Barbosa esquecera ou fingira esquecer os justos, mas injustificaveis arrufos da vespera da partida. Amava e adquirira a convicção de que era correspondida.

No percurso da picada que mundo, que infinidade de pequenos gosos! aqui um tronco podre, deitado, a transpôr; alli, um ramo espinhoso a evitar; uma ladeira ingreme, escorregadia a subir. Barbosa, nessas dificuldades, ajudava-a, tomava-lhe a espingarda, davalhe a mão. Ela deixava-o fazer, acceitava-lhe o auxilio, não porque se sentisse fraca, porque precisasse; mas para dar-lhe a elle o papel de forte, de protetor. Achava uma delicia inefavel em ser mulher para que Barbosa fosse homem. A voz mascula, doce, de Barbosa acariciava-lhe o ouvido, acalentava-lhe o cerebro, envolvia-a em uma como athmosfera de harmonia e amor.

Insensivelmente, sem darem fé da distancia chegaram à casa.

Esperava-os na porta o coronel.

— Com que então não foi difícil encontrar a Lenita, gritou ele.

E atentando na caça: Deixa ver isso, rapariga! Ih! que razoura! No matto não ficou passaro! Esta menina! Olhe, você devia ter nascido homem... e quem sabe se você não é mesmo homem?

Lenita córou até ás orelhas.

O coronel não se deu por achado da inconveniencia.

— Vamos, vamos almoçar, que Manduca deve estar a tinir: fez a loucura de caminhar a cavalo a noite toda. Vamos!

O almoço correu bem, mas terminou desagradavelmente. Quando estavam tomando café com leite, terminação obrigatoria do Almoço rural paulista, entrou na sala uma preta velha, assustada.

— Acuda, sinhô! disse ,Maria Bugra está morrendo!

— Onde está ella? que é que tem? perguntou surpreso o coronel.

— O que ella tem eu não sei. Está ahi na sala de fóra, eu a mandei trazer para ahi.

O coronel levantou-se, sahiu a vêr, afflicto, tropego. Barbosa e Lenita seguiram-no.

Na sala de entrada, sobre uma marqueza forrada de couro, encostando-se a um travesseiro de marroquim que fora encarnado, estava uma preta fula ainda moça.

Estertorava com a face tumefata, com os tendões do pescoço retezados; os olhos protrahiam-se das orbitas; as pupillas enormemente dilatadas tinham feito desapparecer os limbos do iris. Das commissuras dos labios contrahidos e deformados escorriam fios de baba, viscosos, resistentes, translucidos.

O coronel abeirou-se da enferma, tomou-lhe o pulso.

— Veja isto, Manduca, que pensa você?

Barbosa approximou-se por sua vez, procurou sentir o calor da preta na pelle do rosto, encostando-lhe o dorso da mão, achou-a fria; tacteou-lhe o pulso, encontrou-o debil, espaçadissimo; belliscou-a , ella não pareceu dar acordo disso.

— Como principiou esta molestia? perguntou elle á preta que tinha ido dar parte.

— Eh! sinhô moço! Maria estava no paiol, debulhando milho, muito socegada. De repente entrou a queixar de anciedade, levantou, andou vira-virando, entrou a gritar, a fallar as cousas á tôa. Batia com a cabeça, escumava, queria morder gente, parecia mesmo que estava louca. Depois perdeu o sentido, cahiu, ficou assim como está. Eu mandei trazer para aqui, fui chamar sinhô.

— Sim! Faz muito tempo?

— Não, sinhô moço, foi agora mesmo.

— Comeu ella ou bebeu alguma cousa?

— Ella almoçou, há de fazer duas horas.

— Não bebeu nada?

— Bebeu café, uma meia tijella.

— Donde veiu o café?

— Veio da senzalla de pai Joaquim.

— Joaquim Cambinda?

— Sim, sinhô moço.

Barbosa foi ao seu quarto e, após breve demora, voltou com um frasquinho, meio de um liquido claro como agua. Pediu uma colher; trouxeram-lh’a. Chamou a enferma, juncto do ouvido:

— Maria!

A negra não respondeu.

— Maria! repetiu ele em voz mais alta.

A preta tentou sahir do estado soporoso em que se achava, procurou levantar a cabeça, não conseguiu; deixou-a recahir pesadamente no travesseiro, proferindo uns sons inconnexos, semi-inarticulados. De sob as suas roupas exhalava-se um cheiro fetido de materias fecaes.

Barbosa, vendo que nada poderia obter, que a vontade estava alli aniquilada, passou o frasquinho ao coronel.

— Vou abri-lhe a bocca com a colher; vossa mercê despejará dentro o conteudo deste vidro.

— Todo?

— Todo; é uma dose forte de emetico; convem fazel-a vomitar.

Introduziu com algum custo o cabo da colher entre as arcadas dentarias da doente, e, fazendo delle uma alavanca, descerrou-lhe os queixos.

— Agora, meu pae!

O coronel vazou dentro da bocca, entreaberta á força, o liquido todo do vidrinho.

— Engula! gritou Barbosa.

A negra fez um exforço, deu um safanão violento, a colher saltou longe, e o liquido, revessado, caiu sobre a marqueza, correu para o assoalho. A deglutição era impossivel.

— Não será bom mandar chamar o doutor Guimarães?

— Inutil, meu pae; nada ha a fazer neste caso.

— Assim mesmo...

— O doutor Guimarães só poderia estar aqui á noite, e dentro de uma hora a preta já terá morrido.

— Manduca, olhe...

— Sei o que isto é, meu pai; não ha mesmo nada a fazer.

O coronel voltou triste para a sala de jantar; Lenita e Barbosa voltaram com elle.

Sentaram-se juncto de uma uma janella abatidos: a molestia da preta lançára-os em um desanimo profundo, em uma appreensão de vagas ameaças, de perigos desconhecidos.

Entreolhavam-se, não ousando arriscar um dito, uma palavra.

E todavia essa reserva pesava-lhes, era-lhes incomportavel o silencio.

Quebrou-o Barbosa.

— Meu pae, a Maria Bugra morre, e sabe vossa mercê de que morre ella?

— Tenho medo de o saber.

— Vejo que me comprehendeu. Morre do que têm morrido varios escravos aqui na fazenda, morre envenenada.

— È bem possivel.

— Não é possível, é certo. Lembra-se da morte do Carlos, da do Chico Carreiro, da do Antonio Mulato, da Maria Bahiana?

— Perfeitamente!

— Não apresentaram elles os mesmos symptomas que apresentou e está apresentando agora a Maria Bugra?

— Homem, com effeito! Apresentaram.

— Excitação violenta mas passageira, delirio, depois paralysia quase completa, face tumida, conjunctivas injectadas, olhos saltados, dilatação de pupillas, deglutição impossivel, queda de pulso, esfriamento geral, incontinencia de urina e de fezes?

— Exato.

— Pois tudo isso, estou convencido, é consequencia da ingestão de um veneno terrivel, infelizmente muito comum entre nós, a atropina.

— Muito comum entre nós, a atropina?!

— Sim senhor.

— Pois a atropina não se tira da belladona?

Tambem se tira da belladona.

— E onde encontrar a belladona? No Brazil só poderá haver belladona em algum horto botanico.

— Meu pae não conhece aquillo que alli está? E Barbosa apontou para um vasto tracto de terreno, coberto de plantas baixas, escuras, de folhas repicadas, de flores brancas, em forma de trombeta.

— Conheço, respondeu o coronel, é figueira do inferno, mamoninho bravo, um veneno terrivel, dizem. Mas você fallou em atropina.

— Scientificamente a figueira do inferno chama-se datura stramonium; extrai-se della um alcaloide venenosíssimo, a que se chama daturina: Ladenburg, porém, e Schmidt verificaram nestes ultimos tempos que a daturina é pura e simplesmente a atropina, a mesma letal atropina que se obtem da belladona.

— E a sua convicção é...

— Que Maria Bugra morre envenenada por uma decocção fortissima de sementes de datura, e, consequentemente, por atropina.

— E tem suspeita de quem tenha sido o propinador do veneno?

— Não tenho suspeita, tenho certeza.

— Quem pensa que foi?

— Joaquim Cambinda.

A esta acusação precisa, formal, convicta, o coronel baixou a cabeça. Pensava. Barbosa tinha razão. Perdera a fazenda varios escravos mortos todos de uma molestia esquisita, que apresentava invariavelmente o mesmo cortejo de symptomas. E isso começára depois de que viera Joaquim Cambinda. Esse preto, tinha-o elle recebido com outros em herança de uma thia, já velho, incapaz de trabalhar. Nunca exigira delle serviço; dera-lhe até para morar, a pedido seu, um paiol largado, independente, no fundo do terreiro. Tempos havia, morrera na fazenda um feitor branco: a viuva, lembrava-lhe bem, tinha feito um berreiro enorme, infernal, dissera que o marido sucumbira a cousa feita, accusára terminantemente a Joaquim Cambinda. Não dera elle, coronel, importancia á accusação, e essa accusação ressurgia, feita agora por seu filho, homem inteligente, ilustrado, muito sisudo.

— Em que se estriba você para inculpar o negro velho? perguntou após minutos de meditação.

— Em muita coisa. Primeiro, os factos, os envenenamentos indiscutiveis, e que só começaram de dez annos a esta parte, depois que Joaquim Cambinda veio para a fazenda: eu cá não estava, mas por informações acho-me ao corrente de tudo. Em segundo lugar a fama de mestre feiticeiro que tem ele em todo o municipio: várias pessoas de criterio têm-me interrogado a esse respeito. Depois, surpreendi-o eu mesmo, outro dia, a seccar cabeças de cobra, raizes de cicuta e de guiné, sementes de datura. E mais... ele tinha seus aggravos de Maria Bugra...

E Barbosa acentuou estas palavras, olhando para Lenita.

— E’ verdade, sei, até já tive de tomar providencias por causa disso. Mas são presumpções apenas...

— Que, reunidas, fazem convicção.

— Precisamos de tirar isto a limpo.

— E’ o meu modo de entender: não podemos deixar correr à revelia uma coisa de tanta gravidade.

Realizaram-se as previsões de Barbosa: o estado soporoso de Maria Bugra passou para coma, e o coma para morte.

A’ tarde, ao escurecer, depois da revista, o coronel mandou chamar Joaquim Cambinda.

O medonho negro veio arrastando os pés, escorando-se em um bordão, a rojar pelo solo a imunda coberta parda, de que sempre usava.

Chegou, entrou na ante-sala, largou o bordão a um canto.

O cadaver de Maria Bugra ahi estava, sobre a marqueza, no meio da quadra, inteiriçado, coberto por um lençol fino que lhe desenhava as formas duras, angulosas. Quatro velas de cera allumiavam-no lugubremente, casando os seus clarões aos últimos clarões do dia.

Por entre o cheiro acre de vinagre ferrado e o cheiro enjoativo da alfazema queimada, percebia-se um cheiro fetido, um fortum de carne podre, de decomposição cadaverica.

Joaquim Cambinda entrou, olhou com indifferença para a defunta, dirigiu-se ao coronel que, juncto com Barbosa, ahi o esperava.

— Vá sãos cristo, sinhô. Sinhô mandou chamar negro velho, negro velho está aqui, disse na sua algaravia barbara, horripilante, impossivel de reproduzir.

— Sabe quem está alli morta, Joaquim?

— Sei, é Maria Bugra.

— De que morreu, não sabe?

— De suas molestias della.

— Que molestias?

— Eu não sei, eu não sou doutor.

— Então você não sabe, não é doutor? Não sabe tambem de que morreu a Maria Bahiana, o Antonio, o Carlos, o Chico Carreiro?

— Como quer sinhô que eu saiba?

— Se você não confessar tudo o que tem feito, aqui, direitinho mando-o acabar a bacalhau, sô feiticeiro do diabo!

— Ah! Sinhô! Feiticeiro, negro velho, que não tarda a ir dar contas a Deus do feijão que ele comeu!

— Deixe-se de histórias, de mamparras, vamos! Com que matou você a Maria Bugra?

— Não matei com coisa nenhuma, sinhô. Como hei de eu confessar uma coisa que eu não fiz?

— Se fez ou se não fez é o que vamos já saber. Pedro, João, venham cá, agarrem-me este patife.

À porta a negrada acotovelava-se curiosa estendendo uns o pescoço por sobre os ombros dos outros.

Os dois pretos chamados abriram caminho, empurrando os companheiros, entraram na ante-sala.

— Segurem-me este tratante, conduzam -n-o á casa do tronco. Eu já lá vou. Levem o bacalhau e uma salmoura forte.

— Que é que sinhô vai fazer comigo? inquiriu rapido Joaquim Cambinda.

— Você vai vêr.

— Sinhô, Joaquim Cambinda nunca apanhou de bacalhau...

— Vai apanhar agora; será então a primeira vez.

Operou-se uma revolução medonha em Joaquim Cambinda. Atirou ele para longe de si a coberta esfarrapada, endireitou o busto derreado, ergueu a cabeça, cerrou os punhos e encarou o coronel. Scintillavam-lhe os olhos, os beiços arregaçados deixavam vêr os dentes.

— Ah! você quer saber, eu digo: fui eu mesmo que matei Maria Bugra.

— E por que a matou você?

— Porque ella comia o meu dinheiro, e me enganava com a crioulada nova.

— E os outros, o Carlos, a Maria Bahiana, o Chico Carreiro, Antonio Mulato?

— Fui eu mesmo que matei a todos.

— E porque?

— Maria Bhaiana pelo mesmo motivo que me fez matar Maria Bugra. Os outros para fazer mal a sinhô.

— Para me fazer mal? Porque? Pois você não é o mesmo que forro? Exijo eu algum serviço de você? Não lhe dou moradia, roupa, comida? Por que me quer mal?

— Já que principiei a fallar, irei até o fim. Sinhô é bom para mim, é verdade, mas sinhô é branco, e obrigação de preto é fazer mal a branco sempre que pode.

— Matar-me cinco escravos!

— Cinco! Só crioulinhos mandei eu embora dezesete. Negro grande, nem se falla: Manuel Pedreiro, Thomaz, Simeão, Liberato, Gervasio, Chico Carapina, José Grande, José Pequeno, Quiteria, Jacyntha, Margarida, de que é que morreram? Fui eu que matei todos.

Ergueu-se grande sussurro de entre o grupo de negros. Ouviam-se gritos, imprecações.

— Agora também você está mentindo: José Pequeno morreu picado de cobra.

— Qual cobra! A cobra que o picou não tinha veneno. Elle morreu, mas foi da beberagem que eu lhe dei para o curar.

— Mas todos esses pobre diabos eram pretos como você. Para que os matou?

— Para sinhô ficar pobre: eu queria ver sinhô se servir por suas mãos.

— E a mim nunca pretendeu você matar?

— Matar, não: fazer penar só.

— Então sempre me queria fazer alguma cousa?

— Queria fazer! Eu fiz mesmo.

— Fez? Que é que me fez você?

— Esse seu rheumatismo, sinhô, então que é? Entrevamento de sinhá velha donde vem?

E o negro deu uma gargalhada feroz.

O coronel ficou aterrado.

— Levem, levem daqui esta serpente! gritou Barbosa. Metam-n-o no tronco, não quero mais vel-o. Vai para a villa amanhã.

Os negros apoderaram-se de Joaquim Cambinda, que não offereceu resistencia, rodearam-n-o, levaram-n-o a empurrões para o meio do terreiro.

— Então foi você que matou meu pai! dizia um.

— Minha mãe! bradava outro.

— Meus tres filhinhos tão bonitos, que entraram a inchar de repente, na cabeça e na barriga, a amarellar e que morreram com as perninhas finas como pernas de rã! lamuriou uma negra e, tomando do chão um caco de telha, bateu com elle na cara do feiticeiro.

Foi como que um signal.

Os negros todos achegaram-se a Joaquim Cambinda, uns davam-lhe punhadas, outros escarravam-lhe, outros atiravam-lhe areia nos olhos.

— Peste do diabo! Coisa ruim!

— Feiticeiro do inferno!

— Enforque-se já este demonio!

— O melhor é queimar!

— Que se queime! Que se queime!

E numa confusão horrorosa foram arrastando o desgraçado.

Ao pé do paiol estava um montão de sapé secco, e junto delle uma mesa velha de carro, com uma roda só, desconjuntada, meio podre.

Em um momento amarraram o misero sobre essa mesa de carro, apesar da resistencia louca que ele então procurou fazer, a pontapés, a coices, a dentadas.

Trouxeram sapé, aos feixes, encheram com ele o vão que ficava por baixo da mesa.

— Kerosene! gritou uma voz, tragam kerosene!

Um moleque correu ao engenho, e de lá voltou com uma lata quasi cheia.

Um preto tomou-lh’a, subiu à mesa do carro, começou a despejar petroleo sobre Joaquim Cambinda: o líquido corria em fio farto, claro, transparente, com reflexos azulados, resaltava do peito pilloso do negro, da sua calva lustrosa, embebia-se-lhe nas roupas immundas, misturado, confundindo com o suor que manava em camarinhas. Os olhos do miseravel revolviam-se sangrentos, seus dentes rangiam, ele bufava.

— Phosphoros! Phosphoros! Quem tem phosphoros? perguntou o preto, depois que esvaziou a lata, e que fez desapparecer Joaquim Cambinda sob um montão de sapé.

— Eu! acudiu a negra que dera principio ao motim, e extende-lhe uma caixa de phosphoros.

O preto saltou abaixo, tomou-a, abaixou-se, riscou um phosphoro, protegeu-lhe a chamma com a mão em fórma de concha, encostou-o ao sapé, junto do chão.

Ergueu-se uma fumarada espessa, azul-claro por cima, côr de ferrugem por baixo; a chamma scintillou em compridas linguas gulosas, lambeu, rodeou a mesa do carro, chegou ao sapé de cima e ao corpo do negro. As roupas deste, embebidas em petroleo, fizeram uma como explosão, inflammaram-se repentinamente. Elle soltou um mugido rouco, sufocado, retorceu-se phrenetico...

Tudo desappareceu num turbilhão crepitante de fogo e de fumo.

As faulas voavam longe, e o vento carregava a distancias enormes as moinhas carbonizadas.

Sentia-se um cheiro acre, nauseabundo de chamusco, de gorduras fritas, de carnes sapecadas.



Até 1887 vivia-se em pleno feudalismo no interior da província de São Paulo.

A fazenda paulista em nada desmerecia do solar com jurisdição da Idade Média. O fazendeiro tinha nela cárcere privado, gozava de alçada efetiva, era realmente senhor de baraço e cutelo. Para reger os súditos, guiava-se por um código único - a sua vontade soberana. De fato estava fora do alcance da Justiça: a lei escrita não o atingia.

Contava em tudo e por tudo com a aquiescência a acquiesciencia nunca desmentida da autoridade, e, quando, exemplo raro, comparecia à barra de um tribunal por abuso enorme e escandalosissimo de poder, esperava-o infalivelmente a absolvição.

O seu predomínio era tal que às vezes mandava assassinar pessoas livres na cidade, desrespeitava os depositarios de poderes constitucionais, esbofeteava-os em pleno exercicio de funções, e ainda... era absolvido.

Para manter o fazendeiro na posse de privilegios consuetudinarios, estabeleciam-se praxes forenses, immoraes e antijurídicas. Em Campinas, por exemplo, todo o crime commetido por escravos, fossem quais fossem as circunstancias, era systematicamente desclassificado; a condenação, quando se fazia, fazia-se no grau minimo; a pena era comutada em açoutes, e o réo entregue ao senhor, que exercia então sobre elle sua vindicta particular.

O sucesso pavoroso, o lynchamento atroz do feiticeiro pelos escravos da fazenda, não transpirou e, se transpirou, se alguma coisa chegou aos ouvidos das autoridades da villa, ellas não se moveram.

O coronel, homem bom, compassivo, horrorisára-se a princípio com o fato que não pudera impedir; afinal entendera que o que não tem remedio está remediado, achara até que o exemplo não havia de fazer mal. Barbosa, conquanto tivesse passado boa parte de sua vida na philanthropica Albião, era filho de fazendeiro, como tal tinha sido criado: não extranhára, pois, o sucesso, gostara até da solução que elle trouxera a um caso complicado e gravissimo.

A athmosphera de tristeza, de desalento, que um sucesso tragico gera sempre, foi-se pouco a pouco dissipando.

O viver da fazenda entrou logo em seus eixos: dir-se-ia até havia melhoramento, que se estava mais á vontade. Joaquim Cambinda inspirava medo, ninguem se atrevia a proferir uma palavra contra ele, e, todavia, excepto um pequeno numero de adeptos de suas praticas, todos o odiavam. A sua morte, como a de todo tyranno, fora um motivo de jubilo geral, alargára todos os pulmões que bebiam ar então a haustos largos. Desapparecera o perigo invisivel e temeroso que a todo o instante a todos ameaçava.

A fruiteira continuava a ser muitissimo frequentada por passaros de especies várias, por serelepes e até por ouriços caixeiros.

Lenita ia por diante com as suas razzias matinais. Acompanhava-a então Barbosa, que lhe deixava todo o prazer das caçadas, reservando-se o trabalho. Era elle quem ia buscar as aves mortas, quem perseguia e apanhava as que cahiam ainda vivas. Tendo achado um carreiro batido de caça, a alguma distancia da canelleira, escolheu um lugar que lhe pareceu apropriado, limpou-o em bom espaço, deitou milho, fez uma ceva. Ao terceiro dia notou com prazer indicivel que a caça acudia, que o milho estava comido. Em pouco tempo teve de renoval-o: tinha acabado. Entendeu que era tempo de construir o reparo. Fel-o quadrangular, grande bastante para duas pessoas. Tapou-o em roda com palmas de guaryrova, arranjou dentro um assento de varas, solido, relativamente commodo. Cravou no chão forquilhas para encostar as espingardas, dispoz olheiros por onde pudesse espreitar a caça. Antegostava a surpresa agradabilissima que ia cauzar a Lenita, o arrebatamento, o extasi em que ficaria ella, ao defrontar pela vez primeira com caça de importancia com caça de grande pello.

Deixou passar alguns dias para que a caça se familiarisasse com a choça, e, quando entendeu ser tempo azado, mandou acordar a Lenita bem de madrugada, muito antes da hora do costume. Sairam. Para atravessar o carreadouro e a picada, Barbosa teve de ir riscando phosphoros; estava escuro como breu. Ao chegarem juncto da canelleira ainda tudo eram trevas. A copada das arvores formava uma pasta compacta, negra, indistincta do negror do céo. Lenita tinha somno, bocejava. A mucama encolhia-se toda, aconchegando-se no chale.

— Parece que perdemos hoje a hora, que viemos cedo demais, disse Lenita.

— Viemos a hora precisa, respondeu Barbosa.

— Os passaros não começarão a vir nem nesta uma hora.

— Que venham quando quizerem: nós hoje não estamos cá por amor de passaros.

— Então por amor de que estamos?

— Vai vêr. Marciana, você fica aqui. Sente-se, não faça a mínima bulha. Agora d. Lenita venha comigo.

— Onde vamos nós?

— Vai vêr, tenha paciencia.

A moça, intrigada ao ultimo ponto, deixou-se guiar silenciosa, docil. Barbosa ia adiante, mostrando o caminho: ora dava-lhe a mão, ora afastava um ramo, para que lhe não batesse no rosto. Chegaram à ceva.

— Entre, Lenita, disse Barbosa, colocando-se ao lado da porta do reparo, com modo tão cortez, como se a estivera convidando para chegar ao buffet em um salão de cotillon cerimonioso, aristocratico.

Lenita entrou confiadamente, resolutamente, naquele antro lobrego, onde nada se podia divulgar.

Barbosa entrou também, riscou um phosphoro, mostrou o banco a Lenita, fel-a sentar, dispoz-lhe a espingarda sobre a forquilha, assestou-lh’a sobre a ceva, sentou-se ao lado da moça.

— Mas isto que vem a ser, afinal de contas?

— É uma ceva. Agora silencio, e esperemos.

No recinto, fechado pelo tapume espesso de palmas ainda verdes, havia um conchego relativo. Lenita, com as mãos agasalhadas em luvas de lã, envolta em um water-proof de casimira encorpada, sentindo o calor doce de Barbosa, achava-se bem. Hauria o ar puro, fresco, da matta, respirava as emanações de guaryrova, essas emanações irritantes de palmeiras, que adormentam o cerebro em uma lubricidade mystica. Ouvia com delicias o pingar manso e monotono de orvalho na camada de folhas secas. E despercebidamente o tempo ia passando. Amanheceu. A luz penetrou na matta, deu tom aos troncos, coloriu a folhagem, allumiou o chão pardecento e varrido da ceva, no qual o amarello do monte de milho punha uma nota muito clara.

De repente Barbosa deu com o joelho em Lenita.

Um animal pequeno, esguio, elegante, emergia do mato, e avançava cauteloso, alongando o corpo fino. Chegou ao milho, retraiu-se, encolheu-se, fugiu aos corcovos, sumiu-se, reappareceu e, sempre arisco, sempre desconfiado, principiou a comer. Pouco a pouco perdeu o receio, ergueu as patas dianteiras, sentou-se sobre as traseiras, e, tomando uma espiga entre as mãozinhas, começou a roel-a com apetite, vorazmente.

Lenita, com o coração a bater descompassado, descorada, quase sem consciencia, como por instinto venatorio, aperrou a arma, fez pontaria, desfechou.

O tiro restrugiu pela mata, repercutiu com um baque seco nas quebradas distantes.

A clareira encheu-se de fumo.

A moça e Barbosa sahiram correndo a ver o resultado do tiro.

Junto do milho, com o pello arrufado, percorrido a espaços por uma crispação fraca, estava o animal, atravessado de banda a banda pela chumbada mortifera.

Era uma cotia.

Ao vel-a ferida, prostrada, a exhalar o derradeiro debil alento, o prazer de Lenita foi tão intenso, que dobraram-se-lhe as pernas, e ella cahiu de joelhos, erguendo para Barbosa um olhar repassado de gratidão.

Levantou-se, largou a espingarda, tomou o animal, sopesou-o em ambas as mãos, a tremer, dementada pelo triumpho, em arrancos de risos nervosos.

— Agora é irmos para a choça, que não tarda a vir mais caça, disse Barbosa e, raspando terra com os pés, cobriu o sangue e o pello que havia no chão; depois ergueu a espingarda de Lenita, apresentou-lh’a e pediu-lhe a cotia para levar.

— Leve-me a espingarda, eu quero levar a cotia, respondeu a moça.

Installaram-se de novo na choça. Lenita carregou a espingarda, sentou-se, poz a cofia diante de si, apoiou as pontas dos pés no seu corpo macio, cravou na ceva olhares vigilantes, cubiçosos, sofregos.

Não esperou muito. Ouviu-se um estalar de ramos quebrados, e, um logo após outro, apresentaram-se dous vultos escuros, grandes, dous enormes porcos de eixo branco. Entraram no limpo da ceva confiados, lentos, magestosos, caminharam direito ao milho, trombejando, foçando, fazendo estalar os dentes. Pararam, puseram-se a comer tranquillamente, descuidosamente.

Lenita engatilhou a espingarda, quis mette-la em pontaria. Barbosa impediu-a com um gesto energico.

— Não se mova, segredou-lhe rapidamente, ao ouvido. Estamos em perigo serio.

— Em perigo?...

— Silencio!

Os dois porcos continuavam a trincar, a esmoer o milho, sem suspeitar da vizinhança de gente.

Passaram-se dez minutos, dez seculos de ansiedade para Lenita.

Barbosa lento, cauteloso, sem fazer o minimo rumor, como uma sombra, tirou a espingarda de Lenita, e pôs em lugar a sua, uma arma excellente de Pieper, canos choke-rifled, calibre 12.

— Atire com esta, disse em voz baixa que mal Lenita o poude ouvir, não tenha receio, não dá couce.

Lenita armou os dous cães, premendo os gatilhos para que não estalassem os gafanhotos nos dentes das nozes, levou a arma à cara e, quase sem apontar, disparou um tiro e outro imediatamente.

Os estampidos das cargas fortissimas ribombaram pela matta de modo pavoroso: a fumaça enevoou a ceva, tapou tudo; sentia-se o cheiro forte, bom, de sulphureto de potassium, de polvora queimada.

Lenita impaciente, incapaz de conter-se, quis sair. Barbosa a reteve.

— Cuidado! disse, esperemos que se dissipe a fumaça. O caso é serio. São queixadas.

— Então foi a queixadas que eu atirei?

— Foi, e felizmente não há bando, são só dois.

— Se houvesse bando?

— Estariamos perdidos.

— São assim perigosos?

— Em bando, no matto, peores do que onça. Por amor das duvidas, dê-me a espingarda, quero carregal-a.

Demoradamente foi-se dissipando o fumo. Barbosa e Lenita sahiram. Juncto do milho o chão estava escarvado, via-se muito sangue. De dentro do mato, de pequena distancia, vinha um como grunhido, um ronco lastimado.

Barbosa ordenou a Lenita que se deixasse ficar e, com a espingarda armada, pronto a dar fogo, entranhou-se no mato, do lado donde vinham os grunhidos. Não teve que andar muito: a pouco espaço, perto um do outro, jaziam os dois porcos, alcançados ambos pelos tiros certeiros de Lenita. Um estava morto, o outro estertorava enfraquecido nos arrancos da agonia.

Albo notanda dies lapillo! Venha Lenita, venha ver o que fez ! gritou Barbosa.

Lenita, apressada, correu sem se importar com os ramos que lhe açoitavam, que lhe arranhavam o rosto, sem dar fé dos espinhos que lhe rasgavam a roupa. Chegou-se: ao dar com as suas victimas, perdeu de todo a cabeça, teve uma como vertigem, soltou um grande grito, atirou-se a Barbosa, abraçou-o freneticamente. Depois cahiu em si, retrahiu-se confusa, desapontadissima, correu a examinar os queixadas.

Baixou-se junto do que estava morto, examinou-lhe detidamente, minuciosamente : os cascos aguçados, as cerdas duras, longas, as orelhas tesas, a tromba lisa, os olhos pequeninos, sanguineos, os colmilhos obliquos, o queixo branco. Tirou as luvas, premiu-lhe, esvurmou-lhe a glandula tumefata das cadeiras, fez correr o liquido lacteo, catinguento.

— Foi feliz, disse Barbosa, risonho. Fez uma proeza de que se não podem gabar muitos caçadores velhos.

— E ao senhor o devo! Obrigada!

Havia tanta doçura, tanto sentimento no modo por que Lenita disse essa frase, que Barbosa sentiu um calafrio percorrer-lhe o dorso. Foi-lhe preciso uma violencia enorme sobre si proprio, para conter-se, para impedir-se de atirar-se à moça, de cobri-la de beijos.

— Então, perguntou ele, voltamos ao reparo, a esperar mais caça?

— Não, respondeu Lenita, queixadas com certeza não vêm mais, e seria profanar o dia e a espingarda atirar a caça inferior. Como havemos de levar estes monstros?

Eu mando um preto buscal-os com um cargueiro.

— A cotia ao menos eu quero levar.

— Pois levaremos a cotia.

— Aquelle porco menor não quer morrer. Vamos nós dar-lhe mais um tiro?

— Não vale a pena, ele morre logo. Está muito mal ferido.

— Mas são mesmo queixadas?

— E dos maiores.

— Boa carne?

— Excellente, melhor ainda que a do tateto.

— Em que se differencia o queixada do tateto?

— O queixada, dycotylus torquatus, vive só na mata virgem, é maior e muito mais feroz do que o tateto, dycotylus labiatus, que é pequeno, medroso e que vive às vezes na capoeira. A nota, porém, kharacteristica que os distingue é ter o queixada o queixo branco, como está vendo.

— E é dahi que lhe vem o nome?

— Exactamente. Então, vamos?

— Com franqueza, estou sem animo de separar-me das minhas soberbas victimas. Mas vamos!

E foram.

A ceva ficou deserta por muito tempo. De subito, pequenino, atrevido mesmo pela sua insignificancia, surdiu um rato, chegou-se sem ceremonias, entrou a roer o milho, o germe sómente, o coração. Depois veio outro, e outro, um bando. O sol, coando um raio por entre a folhagem, ateava ao monte de milho solto e de espigas descascadas um incêndio de reflexos côr de ouro.

Rojando em ondulações por entre as plantas rasteiras da matta, entreparando num logar, escutando em outro, veiu avançando para a ceva uma cobra de grande talhe. Tinha o dorso fusco, sem brilho, maculado de losangos escuros, quase negros. A cabeça era chata, o focinho tronco, como que aparado, com duas fossazinhas tapadas, duas ventas falsas. De cada olho partia um traço escuro que ia fenecer no pescoço. A cauda terminava em um como rosário curto, de contas corneas, ôcas, achatadas, que, ao rastejar do animal deixavam escapar um ruido leve, quase imperceptivel, do pergaminho fuchicado.

Chegou, viu os ratos, parou, foi-se torcendo em espiral, formou um rolo, donde emergia, attenta, vigilante, a pavorosa cabeça. O olhar negro luzente, gelido, tinha uma fixidez fascinadora. A lingua lurida, comprida, fina, bifida, açoutava o ar em rapidas lambidellas. Um dos roedores percebeu o reptil, fitou-o aterrado, encolheu-se, ennovelou-se, arrepiou o pello, começou a chiar lastimosamente , miseravelmente. Os outros desappareceram.

Continuava a fascinação.

O desgraçado rato tremia. Começou de mover-se às guinadas, dando saltos irregulares, ataxicos. Não fugia, avançava para a cobra. Chegou-se-lhe muito perto. O rolo hediondo distendeu-se rapido, como uma mola de relogio, que se escapa do tambor, deu um bote. O animalzinho, ferido pelo dente fulmineo, virou de costas. Dentro de um minuto estava morto.

A cobra desenrolou-se então de uma vez, extendeu-se ao comprido, abriu, escancarou uma bocca enorme, começou a deglutir a preia, desarticulando as mandíbulas para dar passagem ao corpo relativamente volumoso...

Depois, saciada, farta, com o repasto a formar um bolo visivel exteriormente no abdome dilatado, foi deslizando, lenta, preguiçosa, em busca de um abrigo, té que chegou ao reparo, entrou, enrodilhou-se em baixo do banco de varas, e ahi começou o sono comatoso da digestão ekhidnica.

— Lenita passou o dia contentissima, a lembrar-se a todo o momento da sua brilhante façanha venatoria. Fechava os olhos, via a cevas, os queixadas. Estava satisfeita comsigo, estava orgulhosa.

O jantar foi alegre.

Louro, coberto de rodellas de limão, appetitoso, tentador, figurou nelle o lombo de um dos queixadas. A peça, nobre, a cabeça, la hure, desossada magistralmente por Barbosa, que, como o velho Dumas, era perito em culinaria, campeou em um prato travessa, imponente, magestatica, fragrante, captivadora.

— Hoje morro de indigestão, e é você quem me mata, Lenita, dizia o coronel, repetindo pedaço sobre pedaço. Ha que annos que me não encontro com porco do matto! Essa cabeça está divina; como ella... só o lombo!

Lenita tambem gostou, comeu muito.

Logo depois do café, ella, Barbosa e a mucama seguiram para a ceva.

Muito embora seja quente o dia na matta ha sempre frescor. A luz não é crua, mordente, como em uma campina rasa; esbate-se, quebra-se, dá aos contornos dos objetos um avelludado molle, uma languidez suavissima. Os sons se abrandam, tomam um como timbre murmuroso. Na matta domina a todas as horas o que quer que é de vago mysterio.

Lenita, nessa athmosphera balsamica, sadia, achava-se feliz. Ao bem estar gososo, indefinivel, que gera a boa digestão de um repasto succulento, junctavam-se alegrias de mente, a consciencia de que seu amor por Barbosa era correspondido, o triunfo esplendido, inesperado, incrivel sobre duas temerosas feras. Fôra por traição que as matára a tiro, escondida... embora! Na lucta terrivel da vida toda a arma aproveita. A astucia é uma força. A espingarda de bala explosiva é que equipara o homem ao rinoceronte: para mostrar coragem irá o homem atacar o rinoceronte sem espingarda de bala explosiva? As alimarias da selva não se deixam aproximar, fogem mal farejam a vizinhança do homem; o homem só consegue tel-as em alcance escondendo-se, dissimulando-se: pois, para ser leal, irá o homem avisal-as a gritos de que se acha presente? A força é uma contração da fibra muscular, o pensamento é uma irritação da cellula nervosa: por que não empregar uma contra a outra? Na batalha da existencia, seja qual fôr a arma a empregar, o que importa é não ficar vencido: o vencedor tem sempre razão. Os queixadas tinham morrido. Lenita estava triunphante: o cerebro vencera o musculo mais uma vez. O fato era esse, o mais não entrava em linha de conta.

Barbosa quedou-se ao pé da canelleira, a estudar umas epíphytas que descobrira sobre um tronco carcomido.

— Então não vem? perguntou-lhe Lenita.

— Já não. Leve consigo a Marciana, que pode ajudal-a no que fôr preciso. Perigo não existe mais: queixadas só havia aquelles, desguaritados de uma vara que por aqui estanceou, ha meses. O administrador conhecia-os, já os tinha visto quando andou a tirar madeiras.

— Então até logo.

— Até já, eu não me demoro.

Lenita seguiu com Marciana por um pouco; mandou que ela se quedasse ali, junto de uma arvore, ao alcance da voz, às ordens; chegou-se à ceva, espiando de longe, cautelosa. A ceva estava deserta.

Entrou no reparo, sentou-se, dispoz a espingarda, começou a esperar.

Um bando de urús vinha-se aproximando; por duas vezes ouviu ella perto o seu harpejo aflautado, sonoro, intercadente. Mostraram-se, invadiram a ceva. Eram doze. Uns deitaram-se, desidiosos, dyspepticos, arrufando as penas, espojando-se; outros entraram a comer gulosamente, sofregamente.

Lenita fez um movimento para erguer-se, e pisou em uma coisa molle, que achatou-se sob a pressão do seu pé. Ao mesmo tempo quasi, uma como chicotada surrou-lhe as pernas, e ella sentiu no peito do pé esquerdo um ligeiro prurido, um pequeno ardor.

Fez-se um reboliço nas palmas do tapume, ao rez do chão, e ouviu-se um chocalhar aspero, nervoso, irritante, como de uma vagem secca de fava, em vibração phrenetica.

A um canto do reparo, armada prompta para novo bate, estava a cascavel. Os olhos pequeninos, fixos, luzentes como diamantes negros, pareciam despedir relampagos gelados. O extremo da cauda, erguido verticalmente, tremia como o badalo de uma campainha electrica, como um jacto de vapor a escapar-se de um conduto estreito.

Lenita sentiu-se ferida, conheceu o perigo em que estava. De um salto sahiu do reparo, atirou-se para o limpo da ceva.

Os urús fizeram uma revoada temerosa, fugiram em todas as direções.

Com admiravel presença de espirito, Lenita sentou-se no chão, descobriu a perna, tirou o sapato e a meia.

Na pelle alvissima do peito do pé viam-se dois arranhões parallelos, pequenos, de pouco mais de um centimetro de comprimento.

Lenita espremeu-os, limpou-os de uma como serosidade amarella que continham, tirou a fita que lhe prendia a trança, amarrou a perna, acima do tornosello, apertou muito a atadura.

Depois gritou pela rapariga, mandou que chamasse Barbosa a toda pressa.

Barbosa não se demorou.

Ao dar com Lenita, pallida, sentada no chão da ceva, sem espingarda, com o pé descalço, ficou pasmado, não sabendo o que pensar.

— Que tem, Lenita, que lhe aconteceu, perguntou acercando-se, anciado.

— Estou picada de cobra.

— Não me diga isso, não brinque assim.

— É sério.

— Onde é que está picada?

— Aqui no pé, veja.

— Sabe que cobra foi?

— Cascavel.

Barbosa empallideceu; por um momento ficou como atordoado. Dominou-se, porém, logo ajoelhou-se, tomou o pé de Lenita entre as mãos, examinou-o detidamente.

— Não há de ser nada; disse. Nenhuma veia importante foi tocada. A precaução que tomou de atar a perna com esta fita foi excellente. Agora, nada de acanhamento, entregue-se a mim deixe-me fazer o que entendo.

Tirou do bolso um charuto, trincou-o nos dentes, mascou-o, encheu a bocca de tabaco dissolvido em saliva, tomou de novo o pé de Lenita, com respeito, com adoração quasi, chegou-lhe a bocca, entrou a sugar-lhe a ferida a sorvos vagarosos, contínuos, fortes.

Cuspiu, renovou o tabaco, repetiu a operação.

— É curioso, disse Lenita, eu nada sinto, nada absolutamente; é como se não tivesse sido picada.

— Mas tem certeza mesmo de que foi cobra, de que foi cascavel?

— Ora! Escute lá. Ouve?

No reparo continuava a chocalhada sinistra.

Barbosa tomou a espingarda, aperrou-a, aproximou-se do reparo, olhou pela porta, levou a arma à cara, fez fogo. Depois entrou e saiu logo com a cobra , morta, suspensa pela cauda. Tinha de seis a sete palmos, era muito grossa, um crótalo medonho, um monstro.

— Lenita, disse Barbosa, atirando o reptil ao chão, seria fazer-lhe injuria dissimular a gravidade do que aconteceu. Mas as providencias tomadas dão-nos quase ganho de causa: você com a atadura impediu em tempo a circulação do sangue, e por conseguinte a absorpção do veneno; eu suguei a ferida, e retirei o que era ainda possivel retirar. Sente alguma coisa agora?

— Apenas um pouco de turvação na vista.

— Vamos para casa. Vou seguir um processo racional de curativo, e espero vel-a logo risonha e alegre, outra vez, aqui na ceva. Não tire, não deixe afrouxar o amarrilho da perna.

Foram. Lenita em caminho teve duas vertigens, quase caiu. Em algumas subidas asperas Barbosa carregava-a. Marciana acompanhára-os levando as espingardas.

Chegaram. Lenita despiu-se, deitou-se. Tinha frio, sentia somnolencia.

Barbosa foi ao seu quarto e de lá voltou com uma garrafa de rhum: abriu-a, encheu um calix grande, fel-o beber a Lenita, inteirinho de uma vez.

— Bom, temos meio caminho andado. Agora toda a docilidade, sim?

Lenita acquiesceu com um gesto triste.

Barbosa assentou-se à beira da cama, levantou discretamente uma parte das cobertas, tomou o pé ferido de Lenita, desfez o atilho da perna. Um vinco em circulo afundava-se livido, um pouco acima do tornozello. O pé estava inchado.

Esfregou por algum tempo a pelle, restabelecendo a circulação; tomou depois a pôr a ligadura.

Lenita entrou a ficar ansiada, afflicta.

— Dóe-me a cabeça, foge-me de todo a vista, confundem-se-me as idéias.

— Tome mais um calix de rhum, é preciso.

— Tomo, mas escute, diga-me uma coisa com franqueza, eu vou morrer, não?

— Não, não morre. Eu respondo pela sua vida.

— Não morro! Diz isso para me animar. Eu bem sei o que é veneno ophdico.

— Tambem eu, e por isso affirmo que não morre.

— Seja. Em todo o caso quero lhe dizer uma coisa, chegue-se aqui bem perto.

Barbosa apprixumou a cabeça do rosto da moça.

— A minha convicção é que morro e eu não quero morrer sem lhe contar um segredo.

— Diga, Lenita, diga o que quzser, confie em mim, sou seu amigo.

— Amo-o, Barbosa, amo-o muito...

Barbosa teve um deslumbramento. Dominou-se, curvou-se, beijou Lenita na testa, castamente, paternalmente.

— Pobre menina!... Mas não morre! Tome mais um calix de rhum, sim?

— Ora, o primeiro já me atordoou.

— É mesmo para isso, tome.

Lenita ergueu-se, bebeu a custo, recaiu pesadamente sobre o travesseiro.

— Tenho somno... quero dormir...

E fechou os olhos.

Barbosa velou-lhe à cabeceira quasi a noute toda: de meia em meia hora desfazia-lhe o atilho da perna e, depois de ter restabelecido a circulação por um pouco, tornava a aperta-lo: a moça não dava accordo. Inconscientemente, a dormir, murmurando palavras inconnexas; ingeriu mais dois calices de rhum que lhe fez beber Barbosa, meio à força.

Pela madrugada despertou, chamou a mucama. Barbosa retirou-se discretamente, Lenita tornou logo a adormecer.

Quando amanheceu Barbosa interrogou a mucama:

— D. Lenita urinou?

— Urinou, sim, senhor.

— Deitou você fóra a urina?

— Não, senhor, está alli no vaso, dentro do criado mudo.

— Vá buscar.

A rapariga trouxe o vaso: estava acima de meio de uma urina carregada, sanguinolenta.

— D. Lenita suou?

— Não reparei, não senhor.

— Vá ver. Se tiver suado, troque-lhe a roupa, e traga-me aqui a camiza molhada.

Dentro de dez minutos a rapariga voltou com o camizolão de dormir, que tirara de Lenita, humido, levemente tincto em alguns lugares, de um vermelho deslavado.

Ao meio dia a moça acordou. Estava fresca, bem disposta, sentia-se com apetite.

Barbosa mandou vir um caldo de frango, succulento, grosso, fel-a tomar uma chicara delle e beber um calix de vinho velho.

O coronel, informado do que acontecera, estava afflitissimo.

— Vegetalina, por que não lhe deu vegetalina? E’ um grande remedio.

— Grande remedio é o alcool, respondeu Barbosa. A vegetalina e outros quejandos especificos devem o effeito, que se lhes attribue, ao alcool em que são administrados.

— Olhe que a vegetalina tem arrancado muita gente da sepultura.

— E como se dá a vegetalina, não me dirá?

— Em cachaça forte, de vinte e quatro graus.

— Ora ahi está. Lenita não tomou vegetalina, e eu a considero livre de perigo.

— Tinha pouco veneno a cascavel, era pequena?

— Era enorme.

— E Lenita, acha você que esteja livre de perigo?

— Ella teve a boa inspiração de atar a perna; eu chupei-lhe as feridas: pouco veneno foi absorvido.

— Você chupou? E poz fumo na bocca? Não tinha alguma fistula na gingiva, alguma excoriação na lingua?

— Felizmente tenho a bocca perfeitamente sã.

— E que lhe deu você a beber?

— Alcool excelente, rhum de Jamaica.

— Só?

— Só.

— Um! não sei...

— O meu tractamento foi todo racional: puz em pratica o que aprendi de Paul Bert, que o aprendeu de Claude Bernard. Vossa mercê conhece bem o jogo da circulação. O sangue hematosado nos pulmões vai, pela veia pulmonar, armazenar-se nos compartimentos esquerdos do coração: dahi sai pela aorta, corre pelo systema arterial, vivifica todo o organismo, chega aos capillares, transfunde-se , torna carregado de residuos pelas veias, entra na auricula direita do coração, recolhe os elementos reparadores trazidos pelas veias sub-clavias, passa para o ventriculo respectivo, volta a depurar-se, a reoxygenar-se nos pulmões, e assim por diante, sempre. Ora muito bem. No caso de uma infecção qualquer de veneno, de uma mordedura de cobra por exemplo, ha tres phases, tres étapes indefectiveis: primeira, dissolve-se o veneno nos humores animaes que se encontram na ferida; segunda, penetra o veneno nas veias e é levado ao coração; terceira, põe-se o veneno em contacto com os elementos organicos do corpo por meio da torrente arterial. Meu pai sabe que o que constitue venenosa uma substancia qualquer, não é a sua qualidade, mas sim a sua quantidade: um milligrama de estrykhnina não é venenoso para o homem porque, tomado de uma vez, não o mata: um litro de congnac é venenoso para elle porque, tomado de uma vez, fulmina-o. Um veneno que se elimina antes de exercer acção tóxica deixa de ser veneno. No caso de mordedura de cobra, para que o veneno produza effeito mortifero, é preciso que a sua eliminação seja desproporcional, é preciso que seja menor do que a absorção: é indispensavel que haja accumulação no sangue. Pois bem: o veneno está na ferida, mas não póde subir, que lh’o impede uma ligadura. Impossivel prolongar tal estado, traria a gangrena. Força é desfazer o atilho, deixar subir o sangue e com elle o veneno. Desfaz-se, deixa-se; aos poucos, porém, de modo que o veneno que entra com o sangue não seja sufficiente para produzir acção letal, de modo que seja eliminado antes que venha outra quantidade que, sommada com elle, possa produzir essa acção. Assim, pois, solta-se a ligadura, aperta-se de novo, toma-se a soltar, torna-se a apertar, até que todo o veneno tenha percorrido o corpo e tenha sido eliminado sem effeito mortifero. O alcool excita os nervos, aviva a torrente circulatoria; ajuda, portanto, facilita a eliminação.

— E ha exemplos de curas realisadas com esse processo?

— Innumeros. Claude Bernard salvava, quando queria, animais que elle proprio tinha ferido com flexas curarisadas. Na provincia do Rio uma amigo meu foi picado por um surucucú enorme, e eu salvei-o seguindo este tractamento.

— Então a Lenita?...

— É o meu segundo caso de cura: julgo-a tão livre de perigo agora como estava hontem, antes de ser picada.

— Posso vel-a?

— Por certo.

Entraram no quarto. Lenita estava sentada na cama, com as pernas encruzadas à chineza, por debaixo das cobertas. Alegre, radiante, tinha esse ar de triunpho que têm todos os doentes escapos de molestia grave. Um lenço de cambraia alvissima, dobrado em tira, cingia-lhe a cabeça como um diadema, fazendo sobresahir o brilho dos olhos, o negror dos cabellos, o doirado pallido das faces. Uma camiza de dormir, afogada, de seda crua, mal dissimulava nas pregas largas e molles a linha dura dos seios.

— Então, com que, prompta para outra! disse o coronel. Pois escapou de boa! É no que dão as caçadas. Podia estar morta a esta hora!

— Mas estou viva.

— E não ganhou medo ao matto?

— Não, ganhei experiencia. Serei vigilante, cautelosa para o futuro: não assentarei o pé em um logar qualquer sem o ter examinado bem primeiro. E, realmente, mais foi o susto. Olhe eu tive um pouco de dor de cabeça, enfraquecimento geral, somnolencia: soffrer, soffrer mesmo, não soffri.

— Foi feliz, acertou com bom medico.

Lenita volveu para Barbosa um olhar doce, repassado de gratidão.

O veneno da cobra, parece, deixara viciado o sangue de Lenita.

Sentia-se ela tomada de acessos súbitos de fraqueza moral, exatamente como nos primeiros tempos de sua vinda para a fazenda.

Deixara de caçar, deixara de ler; extinguira-se-lhe a sede de ciência.

Sentava-se a toda a hora na rede ou em uma cadeira de balanço e imergia em cisma. Comia pouco, quase nada.

Às vezes encostava-se à mesa, debruçava, pegava em um lapis, em uma flor, em um objeto qualquer, e virava-o, revirava-o, batia com elle em rhythmo extranho, durante tempo largo, com os olhos parados, sem expressão na face, como se estivesse a um milhão de leguas das cousas da terra.

Barbosa, por sua parte, tornára-se reservado: a confissão de amor que Lenita lhe fizera acanhava-o a elle.

Insensivelmente deixára-se prender em um laço de que não cogitára, que nem sequer suspeitára. Achava-se em posição escabrosa.

Amava a Lenita doidamente, perdidamente; sabia que era della amado; ouvira-lh’o a ella propria. Que mais? Ou cortar de vez tudo, fazer as malas, embarcar-se para a Europa, ou tornar-se abertamente amante da rapariga. A flirtation sentimental, platonica, naquelle caso, era uma imbecilidade, um cumulo de ridículo.

E Barbosa passava a mór parte do tempo em visitas e jogos pela vizinhança elle que dantes não jogava, que não visitava a ningem.

Andava pelo matto, de espingarda; mas a espingarda era um pretexto; elle não caçava.

Uma tarde, ao descambar do sol, sentou-se cançado à raiz de uma figueira branca, no centro da matta virgem, olhou para cima makhinalmente; viu um enorme quaty mundé, que o espiava da bifurcação de um galho, fazendo-lhe gaifonas com o longo focinho ponteagudo. Como si não bastasse a tentação, ouviu-se um batido de azas forte, volumoso, e um macuco gigantesco veio empuleira na figueira, bem por cima do quaty. Pousou, achatou-se em um galho , sacudiu-se, aconchegou-se, encolheu a cabeça, soltou três pios altos, seguidos, compassados. Barbosa não prestou attenção nem ao quadrupede, nem à ave. A sua espingarda continuou immovel entre os joelhos.

Por diante dos olhos, em uma como visão betitifica, esvoaçava-lhe a imagem de um pé, do pé de Lenita, branco, setinoso, brevissimo, com unhas roseas transparentes, e veias azuladas.

E elle beijára esse pé, mais do que isso, elle o sugára lentamente, por muito tempo, tendo na mão o calcanhar adoravel, redondo, rubro, onde a pressão de seus dedos deixava marcas muito brancas.

Sentia o saibo da pelle fina, velludosa, ameaçada de morte, mas cheia de vida. Seus labios como que tinham memoria, recordavam-se.

E o beijo paternalmente parvo que lhe dera na testa ao confessar-lhe ella o amor que lhe tinha. Ainda lhe hauria o perfume natural dos cabellos, o halito fresco, lacteo, são, como o que vem da boca de um bezerro novo.

Por que não acceitar esse amor que se impunha, que se dava, que se offerecia? Não procurára elle a Lenita, viera ella a seu encontro, conscia da situação, sabendo que elle era casado, que a não poderia nunca desposar legitimamente.

E sem rebuços, com impudencia castissima, fizera uma confissão que as mulheres nunca querem ser as primeiras a fazer. Gracejo não tinha sido, a occasião não era para gracejos.

Que mal adviria ao mundo de que se enlaçassem, de que se possuissem, de que se gosassem um homem e uma mulher que se amavam?

Não se podia casar com Lenita! Que tinha isso? Que é o casamento actual senão uma instituição sociológica, evolutiva como tudo o que diz respeito aos seres vivos, soffrivelmente imoral e muitissimo ridicula? O casamento do futuro não há de ser este contrato draconiano, estupido, que assenta na promessa solemne daquillo exactamente que se não pode fazer. O homem, por isso mesmo que occupa o supremo degrau da escada biologica, é essencialmente versatil, mudavel. Hypothecar um futuro incerto, menos ainda, improvavel, com sciencia de que a hypotheca não tem valor, será tudo quanto quizerem, menos moral. Amor eterno só em poesias piegas. Casamento sem divorcio legal, regularisado, honroso, para ambas as partes, é caldeira de vapor sem valvulas de segurança, arrebenta. Encasaca se, paramenta-se um homem, atavia-se, orna-se de flores symbolicas uma mulher: e lá vão ambos à igreja, em pompa solemne, com grande comitiva: para que? Para annunciar em publico, em presença de quem quizer ver e ouvir, a repiques de sino e som de trompa, que elle quer copular com ella, que ella quer copular com elle, que não ha quem se opponha, que os parentes levam muito a bem... Bonito! E a multidão de badauds, velhos e moços, machos e femeas, de olhos encarquilhados e dentes à mostra em riso alvar, dando-se cotovelladas maldosas, segredando obscenidades! Seria ridiculo, si não fosse chato, sujo.

O amor é filho da necessidade tyranica, fatal, que tem todo o organismo de se reproduzir, de pagar a divida do antepassado segundo a formula brahmanica . A palavra amor é um euphemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Physiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma cousa só. O inicio primordial do amor está, como dizem os biologos, na affinidade eletiva de duas cellulas differentemente, ou melhor, de duas cellulas differentemente electrizadas. A complexidade assombrosa do organismo humano converte essa affinidade primitiva, que deveria ter sempre como resultado uma criança, em uma batalha de nervos que, contrariada ou mal dirigida, produz a khólera de Akhilles, os desmandos de Messalina, os extases de Santa Thereza. Não ha recalcitrar contra o amor, força é ceder. À natureza não se resiste, e o amor é a natureza. Os antigos tiveram uma intuição clara da verdade quando symbolizaram em uma deusa fomosissima e implacavelmente vingativa, na Venus Aphrodite, o laço que prende os seres, a alma que lhes dá vida.

Lenita se lhe offerecia, pois bem, elle seria o amante de Lenita.

E Barbosa ergueu-se robustecido, forte, como quem acaba de tomar uma resolução definitiva; caminhou apressadamente para casa.

Quando chegou era quasi noite, já estava escuro.

Entrou no seu quarto, largou a espingarda e a patrona, riscou phosphoros, accendeu uma vela, lavou as mãos.

Sahiu.

No corredor, ao chegar á ante-sala, deu com alguém: era Lenita.

— Oh ! exclamou elle.

As mãos de ambos como que se procuravam no escuro: encontraram-se, entrelaçaram-se.

Barbosa puxou Lenita para si, quiz beijal-a na bocca, não teve animo, beijou-a ainda na testa.

Lenita abandonava-se, entregava-se, mollemente, sem resistencia.

No corredor tudo eram trevas: Barbosa não via a chamma negra da volupia que torvelinhava nos olhos da moça; não lhe via a pallidez das faces, o rubor dos labios, a arfarem tumidos, mendigando beijos; não lhe via o quebramento langue de pescoço.

A resolução tomada fraqueou, cedeu: sentiu-se Barbosa sem coragem, sem desejos, sem virilidade mesmo. Batia-lhe o coração a estos desordenados, como o de um seminarista que pela vez primeira se acha a sós com uma mulher da vida.

De repente, afastou Lenita de si com gesto brusco, fugiu desatinado.

Ouviu-se um soluço triste, dorido, que vinha das trevas do corredor.

A ceia dessa noute correu cheia de constrangimento: nem Barbosa olhava para Lenita, nem Lenita para Barbosa. Comiam, ou antes, fingiam comer em silencio.

— Esta menina precisa de tomar remedios, disse o coronel, reparando no abatimento, no apetite quase nullo de Lenita. Depois da tal historia da cobra deixou de ser o que era. Se tivesse usado da vegetalina, o caso seria outro.

Veiu o chá: quando acabaram de tomal-o, Barbosa levantou-se, deu boa noute ao pae, despediu-se de Lenita em voz sumida, soturna, cerimoniatica; chamou-lhe minha senhora.

Recolheu-se.

Lenita ainda conversou por algum tempo com o coronel. Seguia, fingia seguir bem o assumpto, fazendo observações, multiplicando perguntas, affectando muito interesse. De repente deixava escapar uma exclamação forte, descabida, deslocada, que nada tinha com o que estava tractando. Cahia em si, procurava homologar o que dissera, atrapalhava-se, confundia-se. Dava extremeções subitos, como quem recebe inesperadamente uma alfinetada. Córava, empallidecia, tinha na voz um timbre exquisisto.

— Menina, sabe você de uma cousa, disse o coronel, vá se accomodar: você não está boa. Si eu não tivesse visto que você quasi nada comeu, diria que a ceia lhe tinha feito mal. Ande, vá se deitar, procure dormir.

Lenita obtemperou sem replicar.

Foi para o seu quarto.

Um banho morno, em que se demorou, não serviu para acalmar-lhe os nervos muito pelo contrario. Arripiava-se ao perpassar da esponja, ao sentir as suas proprias mãos; a agua tepida irritava-a como se fosse um contacto humano extranho.

Sahiu, enxugou-se em uma toalha felpuda, grande, vestiu uma camiza branca de cambraia finissima, deitou-se por sobre as cobertas, de costas, bem extendida, com as mãos entrançadas por baixo da cabeça, com uma perna por cima da outra.

A cambraia molle, semitransparente, desenhava-lhe as fórmas esculpturais do busto, do ventre, das coxas, e toda essa alvura de pelle e de tela sobresahia, realçada pelo vermelho escuro do damasco da colcha. O tempo passava.

Do quarto de Lenita ouvia-se bater compassado, lento, o pendulo do velho relogio francez da antesala.

Deu dez horas, deu onze, deu meia-noite. Cada pancada do badalo na campainha soava muito distinta, muito, vibrante.

Lenita mudava de posição, revolvia-se na cama, não dormia não podia adormecer.

Uma obsessão mordente subia-lhe da peripheria do corpo, comprimia-lhe o coração, atordoava-lhe o cerebro.

Sentia picadas na pelle, tinha calafrios, zuniam-lhe os ouvidos.

Sugando-lhe as feridas feitas pelos aguilhões da cobra, Barbosa retirára um veneno, mas deixára outro. Lenita nunca mais cessára de sentir a sucção morna, demorada, forte, dos labios de Barbosa em torno às picadas, no peito do pé. A sensação extranha, deliciosa, incompatavel que produzira essa sucção perdurava, vivia; mais ainda, multiplicava-se, alastrava. Era um formigamento circular que lhe trepava pelas pernas, que lhe afagava o ventre, que lhe titillava os seios, que lhe comichava os lábios.

E ella queria Barbosa, desejava Barbosa, gania por Barbosa.

Esperar até amanhecer: uma! duas! três! quatro! cinco! seis horas! Ouvir o tic-tac do relogio, lento, medido, regular, igual, metallico; monotono, impiedoso; ouvi-lo sessenta vezes por minuto, tres mil e seiscentas vezes por hora, duzentas e dezeseis mil vezes nas seis horas que faltavam para amanhecer? Impossivel!

Ergueu-se e, descalça, em camiza, inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a sala, abriu a outra porta, sahiu na ante-sala, enfiou pelo corredor, parou junto à porta do quarto de Barbosa, a escutar.

E nada ouvia.

Dentro, fóra, dominava um silencio profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu proprio coração.

Encostou o ouvido á fechadura, nada.

O seu hombro fez uma ligeira pressão sobre a folha da porta, e esta cedeu, entreabriu-se, chiando ligeiramente.

Uma lufada de ar quente, saturada de aroma de charuto havano, veio afagar-lhe o rosto, os seios, o busto quase desnudado no decote grande da camiza.

Lenita perdeu completamente a cabeça, entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslisando, como um phantasma, abeirou-se da cama de Barbosa.

Curvou-se, apoiou a mão no respaldo da cabeceira, approximou a sua cabeça do peito do homem adormecido, escutou-lhe a respiração igual, hauriu-lhe o cheiro masculo do corpo, sentiu-lhe a tepidez da pelle.

Quedou-se por muito tempo nesse ambiente entorpecedor.

De subito o braço com que se encostava falseou: ella cahiu pesadamente sobre o leito.

Barbosa deu um extremeção, acordou sobresaltado, sentou-se, extendeu as mãos, encontrou-a, asiu-a, perguntou assustado:

— Quem é? Quem é?

A cutis morna, setinosa da moça, a macieza da cambraia que a envolvia em parte, o perfume de peau d'Espagne que de seu corpo se halava, não lhe permitiam dúvidas; mas elle recusava a evidencia dos sentidos, não podia crer. Achava absurda, monstruosa, impossivel a presença de Lenita em seu quarto, àquella hora, naquella quasi nudez.

E, contudo, era real, ella alli estava: ele sentia-lhe a carne quente, dura, palpava-lhe a pelle hispidada pelo desejo, escutava-lhe o estuar do sangue, e o pulsar do coração.

Um tropel de idéias desordenadas agitou-se-lhe, confundia-se-lhe no cerebro excitado; o raciocinio ausentou-se, venceu o desejo, triumphou a sugestão da Carne.

Sentou-se rapido à beira da cama sem largar a moça, puxou-a para si, cingiu-a ao peito, segurou-lhe a cabeça com a mão esquerda, e, nervoso, brutal, collou-lhe a bocca na bocca, achatou os seus bigodes asperos de encontro aos lábios macios della, bebeu-lhe a respiração. Lenita tomou-se de um sentimento inexplicavel de terror, quiz fugir, fez um exforço violento para desenlaçar-se, para soltar-se.

Era o medo do macho, esse terrivel medo fisiológico que, nos pródromos do primeiro coito, assalta a toda mulher, a toda femea.

Baldado intento!

Retinham-na os braços robustos de Barbosa: em suas faces, em seus olhos, em sua nuca os beijos delle multiplicavam-se: esses beijos ardentes, faminto queimavam-lhe a epiderme, punham-lhe lava candente no sangue, flagellavam-lhe os nervos, torturavam-lhe a carne.

Cada vez mais fóra de si, mais atrevido, elle desceu à garganta, chegou aos seios tumidos, duros, arfantes. Osculou-os, beijou-os, a principio respeitoso, amedrontado, como quem commette um sacrilegio; depois insolente, lascivo, bestial como um satyro. Crescendo em exaltação, chupou-os, mordiscou-lhes os bicos arreitados.

— Deixe-me! Deixe-me! Assim não quero! implorava, resistia Lenita, com voz quebrada, offegante, esforçando-se por escapar, e presa, todavia, de uma necessidade invencivel de se dar, de se abandonar.

De repente fraquejaram-lhe as pernas, os braços descahiram-lhe ao longo do corpo, a cabeça pendeu-lhe, e ela deixou de resistir, entregou-se frouxa, molle, passiva. Barbosa ergueu-a nos braços possantes, pol-a na cama, deitou-se juntco della, apertou-a, cobriu-lhe os seios macios com o peito vasto, collou-lhe os labios nos labios.

Ella deixava-o fazer, inconsciente, quase em deliquio, mal respondendo aos beijos frementes que a devoravam.

E corria o tempo.

Barbosa não podia prestar fé ao que se estava dando.

Descrente de mulheres, divorciado da sua, gasto, misanthropo, elle abandonára o mundo, retirára-se com seus livros, com seus instrumentos scientificos, para um recanto selvagem, para uma fazenda do sertão. Abandonára a sociedade, mudára de habitos, só conservára, como reliquias do passado, o aceio, o culto do corpo, o apuro despretencioso do vestir. Levava a vida a estudar, a meditar; ia chegando ao quietismo, à paz de espirito de que falla Plauto, e que só se encontra no convívio sincero, sempre o mesmo, dos livros, no convivio dos ausentes e dos mortos. E eis que a fatalidade das cousas lhe atira no meio do caminho uma mulher virgem, moça, bella, intelligente, illustrada, nobre, rica. E essa mulher apaixona-se por elle, força-o tambem a amal-a, captiva-o, aniquila-o. Faz mai : contra toda a espectativa, tornando realidade o improvavel, o absurdo, vem ao seu quarto, interrompe-lhe o somno, entrega-se-lhe... Elle a tem entre os seus braços, languida, molle, roida de desejos; aperta-a, beija-a...

E... nada mais pode fazer!

Não que o detenham preconceitos, receio de consequencias, não tem preconceitos, já não receia consequencias.

O que o detem é um exgotamento nervoso de momento, uma impossibilidade physica inesperada.

Debalde procura na concentração da vontade o tom da fibra nervosa, o robustecimento do organismo...

Sente o ridiculo da posição, desespera, tem as mãos frias, banha-se em suor, chega a chorar. Afastou-se de Lenita, dementado, louco, escalavrando o peito com as unhas.

— Não posso! Não posso! exclamou, ululou desatinado.

Deu-se uma inversão de papeis: em vista dessa frieza subita, desse esmorecimento de carícias, cuja causa não podia comprehender, nem siquer suspeitar; no furor do erotismo que a desnaturava, que a convertia em bakkhante impudica, em femea corrida, Lenita agarrou-se a Barbosa, cingiu-o, enlaçou-o com os braços, com as pernas, como um polvo que aferra a preia; com a bocca aberta, arquejante, humida, procurou-lhe a bocca; refinada instinctivamente em sensualidade, mordeu-lhe os labios, beijou-lhe a superficie polida dos dentes, sugou-lhe a lingua...

E o prazer que ella sentia revelava-o na respiração açodada; no halito curto, quente; era um prazer intenso, phrenetico, mas... sempre incompleto, falho.

Barbosa arquejante tinha impetos de levantar-se, de tomar uma pistola, de arrebentar o craneo.

Pouco a pouco operou-se uma reacção.

Sentiu Barbosa que menos agitado lhe circulava o sangue, que um calor doce se lhe expandia pelos membros, que o desejo physico se despertava, dominante, imperativo.

Recobrou-se de vez da passageira fraqueza, achou-se forte, potente, varão.

Com o impeto irresistível do macho em cio, mais ainda, do homem que se quer desforrar de uma debilidade humilhosa, retomou o papel de atacante, estreitou a moça nos braços, afundou a cabeça na onda sedosa e perfumada de seus cabelos que se tinham soltado...

— Lenita!

— Barbosa!

E um beijo vitorioso recalcou para a garganta o grito dorido da virgem que deixára de o ser...

Depois foi um tempestuar infrene, temulento, de caricias ferozes, em que os corpos se conchegavam, se fundiam, se unificavam; em que a carne entrava pela carne; em que fremito respondia a fremito, beijo a beijo, dentada a dentada.

Desse marulhar organico escapavam-se pequenos gritos suffocados, ganidos de goso, por entre os estos curtos das respirações cançadas, offegantes.

Depois um longo suspiro seguido de um longo silencio.

Depois a renovação, a recrudescencia da lucta, ardente, fogosa, bestial, insaciavel.

Pela frincha da janela esboçou-se um rastilho de luz tenue.

Era o dia que vinha chegando.

— Deixe-me! Deixe-me, Barbosa! É preciso ir, está amanhecendo, está clareando.

— Não, não! Ainda não! Aquillo não é o dia, é o luar.

— Vou! Deixe-me, deixe-me!

E, fazendo um exforço violento, Lenita escapou-se do leito e dos braços de Barbosa.

No desvão da porta entreaberta enquadrou-se, por um momento, a sua sombra indecisa. Desappareceu.

Barbosa ergueu-se, vestiu-se rapidamente, sahiu, fechou a porta, tirou, guardou no bolso a chave.

Lenita do seu quarto ouviu-lhe, contou-lhe as passadas que ressoavam fortes.

A moça estava com febre; tinha a cabeça em fogo; sentia-se zonza, atordoada; via a todo momento discos luminosos, com um nucleo que se alargava , cambiando de cores, passando do verde escuro ao vermelho cobre; ardia-lhe a garganta, a bocca estava peganhenta.

No quarto deserto de Barbosa o rastilho de luz, coado pela frincha da janella, ia bater sobre a cama desarranjada: na alvura dos lençoes amarrotados punham notas muito vivas algumas manchas de sangue frescas, humidas, rubras.

— Que lindo está o dia, exclamou o coronel, chegando à porta que dizia para o terreiro. — Um tempo firme, sim senhor! Jacynto!

— Sinhô! acudiu um preto velho.

— Para onde foi a gente hoje?

— Foi a cortar arroz, sim, sinhô.

— Onde está Manduca?

— Sinhô moço mandou ensilhar o rozilho, e foi para a banda da villa, sim sinhô.

O coronel respirou à larga o ar fresco, puro, da manhã resplendente. Dormirara toda a noite, não tivera dores, estava bem disposto. Queria expandir-se, queria conversar.

— Logo hoje que estou sequioso por uma prosa é que me foge o Manduca, é que se deixa ficar na cama a Lenita! Forte coisa! Vou fazer uma extravagância, vou dar uma volta pelo cafezal.

E mandou arrear uma egua velha, muito mansa, andadeira, uma rede, dizia elle. Sahiu, foi visitar o cafezal, coisa que fazia raramente, uma ou outra vez por anno.

Quando voltou era quase meio dia. Perguntou por Barbosa, não tinha vindo; por Lenita, ainda estava deitada. Veiu com fome, mandou pôr a mesa; emquanto esperava foi ao quarto de Lenita, bateu à porta.

— Que é isto? perguntou. Temos macacôa? — Macacoa, não; sonno; respondeu a moça.

— Ainda estava dormindo?

— Acordei com o seu batido.

— Olhe, levante-se, venha-me fazer companhia. O Manduca não sei para onde foi. Eu ainda não almocei, e não quero almoçar só sozinho.

— Já vou.

— Pois fico esperando; venha logo, que estou com o estomago a dar horas.

A cabo de meia hora Lenita appareceu. Estava palida, macillenta: tinha as palpebras vermelhas, os olhos batidos, grandes olheiras. Veiu embrulhada em uma pelliça. De quando em quando estremecia com um calafrio. Sentou-se à mesa meio de lado, alquebrada, languida.

— Melhor cara traga o dia de amanhã! Gritou o coronel ao vel-a. Parece que passou a noute no cemitério. Que é que teve?

— Uma ligeira indisposição.

— Hum! Já eu estava vendo isso mesmo hontem à noute. Ai moças, moças! Isto enquanto não casam... Que há de querer um mingauzinho de cará?

— Não, obrigada.

— Olhe estas hervas...

— Obrigada.

— Um pedaço de fiambre?

— Fiambre... quero, mas pouco, sim?

O coronel serviu-lhe uma naca larga, rósea, marmoreada de veios de gordura branca.

Lenita polvilhou-a de sal moido, comeu com apetite.

— Está gostando de salgados, hein?! Eu quando digo... Mais uma naquinha, sim?

Lenita acceitou, mandou buscar ginger-ale, bebeu um copo cheio.

Conversou com o coronel por cerca de duas horas.

Ao cair da tarde sentiu-se fraca, tomada de invencivel soneira. Recolheu-se, dormiu. Levantou-se ao escurecer. Quando ia sahindo do quarto, deu com Barbosa que, de pé junto de um consólo, fingia examinar uma estatueta.

— Boa tarde, Lenita, disse elle com voz tremula, timido, desapontado.

A moça não respondeu: com um arranco nervoso tomou-lhe a cabeça entre as mãos, curvou-a, beijou-a sofregamente, exquisitamente, no alto, afundando, sumindo o rosto nos cabellos curtos, levemente crespos.

— Lenita, segredou em voz sumida, tênue como sopro, é perigoso, podem vel-a, podem encontrl-a; Eu virei aqui, ao seu, é melhor.

— Aqui dorme a rapariga.

— Facil é afastal-a sob qualquer pretexto. Deixe as portas cerradas.

Foram para a sala de jantar.

O coronel já tinha feito accender o lampeão; estava de pé, juncto da mesa, lendo a correspondencia que minutos antes tinha chegado da villa.

— Olhe, Lenita, disse, ahi estão os seus jornaes, e tambem uma carta. Leia, leia logo a carta; é cousa que lhe interessa.

— Sim! como sabe?

— A letra do sobrescripto é mesma desta que eu recebi. Leia.

— Que será? interrogou-se a moça, rasgando o envoltorio com gesto fatigado, abhorrida. Desdobrou a folha de papel, leu sem manifestar sentimento algum, com absoluta indifferença. Depois passou-a aberta ao coronel.

— Ora! exclamou, arrastando a voz, com fastio.

— Então? Perguntou o coronel.

— Leia, está aí.

— Pois não é do Dr. Mendes Maia?

— É.

— E que lhe diz você?

— Eu digo... digo... não digo coisa nenhuma.

— Já se deixa ver que quer cala...

— Nem sempre consente. O Dr. Mendes Maia perdeu o seu tempo, a sua rhetorica, o seu papel, a sua tinta e o seu sello. Eu não me caso com elle.

— É um pedido de casamento? perguntou Barbosa, anciado.

— Em forma.

— E quem é esse Dr. Mendes Maia?

— Esse Dr. Mendes Maia é um bacharel em direito, nortista; fez seu quatriênio, e está na corte, à espera de um juizado de direito aqui na provincia.

— E donde o conhece D. Lenita?

— De Campinas. Estivemos junctos em um baile, no Club Semanal, há de haver três annos. Dançou comigo, fez-me a côrte por duas horas, e agora pede-me em casamento.

— Meu pae tambem o conhece?

— Conheço: elle andou viajando por estas bandas com um primo que queria comprar sítio de café. Veiu-me recommendado de São Paulo, e até pousou aqui, uma noute.

— Que especie de homem é?

— É um bacharel em direito como a maioria dos bachareis em direito. Parece-me boa pessoa. Homem, sou franco, para mim tem um defeito capital, é nortista . No mais, não há que dizer. Lenita, que hei de eu responder ao homem?

— Boa pergunta! Responda que eu não me quero casar que agradeço muito a honra da proposta, e cousas e tal, uma tabua cortez.

— Não valerá a pena pensar um pouco antes de decidir a cousa assim de talho, sem remedio?

— Não há que pensar, não quero.

— Olhe que o rapaz, segundo me diz o meu velho amigo Cruz Chaves, nesta outra carta que recebi, tem todos os requisitos para um bom córte de noivo: é inteligente, honesto, morigerado, trabalhador, econômico, bom católico, e muitas cousas mais. Fez o seu quatriennio como promotor e juiz municipal, está à espera de um juizado de direito, como você mesmo disse, e ha de obtel-o, porque dá-se com o Cotegipe e é muito protegido pelo Mac Dowel. E tem seus cobres.

— O partido tenta, tenta, mas eu é que me não deixo prender.

— Olhe que isto não vai a matar, não é sangria desatada, pense primeiro, responda depois.

— Não há que pensar.

— Esta mocidade! Para que tomar decisões de afogadilho, quando há tempo para refletir, para pesar todos os prós e todos os contras?

— A resposta agora, ou daqui a um anno há de ser a mesma: não quero.

— Menina, ninguém deve dizer « deste pão não comerei ».

— E nem tão pouco «desta água não beberei ». Sabido, mas eu não quero mesmo.

— Bom, bom; não quer, não quer! Amanhã lá segue a recusa: que se aguente o Dr. Mendes Maia.

Lenita despedira a mucama, e ficara a dormir só no seu quarto.

O coronel estranhou, não levou a bem tal resolução. Que era perigoso, que podia ficar doente, ter um ataque alta noute, sem que ninguem lhe acudisse.

Que não, respondeu Lenita, que estava perfeitamente boa, que não havia ataque a recear; e mais, que a rapariga resomnava forte, e que isso a impedia de dormir.

Por volta das onze horas vinha Barbosa, mansamente, pé ante pé, entrava na sala, fechava a porta por dentro, á chave.

As ferragens cuidadosamente azeitadas funccionavam veleiras, em atritos macios, suaves, sem o mínimo rangido.

A fechadura era das portuguezas antigas, de chapas furadas coincidentemente: para evitar que alguem pudesse espiar pelo buraco o que se passava na sala, espionagem aliás improvável, Barbosa pendurava na chave o seu chapéo.

Em liberdade absoluta, perfeita, não se contentava com o prazer material de possuir Lenita. Queria o pecado mental intelligente, os mala mentis gaudia de que falla Virgilio; queria contemplar, comer com os olhos a plastica soberba do corpo da moça, ora em todo o esplendor da incandescente nudez, ora realçado pelos atavios, pelas extravagancias da moda.

Despia-a, punha-a na posição de Venus de Milo, arranjava-lhe os braços, como conjecturam os sabios terem estado os da estatua; enrolava-lhe um lençol de volta aos quadris, arrufava-lh'o, em prégas suaves, em pannejamentos artisticos.

Depois arrancava-lhe esse ultimo vestuario, mudava-lhe a attitude: erguia-lhe o busto, avançava-lhe a arca do peito, fazia sobresahir o relevo insolente dos seios erguidos e duros.

Por meio de um reflector poderoso focava, dirigia a luz branca de uma lâmpada belga, fazia cahir sobre a moça uma toalha de reflexos suaves e vivos, scientificamente combinados.

Afastava-se, approximava-se, tornava a se afastar; mirava, estudava, gosava a Lenita, como Pygmalião à Galatéia, como Miguel Angelo ao Moysés.

Chegava um momento em que se não podia conter: com um grito rouco, aspero, suffocado, de bode em cio, atirava-se, ella atirava-se tambem, e ambos cahiam sobre um sofá, sobre o assoalho, estreitando-se, mordendo-se, devorando-se.

Por vezes fazia com que Lenita se frizasse, se espartilhasse, se enflorasse, se enluvasse, com todo o capricho, com toda impertinencia de uma leoa da moda, que se prepara para um baile do high-life, para um sarau diplomatico.

Elle ajudava-a, servia-lhe de camareiro, orgulhoso, radiante.

Todo aquelle apparato do mundus muliebris, toda aquella expansão de garridice era para elle, para elle só, para mais ninguem.

E sentia o que quer que era do prazer exclusivista, egoistico, do rei Luiz da Baviera, a assistir em um theatro vazio, como espectador solitario, único, a uma opera de Wagner, magestosamente posta em scena, divinamente cantada por artistas de primor.

Adorava a macieza tépida, perfumosa, da pelle nua de Lenita; mas, refinado em lubricidade, gostava de lhe premer as mãos quando calçadas de luvas de pellica ou de peau de Suede; gostava do contacto quente dessas mãos, através das malhas das mitaines de retroz, gostava de lhe sentir a viveza do corpo por entre as asperidades brandas das rendas, por entre as flores relevadas do tule.

Em breve não lhe bastaram mais esses desbragamentos nocturnos, de paredes a dentro, clandestinos: quiz moldura mais larga para os seus quadros vivos, quis palco mais espaçoso para suas enscenações carnaes, quiz o amor ao ar livre, à luz do dia, em liberdade plena. A pretexto de caçar, ia com Lenita todos os dias, afundava-se na matta.

Enquanto na estrada, deixava-a seguir, ficava alguns passos atrás, para ver-lhe o remoinho agitado dos calcanhares na fimbria roçagante do vestido de fazenda molle.

Esse movimento de saias estuoso, continuo, que ia em ondulações confundir-se com o bamboar das cadeiras, causava-lhe uma excitação extranha, particularissima.

Quando na matta se lhe deparava uma grota profunda, uma barroca sombria, uma clareira afestoada de creciumas, de taquáras, parava.

Juncto de um velho tronco, ao pé do leque esmeraldino e ainda baixo de uma palmeira nascente, bem sob a acção de um feixe de raios solares, collocava a moça despida, fazendo com gosto de artista, com pericia de devasso pratico, que lhe destacasse a alvura da pelle banhada de luz, no fundo verde da matta afogado na sombra. Lenita prestava-se a tudo com docilidade de rainha complacente, de deusa satisfeita; deixava-se adorar, recebia contente o culto de latria dirigido a sua carne.

Barbosa mirava-a, remirava-a, voltando-lhe em torno; os circulos concentricos que descrevia iam-se estreitando como os de um açor em volta da preia: chegava-se, ajoelhava-se; e, tremulo, com a respiração açodada, beijava-lhe as unhas roseas e a pelle branca dos pés, erguia o busto, alteava-se ousado, osculava-lhe as coxas roliças, pousava a cabeça de encontro ao ventre liso, aspirando, sorvendo, de olhos semi-cerrados, as emanações sãs, provocantes, da carne feminina irritada.

Uma vez no coração da mata acudiu-lhe à lembrança a Aurora de Miguel Angelo, que vira no túmulo dos Medicis. Uma anfractuosidade de terreno fôra a idéia accidentalmente associada, que lhe avivara a memoria.

Perto estava uma arvore velha coberta de musgo: colheu-o às braçadas, fez um montão, alcatifou, alfombrou com elle a accidentação do terreno que lhe recordára o marmore florentino.

Nervosamente, brutalmente, foi despindo a Lenita: não desabotoava, não desacolchetava; arrancava botões, arrebentava colchetes. Quando a viu nua, fel-a reclinar-se sobre o musgo, dobrou-lhe a perna esquerda, apoiou-lhe o pé em uma saliência de pedra, dobrou-lhe tambem o braço esquerdo, cuja mão, em abandono, foi tocar o ombro de leve, com as pontas dos dedos; estendeu-lhe o braço e a perna direita em linha suave e frouxa, a contrastar com a linha forte, angulosa, movimentada, do lado oposto.

Desceu um pouco, deitou-se de bruços e, arrastando-se como um estélio...

Lenita desmaiou em um espasmo de gozo...

Uma noute Barbosa não foi ao quarto de Lenita.

A moça passou em claro, ralada de cuidados. Pela madrugada ergueu-se e, sem se importar com a possibilidade de que alguem a visse, de que alguem a encontrasse, sem tomar precauções, foi ao quarto de Barbosa, empurrou a porta, entrou.

O pavio da vela, quasi inteiramente gasta, afogava-se em um lago de estearina derretida, que se accumulára na assucena do castiçal: a chamma vasquejava, bruxuleava, ora illuminando vivamente o quarto, ora desapparecendo, quasi, submergindo tudo em trevas.

Barbosa estirado de costas, na cama, com as mãos a comprimir as temporas, gemia. Lenita debruçou-se.

— Que tem? Que é isto? Perguntou-lhe.

— Não é nada, é a minha enxaqueca. Mas retire-se, olhe que a vêm, vai amanhecer.

— Retirar-me, eu? Deixl-o assim sofrendo, só? Não me conhece.

— Conheço, conheço muito bem. Eu não a repelliria, se me fosse precisa, se me fosse mesmo util a sua presença. Mas nada me pode fazer. Isto não é molestia, é incommodo; eu não estou enfermo, tenho dores.

— Quero ficar, eu não posso vel-o padecer sem ao menos procurar allivial-o.

— Nada conseguiria senão me affligir e me agravar o soffrimento. Isto passa com o tempo, só com o tempo. Vá, peço-lhe, vá.

Lenita foi, muito contrariada.

Eram horriveis as enxaquecas de Barbosa.

Começavam por uma dor surda de cabeça. Pouco a pouco accentuava-se uma displicencia inexplicavel em tudo e para tudo; as forças abatiam-se, prostravam-se; o rosto ficava pllido, dilatava-se a pupila do olho direito.

Penoso qualquer movimento, impossivel qualquer esforço: Barbosa tinha de procurar o leito forçosamente, fatalmente. Um suor gelido humedecia-lhe, banhava-lhe a fronte. Do lado direito a arteria temporal saltava tumefata, engurgitada: o globo do olho contraia-se, minguava e, como se estivesse contundido, pisado, era sensivel à mínima pressão. No alto da cabeça havia um ponto doloso, a sensação como de um prego que ahi estivesse fincado. Cada pulsação, cada jacto de sangue nas arterias era uma martellada que parecia fazer estalar o craneo e afundar mais o prégo.

O estomago enchia-se de bile. Uma fraqueza extrema, uma necessidade imperiosa de alimentos se fazia sentir; mas á simples idéia da ingestão de qualquer coisa, exacerbavam-se os soffrimentos todos. Na retina havia scintillações, moscas luminosas, subjectivas; o menor ruido, como avolumado por um microphóno infernal, tomava-se em fracasso, em cataclysma de estrondos e dores no ouvido hyperestesiado. Não havia concentrar a attenção, pensar. Se nesses momentos viessem dizer a Barbosa que um incendio devorava os seus livros preciosos, que seu pai e sua mãe pereciam nas chammas, elle nada poderia fazer, nem sequer tentar um exforço: a vontade estava abolida.

E durava, ia sempre até á noite esse soffrer inenarravel, essa tortura de réprobo.

Amanheceu.

Logo que se abriram as portas, que começou a vida da fazenda, voltou Lenita para o quarto de Barbosa, sentou-se-lhe à cabeceira, inquirindo sollicita do que havia a fazer, do que era possivel aproveitar em casos taes.

Que nada, que nada mesmo havia a tentar, repetiu Barbosa impaciente; que aquillo era um estado nervoso especial, hyperesthetico, que só passava com o tempo, que à noite havia de estar bom.

Lenita com o tato indicivel, com o jeito especialissimo que têm as mulheres para enfermeiras, arranjou-lhe as almofadas e a travesseirinha em uma posição que lhe deu allivio; foi ao armario, procurou entre mil frascos, achou um quase cheio de xarope de khloral, trouxe, fez-lhe tomar quasi à força duas colheres de sopa, grandes, a transbordar.

Depois apalpou-lhe os pés, sentiu-os frios, mandou vir uma botija com agua quente, envolveu-a em uma toalha, poz-lha sob elles, enrolou tudo em um cobertor, habilmente, quase sem incomodal-o, como se não fizesse movimentos.

Os gemidos de Barbosa foram esmorecendo em um como queixume flebil, indistincto; cessaram, elle adormeceu.

Foi um sono longo, de duas horas pelo menos.

A moça não arredou pé um minuto: sentada à cabeceira, immovel, em silencio contemplava-o a dormir.

De repente elle acordou, sentou-se rapido, fez signal, ordenou-lhe com gesto impaciente, irritado que se retirasse.

Lenita não obedeceu.

Barbosa, pallido, com as feições curvou-se, abriu desordenadamente, atabalhoadamente o criado-mudo, tirou o vaso, colocou-o junto de si sobre a cama. Ajoelhou-se.

Abdome, estomago, diaphragma, esophago, contrahiram-se em uma nausea violenta: os zygomaticos distenderam-lhe a pelle descorada e macillenta do rosto, e um jacto de bile amarella e espumosa golphou no fundo do vaso, tingindo-lhe as paredes com os salpicos peganhentos.

Seguiu-se outro jacto, e outro, e outro: vinha a bile, sem esforço não mais amarella, não mais espumosa, porém verde, líquida, linda até em sua pureza transparente.

Lenita, com dó profundo debuxado nas feições, sustentava-lhe a testa mádida.

Extenuado, Barbosa deixou-se cahir pesadamente nos travesseiros, gemeu por um pouco, tornou a adormecer.

Lenita mandou retirar, lavar, trazer o vaso: depois retomou o seu posto juncto do enfermo, velando-lhe com amor o somno socegado.

Quando a chamaram para almoçar, foi em bicos de pés, sem fazer o minimo rumor.

Á narração circumstanciada do incommodo do filho, fez observar o coronel que lhe não dava aquillo cuidado, que o rapaz era atreito a enxaquecas desde a meninice, que até tinha melhorado com a idade, que os accessos iam ficando mais quarteados.

Lenita voltou para o quarto.

Ao virar do meio-dia, Barbosa acordou. Estava bom, completamente restabelecido, sentia fome, mandou vir comida.

Havia muito que tinha começado a nova moagem: ia ela já quase em meio, quando se deu um desastre. Um crioulinho deixou-se prender nos cilindros do engenho e teve um braço esmagado.

Ao ver a mísera criança segura, atraída pelo revolver lento, implacável, do mecanismo bruto, o pai dela, o negro moedor, tomou uma alavanca de aço que achou à mão, entalou entre os dentes dos rodetes.

Ouviu-se um grande estalo metálico, um tinir sonoro de ferros partidos, o engenho parou.

Salvou-se a vida do negrinho, mas as moendas inutilizaram-se; rodetes, pescoços, mancais, tudo ficou arrebentado.

Que fora uma caipora, que fora o diabo aquele desastre em meio da moagem, disse o coronel arreliado. Lá pelo crioulinho, não: era ingênuo, era 28 de setembro, ficasse aleijado, pouco prejuízo havia. Que o azar era a interrupção da moagem, quando ia tudo correndo tão bem, em um tempo como se não havia de ter outro. Que remendos no engenho não queria, que de longa data andava com idéias de reformar tudo aquilo, e que ia reformar, embora levasse a casqueira a safra.

E ficou assentado que, no outro dia, Barbosa havia de seguir para o Ipanema, a entender-se com o Dr. Mursa, sobre planos e dimensões para a nova máquina que urgia ficasse pronta dentro de poucos dias.

Lenita, ao saber da viagem, teve um sobressalto, ficou pálida, quase desmaiou: lembrava-lhe o muito que sofrera com a ida de Barbosa a Santos, quando ele não era ainda seu amante, quando ela nem sabia sequer ao certo que o amava.

Como havia de ser então, que as coisas se achavam em pé diversíssimo? Uma tortura inenarrável, impossível, o inferno.

E não foi.

Lenita ajudou a Barbosa nos seus aspectos de viagem, sem sentir por forma alguma o que sentira da vez passada. As expansões lúbricas, desenfreadas, a que ele se entregou na despedida noturna, contrariaram-na, mortificaram-na, mesmo.

Admirava-se da transição brusca, repentina que se lhe operara no espírito: sentia-se fria, indiferente, aborrecida quase; achava-o a ele grosseiro, vulgar, impertinente, ridículo, chato.

Na hora da partida apertou-lhe a mão; viu-o montar a cavalo, dar de rédeas, seguir vagaroso em uma nuvem de pó que se levantava da estrada; distinguiu-lhe o gesto de adeus que lhe fez ele ao transpor o viso da colina, ao sumir-se-lhe da vista.

E não se entristeceu; em torno de si não sentiu vácuo algum: achou-se até mais à vontade por ficar só, em companhia de si própria, senhora de pensar, de agir em liberdade, sem sugestão.

Todavia era-lhe grata à vaidade a idéia de que Barbosa ia cogitar ininterrompidamente nela, só nela; de que levava a sua imagem estereotipada, viva, na memória; de que todo o pensamento, todo o ato dele a ela se reportava, tinha-a por objetivo.

E, analista sutil, não se enganava sobre os seus próprios sentimentos: no prazer que tinha com a sujeição de Barbosa, descobria mais a satisfação do orgulho lisonjeado do que o contentamento do amor correspondido.

Foi ao quarto de Barbosa, começou a pôr em ordem as coisas dispersas, os livros e jornais que atravancavam a mesa, o mármore do criado, as cadeiras.

Ninguém em casa, nem mesmo o coronel, estranhava mais esses cuidados: a amizade estreita a intimidade que reinava entre ela e Barbosa justificavam-na; todos achavam muito natural o papel de ecônoma que ela a si chamara.

Nas senzalas, porém, o viver excêntrico e liberdoso que ela levava com Barbosa já começava a servir de pábulo à maledicência característica da raça negra: os pretos e principalmente as pretas murmuravam, comentavam as caçadas improdutivas, sublinhavam ditos, aventavam torpitudes.

Ao puxar uma gaveta da mesa de Barbosa, para recolher as miudezas que achara dispersas, Lenita deu com uma caixinha oblonga de tartaruga, incrustada de metal e madrepérola.

Abriu-se por abrir, sem curiosidade. Encontrou dentro quatro papéis dobrados, uma medalha muito oxidada de Nossa Senhora da Aparecida, flores secas e várias bolinhas de lã branca, desfiada.

Fez-lhe espécie aquilo: que diabo poderia ser? Barbosa não era religioso, a medalha não tinha explicação como coisa dele. E as bolinhas de lã? Com certeza tinham caído de uma manta de malha, de uma saída de baile, em que se envolvera, em que se agasalhara uma mulher, para procurá-lo a ele na sua casa, no seu quarto, no seu leito. E as flores secas? E os papéis? Ah! os papéis... Os papéis continham de certo a chave do enigma davam a solução de tudo aquilo.

Desdobrou o primeiro, encontrou um anel de cabelos castanhos, quase pretos, cetinosos, muito finos.

Desdobrou o segundo, era um bilhetinho em poucas linhas: a letra bonita, fina, redonda, de mulher. Dizia:

Espero-o sábado sem falta; se não vier zango-me. Não o esqueço um só momento. Adeus.

Lenita empalideceu, mordeu os beiços e, trêmula, com os olhos a despedir chispas, abriu o terceiro papel, uma folha grande, larga, de almaço Fiume. Estava escrita pela letra de Barbosa, um cursivo feio, muito legível. Era evidentemente uma série de impressões lançadas no papel sur place, no momento mesmo em que se tinham produzido, inconexas, cortadas de reticências.

Lenita leu:

O trem ia partir.

Ela estava na plataforma da Estação da Luz, com o marido, em bota-fora de não sei quem.

Olhou-me, eu a olhei; ela baixou os olhos, uns grandes olhos verdes; corou. O braço esquerdo estava passado no do marido enfastiadamente, aborrecidamente; o direito, em abandono, pendia-lhe ao longo do corpo, forte, musculoso, muito branco. A mão estava sem luva, era pequenina, bem feita, anho no anelar uma marquesa de muito brilho. Levantou os olhos, encarou-me, tomou a baixá-los, avançou o pé direito, um pezinho adorável, bateu com ele freneticamente, como se estivesse muito contrariada. O marido disse-lhe o que quer que foi alemão, ela respondeu-lhe na mesma língua. Saíram, eu segui-os. Tomaram o bonde que vinha de Santa Cecília.............. Olhos verdes...........amor............venusta............................

Tornei a vê-la.

Era no Grande Hotel: ela estava jantando, à mesa do centro. Dava-me as costas. Recostava-se na cadeira, pendendo o corpo para a esquerda; a perna direita, passada por sobre a esquerda, agitava-se com um movimento sacudido, nervoso; o pé muito pequeno, estreitado em uma meia de seda carmezim, recurvando-se, descalçava em parte o sapatinho Clark, mostrava o calcanhar redondo, diminuto, delicioso. O pé esquerdo assentado firme no chão. O vestido rodeava, cobria pane da poltrona em fartos panejamentos, e por sob ele entrevia-se uma orla de saia muito branca. A aragem que entrava pelas janelas altas agitava-lhe os crespinhos dourados da nuca. Levantou-se, rodando para a esquerda, com o busto curvado, em um movimento gracioso, que pôs em relevo a exuberância dos seios a avultarem reprimidos no corpete retesado, em contraste provocador com a exiguida da cintura.

O quarto papel, amarelo, puído nas dobras, continha uma poesia escrita também por letra de Barbosa.

Lenita leu:

M.I.

Não sei se és feia ou bonita,

Segundo as regras da arte;

Sei, sim, que gosto de ver-te,

Que gosto até de estudar-te.

Nas faces sedosas tuas

Não brilha o rubor das rosas,

Retinge-as a palidez

Das compleições biliosas.

Estranhas cintilações

Mordentes, frias, geladas

Tens nos olhos baços, vítreos,

Azuis, da cor das espadas.

Teu lábio, sempre agitado

De leve tremor nervoso

Parece ressumar sangue

Com sede infrene de gozo.

Contorce-te as mãos pequenas

Espasmo fabricitante

Tem não sei quê de felino

Teu breve corpo ondulante...

Queres então que eu te diga

Meu sentir quando te vejo ?

Amor não te tenho não;

Porém morde-me o desejo.

A moça teve um deslumbramento: em seu espírito, subitamente iluminado, fez-se vácuo enorme, desmoronou-se fragorosa a mole das ilusões.

Pensava - Barbosa era casado na Europa, ela o tinha conhecido como tal, não podia exigir-lhe conta dos afetos que ele voltara em tempo à esposa, das recordações que dela porventura conservasse.

Mas ali não se tratava da esposa, tratava-se de três mulheres pelo menos - a dos cabelos que, escuros, tinham naturalmente por correlativo olhos pretos ou castanhos; a do fragmento em prosa, de olhos verdes; a da borracheira poética, de olhos azuis, cor de aço.

E quem sabe se não seriam seis ou mesmo sete: o bilhete podia ser de uma outra; a medalha azinhavrada, de uma outra; as flores secas, de uma outra, as bolinhas de lã branca, de uma outra ainda.

E que eram aquelas bolinhas de lã branca senão lembranças, troféus amorosos, colhidos de certo em cama desfeita, sobre lençóis ainda quentes, após uma noite de delírios eróticos?

Aquele homem era um devasso; um Dom João de pacotilha, e ela, Lenita, não passava de uma das suas muitas amantes.

Quem lhe dizia a ela que uma dádiva sua, que uma épave qualquer que lhe tivesse pertencido, não iria aumentar aquela ignominiosa coleção.

Em que dera seu orgulho, o alto conceito que ela formava do seu sexo, que ela formava de si própria!

Amante de um devasso, barregã de um homem velho, casado, que guardava troféus das conquistas... Bonito! Esplêndido!

Estava castigada e achava justo o castigo.

Tinha ido pedir à ciência superioridade sobre as outras mulheres; e na árvore da ciência encontrara um verme que a poluíra.

Quisera voar de surto, remontar-se às nuvens, mas a carne a prendera à terra, e ela tombara, submetera-se; tombara como a negra boçal do capão, submetera-se como a vaca mansa da campina. Revoltada contra a metafísica social, pusera-se fora da lei da sociedade, e a consciência castigava-a, dando-lhe testemunho de quanto ela descera abaixo do nível comum da mesma sociedade.

É loucura quebrar de chofre o que é produto de uma evolução de milhares de séculos. A sociedade tem razão: ela assenta sobre a família, e a família assenta sobre o casamento. Amor que não tenda a santificar-se pela constituição da família, pelo casamento legal, aceito, reconhecido, honrado, não é amor, é bruteza animal, desregramento de sentidos. Não, ela não amara a Barbosa, aquilo não tinha sido amor. Procurara-o, entregara-se a ele por um desarranjo orgânico, por um desequilíbrio de funções, por uma nevrose. Como a Fedra da fábula, como as bíblicas filhas de Jó, como a histórica mulher de Cláudio, ela caíra sob o látego da carne e, empurrada por um devasso ilustríssimo, resvalara ao fundo do pego, à última estratificação da vasa. Não, ela não amara, ela não amava a Barbosa. O que por ele sentira fora uma atração paulatina, gradual, viciosa, mórbida. A primeira impressão que recebera, ao vê-lo, não tinha sido boa; e as primeiras impressões é que fazem fé, porque são as que se produzem instintivamente no espírito desprevenido. Nesse momento em que ficava conhecendo a Barbosa como Barbosa realmente era, é que ela podia avaliar o báratro em que se despenhara. Pomba inocente, procurara por seu pé o açor, metera-se-lhe nas garras, e ele a conspurcara, não somente lhe arrancando a virgindade, mas debochando-a em práticas infames para despertarem os sentidos embotados...

Meteu tudo às pressas, desordenadamente, na caixinha, atirou a caixinha para a gaveta, empurrou com violência a gaveta, saiu, foi para seu quarto, entrou, fechou-se por dentro, atirou-se na cama; desatou em pranto.

De repente ergueu-se.

Que era aquilo? perguntou-se a si própria. Pois ela era mulher para chorar, para carpir-se, como qualquer criadinha de servir, violentada pelo filho da patroa? Não! Caíra, mas caíra vencida por si, só por si, por seu organismo, por seus nervos. O homem não entrava em linha de conta, não passava de mero instrumento: fora Barbosa; poderia ter sido o administrador, poderia ter sido o velho coronel. Enquanto quisera, gozara; estava saciada...

Uma idéia terrível atravessou-lhe o cérebro.

De pouco tempo, de um mês a essa parte, sentia-se modificar de modo estranho, moralmente, fisicamente: tomara-se irritadiça, tinha impaciências febris. Uma nuga, um nada a punha fora de si. Mal se alimentava: à simples vista da mesa posta, vinham-lhe engulhos, chegava mesmo a vomitar. Aberrara-se-lhe o apetite, desejava coisas extravagantes. Uma tarde vira um cacho de caraguatá à beira de um valo: quisera por força comer, comera, queimara a boca com o sumo cáustico da fruta da bromeliácea.

Com pasmo grande, sem poder dar a razão por que, via que Barbosa já lhe não inspirava admiração. As tiradas, as dissertações científicas, aliás corretas, que lhe fazia enfastiavam-na: ela achava-o desajeitado, vulgar, pretensioso; ganhava-lhe aversão; cria até perceber-lhe no corpo e na roupa um cheiro esquisito, enjoativo, o que quer que era como catinga de rato. Repugnavam-lhe as carícias dele, e, para chegar bem à verdade, elas incomodavam-na, de fato, topicamente.

Acudiu-lhe o dizer de Rabelais - "Les bêtes sur-leurs ventrées n'endurent jamais te malê masculant".

Estaria grávida?

Correu à cômoda, puxou uma gaveta, tirou um calendariozinho de algibeira, percorreu os meses, virando as folhas com rapidez: estavam a 20 de agosto, e o último dia marcado com uma cruzinha vermelha era o dia de São Pedro, 29 de junho. Mediava um espaço de cinquenta e dois dias...

Desabotoou o corpinho, desceu o cabeção da camisa, fez sair o seio esquerdo, globuloso, duro: baixou a cabeça para vê-lo, estendendo o beiço inferior. O auréolo, outrora róseo, imperceptível, acentuava-se retrato, pardacento, constelado de papilas ouriçadas. Não havia duvidar, estava grávida.

Sentiu ou julgou sentir que uma coisa qualquer se lhe agitava, se lhe enovelava dentro do útero. No mesmo instante apoderou-se dela um afeto imenso, indizível, por esse quer que fosse, que assim ensaiava os primeiros movimentos na ante-sala da vida. Era o desencadear de uma tempestade, de uma inundação nevrótica, que a invadia, que a alagavam como as águas de um açude roto invadem e alagam a planície. No amor enorme de que se via repassada, Lenita reconheceu o sentimento tão ridiculamente guindado ao sublime pelo romantismo piegas, e todavia tão egoístico, tão humano, tão animal - a maternidade.

— Que iria fazer? perguntou-se a si mesma, e, sem hesitar, respondeu-se — levar a bom termo a gestação, parir, criar, educar o filho, ver-se nele, ser mãe.

Dois dias se passaram sem que Lenita saísse do quarto, senão para ir a uma ou outra refeição.

Ao almoço do terceiro dia, uma quinta-feira, disse ao coronel que no domingo tencionava seguir para a vila, de lá para a cidade, e da cidade para São Paulo; que seus tarecos estavam arranjados, suas malas feitas; que precisava do carroção para conduzi-los, do trolley para conduzi-la a ela; que, saindo bem cedo, chegaria a tempo, teria ainda de esperar pelo trem, talvez uma hora.

— Que nova loucura era aquela? perguntou o coronel. Que ia Lenita fazer a São Paulo, assim de repente, sem quê nem para quê?

À insistência de Lenita, que a nada se demoveu, fez ele sentir que ao menos era preciso esperar ela vir Barbosa do Ipanema para levá-la; que, só, ela não podia, não devia ir; que ele, coronel, ameaçado e até já principiando a sofrer de um insulto de reumatismo, achava-se incapaz de uma vez para cumprir o dever de acompanhá-la.

— Que iria muito bem só com o moleque até à vila, volveu Lenita inabalável; que na estrada de ferro não se fazia mister companhia; que lhe era impossível deixar de ir.

As súplicas da entrevada, as instâncias e amuos do coronel, de nada aproveitaram.

O carroção coma bagagem partiu no sábado de tarde, e, no domingo cedo, Lenita de guarda-pó e chapéu de abas largas, abraçou, chorando, a velha; abraçou o coronel que soluçava como uma criança, subiu para o trolley, seguiu.

— Rapariga, gritou-lhe de longe o coronel, limpando os olhos, engasgado, você tem má cabeça, mas seu coração é bom, e eu quero-lhe bem deveras. Em toda e qualquer emergência lembre-se de que eu e seu avô fomos como irmãos, de que eu tive sempre a seu pai na conta de filho. Para tudo, mas mesmo para tudo, aqui fica o velho.

E acrescentou consigo:

— Nalguma coisa haviam mesmo de dar as físicas e as botânicas e as caçadas: foi nisto. Antes nunca esta rapariga se lembrasse de ter vindo aqui para a fazenda, ou antes Manduca lá se tivesse deixado ficar pelo Paranapanema. Agora é pegar-lhe com um trapo quente.

Seis dias depois da partida de Lenita chegou Barbosa. De nada sabia ele: o coronel não lhe tinha escrito.

Desde que transpusera a crista do morro, vinha alongando os olhares, à espera, a todo o momento, de divulgar o vulto da moça uma janela no terreiro, em qualquer parte. Antegozava o prazer de vê-la estremecer do júbilo ao enxergá-lo, de vê-la correr-lhe ao encontro pálida, trêmula, convulsionada pela emoção.

Lembrava-se da noite, e tinha calafrios; afastava, expediu da mente a lembrança do gozo, para também esquecer que lhe era preciso esperar tantas horas.

E às janelas ninguém assomava. No pardo sujo do terreiro esburgado, agitavam-se, passavam rápidas de uma para outra parte manchas azuis e encarnadas: era um lote de crioulinhos a correr, a bancar, vestidos de camisolas do baeta. Mais nada.

— Melhor, disse Barbosa consigo, vou surpreendê-la na varanda, em prosa com o velho.

Desceu, chegou à porteira.

A crioulada reuniu-se em um magote, e, alçando as mãos e tripudiando, começou de gritar uma melopéia cadente, afinada:

— Ai vem nhonhô! aí vem!

— Cala o bico, canalha! Barbosa, cruzando nos lábios índice da mão direita.

A crioulada afeita a obedecer, emudeceu.

Ele apeou-se, descalçou as esporas, atravessou o terreiro, entrou em casa, foi andando nas pontas dos pés até à varanda.

Estava deserta.

Dirigiu-se ao quarto do pai. Encontrou o coronel deitado, a gemer com o reumatismo. Na chaise-longhe do costume cabeceava a velha entrevada.

— Como vai, meu pai? Como está, minha mãe?

E beijou a mão de um e a testa de outra.

— Na forma do louvável...respondeu o coronel, sofrendo sempre... ai!... Este maldito reumatismo não larga... Como foi você de viagem?

— Muito bem.

— O engenho?

— Vem aí, chega amanhã a estação.

— Assim, pois, é preciso que sigam os carroções a esperá-lo, hoje mesmo?

— Basta que sigam amanhã.

— E veio coisa boa?

— Ótima. Algumas peças foram fundidas especialmente; fizeram-se os moldes sob meu risco.

— Muito bem, e quanto custou?

— Ficou barato; não anda em mais de três contos.

— Ai !... Você já jantou?

— Não, senhor.

O coronel sentou-se com esforço, tirou de sob o travesseiro uma chavinha, levou-a aos lábios, arrancou um assobio estridente, prolongado.

— Sinhô, gritou de dentro uma escrava, que logo assomou à porta do quarto.

— Nhonhô está aqui, e ainda não jantou.

— Sim sinhô, meu sinhô.

E, voltando-se rápida, desapareceu.

Barbosa não quis perguntar por Lenita. Ela estava de certo no quarto. Ele lá iria ter com ela. Pediu licença ao pai para sair: que se não demoraria, disse: que voltaria logo, para conversarem.

Chegou à sala de Lenita e sentiu um grande aperto do coração ao ver os consolos despidos, sem um bronze, sem uma estatueta, sem uma jarra de Sèvres, sem um defumador de Satzuma.

Foi à porta do quarto dormir, empurrou-a, estava fechada a chave; foi ao outro quarto, vazio. Empalideceu-se, encostou-se à ombreira da porta para não cair. Que era aquilo? perguntou-se. Para onde tinha ido a moça?

Voltou aos aposentos do pai.

— Meu pai, onde está D. Lenita?

— Se realizou o que tinha na intenção, está em São Paulo, em casa de um parente, do Fernandes Faria, ou qualquer hotel. Aquilo é uma doidinha.

— Pois D. Lenita foi para São Paulo?! exclamou Barbosa, como que recusando a evidência, como que fugindo à brutalidade do fato.

— Se foi ! Você a conhece pelo menos tão bem como eu: e desencabritando, desencabrita mesmo: não há pegar-lhe.

Barbosa deixou-se cair em uma cadeira.

Não estava pálido, não estava lívido: estava uma e outra coisa: tinha manchas cor de chumbo no rosto cor de terra.

Em suas feições havia alguma coisa da expressão que deve ter uma máscara de bronze, que, caída em uma fogueira, começa a entrar em fusão.

Conservou-se sentado por muito tempo, mal respondendo às perguntas do pai.

Chamaram-no para jantar; foi, sentou-se à mesa, cruzou os braços sobre ela, afundou a cabeça no ângulo formado pelo braço esquerdo, deixou-se ficar, imóvel.

Refletia.

Lenita ali não estava, não estava na sala, não estava no quarto, não estava no terreiro, não estava no pomar, não estava na fazenda. Ele a não veria mais, não lhe ouviria mais a voz suave, não lhe beijaria mais os lábios corados, não lhe beberia mais a frescura do hálito... Só... só... estava só !

Ela o provocara, ela se lhe oferecera, ela o procurara, ela se lhe entregara, ela s e prestara a todos os seus caprichos, mansa, dócil, submissa, para depois assim abandoná-lo, a sós com as lembranças, entregue à tortura da saudade!

Não, não era possível: Lenita ali estava, do outro lado da mesa; não se fora...

Ergueu a cabeça, abriu os olhos esgazeados e só viu diante de si a crioulinha servente, que abanava moscas, movendo preguiçosa e mole, para a direita e para a esquerda, um ramo de alecrim bravo.

Barbosa deixou cair de novo a cabeça, continuou no cismar doloroso, como quem se praz a revolver em uma ferida o ferro que a produziu.

Louco que fora!

Tinha tido dezenas de amantes, tinha sido, era ainda casado, conhecia a fundo a natureza, a organização caprichosa, nevrótica, inconstante, ilógica, falha, absurda, da fêmea da espécie humana; conhecia a mulher, conhecia-lhe o útero, conhecia-lhe a carne, conhecia-lhe o cérebro fraco, escravizado pela carne, dominado pelo útero; e, estolidamente , estupidamente, como um fedelho sem experiência, fora se deixar prender nos laços de uma paixão por mulher!

O tempo ia passando: o jantar arrefecera.

Barbosa levantou-se.

— Nhonhô não janta? perguntou triste a preta cozinheira que o observava da porta do corredor.

— Não, Rita, estou sem vontade, estou doente.

Saiu, chegou à porta do terreiro, circunspecionou os arredores.

Parecia-lhe morta a natureza: a paisagem figurava-se-lhe um cadáver, vasto, enorme.

Do diafragma subia-lhe para o coração um aperto constante, ininterrompido, doloroso, que lhe tolhia o fôlego, que o sufocava.

Queria chorar; o pranto, julgava, far-lhe-ia bem, seria um desabafo: impossível. Um ardor seco, febril, queimava-lhe os olhos.

No imóvel do arvoredo secular, na calma impassível das encostas amareladas, havia, ele pelo menos sentia, o que quer que era de hostil: essa indiferença majestosa irritava-o, era como um escárnio à angústia em que se estorcia seu espírito.

E tudo lhe fazia lembrar Lenita; na ante-sala, a cuja porta estava, a vira ele pela vez primeira por entre as torturas de uma enxaqueca; no pomar, de que avistava um ângulo, com ela tivera a primeira entrevista; no pasto, que se lhe estendia entre os olhos, quantas vezes não tinham passeado juntos; a mata fronteira, as caçadas, os pássaros, a cutia, os porcos, a cascavel... ah! a cascavel! Por que não sucumbira Lenita ao veneno da cobra? Por que a fizera ele viver?! Morta naquele tempo, ela seria apenas uma saudade doce, e não a lembrança voraz que o havia de matar.

Anoiteceu.

A escuridade, o silêncio, reprodução cruel da escuridade e do silêncio das noites de outrora, das noites de amor, que não mais voltariam acenderam-lhe, exacerbaram-lhe o pungir do sofrimento, o rolar da soledade.

Lembrou-lhe o suicídio.

— Ainda não, disse: esperemos.

Entrou para o seu quarto, deitou-se, fez uma injecção de morfina, dormiu.

No dia em que era esperado chegou o makhinismo.

Barbosa desenvolveu uma actividade febril.

Desengradou-o, armou-o, installou-o ele próprio. Multiplicou-se, dividiu-se: fez-se carpinteiro, pedreiro, serralheiro, maquinista.

Queria esquecer de dia, hypnotizava-se com trabalho, de noite, com morphina.

Pronto o engenho, a moagem continuou.

Barbosa tomou-a a si, dirigiu o serviço. O açúcar da fazenda criou fama.

— Eta ! rapazinho destrocido! dizia o coronel, é pau para toda a obra! Quem havia de dizer que ele entende mais de fabricação do que eu que lido com cana desde que me conheço por gente? Quem estuda sabe mesmo.

Mas... eu não ando contente com ele: estes modos que ele agora tem não são naturais, ele não os tinha. Aquela Lenita...

Em um dos dias da primeira quinzena de outubro, o moleque trouxe da vila, na correspondência, duas cartas sobrescritas por uma letra redonda, fina, bonita letra, letra de mulher.

Era de Lenita.

Barbosa a conheceu imediatamente.

Uma lhe era endereçada, outra ao coronel.

Barbosa tomou a sua, abriu-a e, pálido, muito pálido, com um ligeiro tremor a agitar-lhe as mãos, começou a leitura.

Dizia:

São Paulo, 5 de outubro de 1887.

Ao Sr. Manuel Barbosa envio muito saudar.

Mestre.

Ao chegar à fazenda, surpreendeu-se de certo com a minha partida um tanto brusca.

Procurou-lhe explicação, não achou: nem eu. Lembro-lhe o que diz Spinoza: "A nossa ilusão do livre-arbítrio vem de ignorarmos nós os motivos que nos dirigem". No caso desta minha partida, eu poderia bem crer que tinha livre-arbítrio. Demais sou mulher, sou fantasque. Quem vai discutir, explicar caprichos de mulher? Vale infinitamente mais non ragionar di lor, guardar, passar.

Qual tem sido a minha vida desde que vim da fazenda? Nem eu me sma sei.

Estudar, não tenho estudado; fui sábia, fui preciosa tanto tempo, que achei de justiça dar-me o luxo de ser ignorante, de ser mulher um poucochinho.

Mas, qual! ninguém é sábio impunemente. A ciência é uma túnica de Dejanira: uma vez vestida, gruda-se à pele, não sai mais. Quando se tenta arrancar, deixa pedaços de forro, que é o pedantismo.

E a prova é estar-lhe eu escrevendo, por não poder resistir ao prurido de comunicar as minhas impressões, de conversar um bocadinho com quem me entenda.

Que saudades não tenho eu às vezes das nossas palestras, das nossas lições, nas quais tanto se dissipava a treva da minha ignorância à luz do seu profundo saber.

O passado, passado: fomos como dois astros vagabundos que se encontraram em um recanto do espaço, que caminharam juntos, enquanto foram paralelas as suas órbitas, e que ora estão separados, seguindo cada qual o seu destino.

Vamos ao que serve.

São Paulo é hoje uma grande cidade, dou-lhe, sem receio de erro, sessenta mil habitantes.

Dia a dia, para norte, para sul, para leste, para oeste, está crescendo, está-se alastrando, é o que mais é, está-se aformoseando.

Os horríveis casebres dos fins do século passado e dos princípios deste vão sendo demolidos para dar lugar a habitações higiênicas, confortáveis, modernas. Os palacetes do período de transição, à fazendeira, à cosmopolita, sem arte, sem gosto, chatos, pesados, mas solidamente construídos, constituem um defeito grave que não mais desaparecerá. Obras, porém, há feitas, nestes últimos cinco anos, pelo arquiteto Ramos de Azevedo, pelo italiano Pucci e por outros estrangeiros, que são realmente primores de arte. Gosto imenso da Tesouraria da Fazenda que está construindo Ramos de Azevedo: é um edifício que honra São Paulo pela severidade e elegância do estilo, pela robustez que ostenta desde os profundíssimos alicerces até o levantado coruchéu. Aquela mole enorme forma um todo compacto, homogêneo, sem o mínimo defeito, sem uma trinca sequer de tassement. Quem viu o que ali estava.. cruzes!!! Para se avaliar o que era basta que se veja o anual Palácio do Governo, da mesma procedência. Os manes do Sr. Florêncio de Abreu podem se limpar as mãos à parede dos Campos Elísios, se é que os Campos Elísios têm parede. Desmanchar a velha, a maciça, a histórica, a legendária construção dos Jesuítas, para estender por ali fora aquele pardieiro medonho. Não sei por que não mandou botar abaixo também a capela... O Sr. de Parnaíba desvendou os mistérios da cripta dos padres de Loyola, rasgando uma porta no andar da torre dessa capela. À esquerda de quem entra, vêem-se distintamente seis covas sepulcrais, seis catacumbas, superpostas, em duas ordens, de três cada uma, praticadas na grossura enorme da parede. Entraram já cadáveres os que ali jazem, ou foram emparedados vivos, segundo a lei terrível do código secreto da Companhia? Ao governo, ao bispo diocesano, incumbe, corre o dever de mandar abrir aqueles jazigos, onde talvez se encontrem documentos importantes para a história da província.

O Chá, lembra-se bem, era mato quando eu estive com meu pai em São Paulo, pela primeira ver hoje é um bairro populoso, constituído por um vasto enxadrezamento de ruas direitas e largas, arejadas e mordidas de luz.

Há na cidade vários calçamentos a paralelepípedos. O antigo, famoso largo de São Francisco está que é um brinco.

A academia foi reformada.

Talvez eu não tenha razão; mas o caso é que eu a preferia exteriormente como ela era outrora. Tinha pelo menos o mérito de representar o gosto arquitetônico dos religiosos que dirigiram a colonização do Brasil. Hoje não representa coisa nenhuma, tem uma aparência limpa, mas desgraciosa e até caturra.

No alastrar da cidade, bairros unem-se, vão desaparecendo as soluções de continuidade predial: a Luz já pega com o Brás pela rua de São Caetano.

O comércio tem-se desenvolvido de modo assombroso, e a indústria segue-o de perto.

Há em São Paulo fábricas de móveis, de chapéus, de chitas, de bordados, de luvas, que rivalizam com as do Rio, e que estabelecem concorrência séria aos produtos europeus.

Nas ruas de São Bento e da imperatriz é enorme o acervo de lojas, e de armazéns, de casas bancárias, de estabelecimentos de todo o gênero.

As vitrines das casas de jóias entram em compita de riqueza e gosto: aqui a relojoaria suíça, delicada, elegantíssima, ostenta os seus primores, os seus inexcedíveis "Patek Philippe", a par dos artefatos sólidos da relojoaria americana, dos "Waltham" feitos a máquina, grossos, esparramados, angulosos, profusa e desgraciosissimamente ornamentados. Ali a prata do Porto, aereamente, maravilhosamente filigranada, casa sua alvura mate aos reflexos fúlvos da ourivesaria francesa, às cintilações mágicas dos brilhantes puríssimos do Brasil, dos diamantes coloridos do Cabo, dos rubis, das safiras, dos topázios, das ametistas, das opalas irisadas. A luz brinca nos lavores dos metais e nas facetas das pedrarias em um tal deboche de magnificência, que faz lembrar os contos de fadas, a caverna de Aladim.

Entrei ontem em uma casa de modas, a Mascote.

Atraíram-me a atenção bronzes de Barbedienne, expostos em uma vitrine interior.

Alguns eram reproduções dos que eu possuo, o hoplitodromo conhecido por gladiador Borghése, a Vênus de Milo, a Vênus de Salona: outros eu ainda não conhecia, o menino da cesta, por Barrias; a bacante do cacho, por Clodion.

Que bronze adorável este; que verdade nos panejamentos! Que morbidez suave de postura! No rosto o metal parece ter o emaciamento, a transparência fosca da pele viva. Os olhos como se cerram em um êxtase de volúpia...

Encomenda de Júlio Ribeiro, um gramático que se pode parecer com tudo menos um gramático: não usa simonte, nem lenço de Alcobaça, nem pince-nez, nem sequer cartola. Gosta de porcelanas, de marfins, de bronzes artísticos, de moedas antigas. Tem, ao que me dizem, uma qualidade adorável, um verdadeiro título de benemerência nunca fala, nunca disserta sobre coisas de gramático.

Veio receber-me um dos proprietários da loja, rapaz afável, parisiense nos modos, flor na botoeira do paletó, sorriso engatilhado.

Fiz alguns pedidos: tomou nota deles, para mandar-nos a casa, o outro sócio, irmão creio, do primeiro; moço grave, sério, de fisionomia leal, sempre ao bureau, sempre a escrever, tipo acabado do português antigo, trabalhador, honesto, pontual, pé de boi.

Em frente - a Casa Garraux, vasta Babel, livraria em nome, mas verdadeiramente bazar de luxo, onde se encontra tudo, desde o livro raro até a pasta de aço feita, passando pelo Cliquot legítimo e pelos cofres a prova de fogo.

Lá fui ver a exposição permanente.

Mal tinha eu entrado, entrou também um grupo de homens, três ou quatro, se bem me lembra.

Era um sujeito corpulento, coroado, limpo, no descambar da idade viril, ou melhor, no verdor da velhice. O bigode farto, betado aqui e ali por um fio de prata, e as longas costeletas acentuavam-se com nitidez no rosto fresco, caprichosamente escanhoado. O cabelo dividia-se em pastinhas despretensiosas no alto da testa vasta, ligeiramente redonda. Colarinho de pontas quebradas, gravata branca de nó, colete fechado até o nó da gravata, fraque, flor enorme na lapela, calças de casimira preta com listinha de seda branca, chapéu preto, alto, mole, sapatos Clark, pince-nez.

Belo homem, Ramalho Ortigão, já adivinhou.

Um dos que o acompanhavam era um rapaz alto, cheio de corpo, alvo de cabelos castanho-claros, quase louros, ondeados, de bigode crespo, de lábio inferior coroado, úmido; um causeur adorável, que o mestre disse-me ter encontrado uma vez em Campinas, e a quem eu fui apresentada um dia destes, em uma festa de anos, Gaspar da Silva.

Ramalho entrou em conversas com um dos sócios da Casa Garraux: eu, fingindo que examinava um livro, prestei-lhe toda atenção. Apanhei, dissequei, analisei cada uma de sua palavras.

Voz agradável, bem timbrada; pronúncia distinta, corretíssima; sotaque alfacinha puro, estranho, muito estranho a ouvidos paulistas.

Ramalho Ortigão é incontestavelmente um homem de combate, um grande escritor. Eu, porém, não gosto dele. Acho-o trabalhado, limado, castigado demais; acho qu'il pose toujours. Não escreve como Garrett, vazando a alma no papel: calcula o efeito de cada palavra, de cada frase, como um jogador de xadrez calcula o alcance do movimento de cada peça. Nos seus escritos há notas, há quantidades constantes, que reaparecem fatalmente. Encontra-se sempre uma admiração exagerada por tudo quanto é vigor muscular, por tudo quanto é manifestação de força humana física. O estadulho, a bengala grossa são fato imprescindíveis das suas teorias de moralização social. Afeta pelo asseio, pelo cuidado do corpo um culto que chega a se tomar impertinente. Não perde ensejo de contar que se banhou, que se barbeou, que mudou a roupa branca. Tanto repete, tanto insiste, que até parece ter um secreto receio de que o não acreditem. Escreve ele um livro novo: os seus leitores habituais já lhe conhecem, já lhe esperam as ficelles. Há de falar por força nas malas, nos apeiros de toilette, nos desinfetantes, na abundância de cuecas e peúgas. Tem frases feitas, uma por exemplo - todos os seus estandartes, todas as suas bandeiras, todas as suas flâmulas, todos os seus galhardetes, estão sempre a palpitar gloriosamente, estão sempre a bater em palpitações gloriosas.

Os livros de Ramalho Ortigão são excelentes, não há negá-lo, quer pelo fundo, quer pela forma. Bom senso e correção de linguagem até ali: ensinam a pensar, e ensinam Português.

O que eu não creio é que eles sejam um espelho, uma câmara escura para se estudar a individualidade do autor.

Entendo que não se pode ficar conhecendo a Ramalho Ortigão nem no Em Paris, nem nas Farpas, nem na sua parte de Mistério da Estrada de Cintra, nem nas Caldas e Praias, nem nas Impressões de Viagem, nem na Holanda, nem no John Bull: melhor do que em isso, fotografa-se ele nos seus depoimentos sobre a questão Vieira de Castro.

Seja como for, ontem foi para mim um grande dia: conheci um grande homem.

Agora, nós: o que mais de perto nos toca...

Seguiam-se algumas linhas criptográficas, em uma cifra que Barbosa e Lenita tinham combinado, desde os primeiros tempos de convivência.

Estou grávida de três meses mais ou menos.

Preciso de um pai oficial para nosso filho: ora pater est is quem instae nuptiae demonstrant.

Se tu fosses livre, fazíamos justas na igreja as nossas nuptias naturais, e tudo estava pronto. Mas tu és casado, e a lei de divórcio, aqui no Brasil não permite novo enlace: tive de procurar outro.

"Tive de procurar" é um modo de dizer: o outro deparou-se-me, ofereceu-se-me; eu me limitei a aceitá-lo e ainda impus-lhe condições.

É o Dr. Mendes Maia.

Ao chegar aqui, escrevi-lhe para a corte; ele veio imediatamente, tivemos trina conferência larga, eu fui franca, contei-lhe tudo e... e... e nós nos casamos amanhã, às 5 horas da madrugada.. Pelo trem do Norte, que parte às 6, seguimos para a corte, e da corte para a Europa no primeiro vapor.

Sei que te hás de lembrar sempre de mim, como eu sempre hei de lembrar de ti: calembour à parte, o que entre nós passou não se ouvida.

Não me guardes rancor. Fomos um para o outro o que podíamos ter sido; nada mais, nada menos.

A criança, se for menino, chamar-se-á Manuel; se for menina, Manuela.

A carta ainda continuava.

Barbosa, lívido, com as feições horrivelmente contraídas, rasgou-a em dois movimentos, atirou-a em um lamaçal, onde, com gáudio infinito, chafurdavam alguns porcos.

— Rameira! Prostituta vil! exclamou ele.

— Sabe você que mais? perguntou-lhe o coronel, que se aproximava. A Lenita casa-se! Escreveu-me, participando.

— A mim também escreveu ela.

— Sim? E ela a dizer que se não queria casar... Fiem-se lá em mulheres! Aquela partida repentina não teve outra causa.

— Não teve, não, volveu Barbosa.

A tarde levou-a ele toda a pensar, a malucar só consigo.

À noite não fez injeção de morfina, passou em claro, nem sequer se deitou.

No dia seguinte, cedo, saiu, deu uma volta pelo pomar, foi à mata, chegou à cova, demorou-se a contemplar os destroços do reparo, as do milho que tinham nascido e morrido estioladas pela sombra, sem produzir. Viu ainda por entre as folhas secas algumas vértebras, algumas espinhas da cascavel.

Voltou, passou pela fruiteira, em cuja copa uma araponga serrava estridulosa.

Viu no chão uma pena de jacu, desbotada pela umidade, suja de barro.

Ergueu-se, contemplou-a muito tempo, deixou-a cair.

Voltou para casa, não quis almoçar, pediu um banho.

Despiu-se, entrou na banheira, deitou-se, revolveu-se com delícia, na água tépida, aromatizada com vinagre de Lubin.

Após muito tempo saiu, enxugou-se com esmero, calçou ceroulas de linho, passadas a ferro, cheirosas, frescas, muito macias.

Chamou dois pretos, mandou esvaziar, retirar a banheira.

Foi à mesa, tomou uma garrafa de vinho húngaro, doce, perfumoso, Rusti-Aszú; abriu-a, encheu um cálice, examinou de encontro à luz a transparência cor de topázio queimado do precioso líquido, cheirou-o, hauriu-lhe o bouquet, bebeu-o como fino entendedor, aos golinhos, dando estalos com a língua.

Puxou uma gaveta, e dela tirou uma caixinha oblonga de charão: abriu-a. Havia dentro uma seringuinha de vidro, uma cápsula de porcelana, um escarificador de dez lâminas e um pequeno pote, esquisito, bojudo, de barro preto, arrolhado cuidadosamente com um batoque de madeira. Uma etiqueta em letras vermelhas sobre fundo amarelo denunciava-lhe o conteúdo.

Barbosa dispôs tudo isso sobre o mármore do criado.

Tomou o escarificador, fê-lo funcionar. Nove das lâminas tinham sido quebradas de adrede: uma só estava intacta, e essa cortava como uma navalha.

Barbosa largou o escarificador, pegou no potinho, fez cair dele, na cápsula, uns grãos irregulares, escuros, com quebraduras lustrosas.

Era curare.

De sobre a mesa tirou um moringue, deitou na cápsula cerca de duas colheres de água, e, com o bico da seringa, foi agitando, fazendo com que se dissolvesse o terrível veneno.

Quando inspissou-se a solução, assumindo a cor carregada de café forte, Barbosa encheu com ela a seringa.

Tomou de novo o escarificador, engatilhou-o, aplicou-o sobre a face interna do antebraço esquerdo, premiu o botão.

Ouviu-se um estalo abafado.

Barbosa retirou o escarificador.

Um pequeno traço, fino como um cabelo, desenhava-se-lhe negro na alvura da cútis.

Uma gotazinha de sangue ressumou, marejou, redonda, rubro, brilhante, como um rubim.

Barbosa largou o escarificador e, a sorrir, sem empalidecer pegou, segurou a seringa entre o índice e o médio da mão direita, introduziu-lhe o bico afilado na cesura, meteu o polegar no anel da haste, calcou firme, empurrou com força o pistão. O excesso do líquido injetado espandanou, desenhando-lhe na brancura da pele um como aracnide sinistro.

Barbosa lançou no ourinol o resto do conteúdo da cápsula, meteu-a com o potinho, com o escarificador, com a seringa na caixa de charão, escreveu em um bilhete de visita - Cuidado, que isto é veneno - pôs também o bilhete dentro, fechou a caixa, guardou-a na gaveta, foi ao lavatório, molhou uma toalha, limpou o braço, voltou para a cama, deitou-se de costas, ao comprido.

Passaram-se dois minutos.

Barbosa nada sentia, absolutamente nada.

Quis ver a cesura, tentou chegar o braço à altura dos olhos. Não pôde. O membro paralisado recusava-se à ordem do cérebro.

Tentou o mesmo com o braço direito, quis mover as pernas: igual impossibilidade.

Tentou sacudir a cabeça, fechar e abrir os olhos: sacudiu a cabeça, fechou e abriu os olhos.

Passaram-se mais alguns minutos.

Tentou de novo sacudir a cabeça, fechar e abrir os olhos. Impossível. A paralisia era já quase completa, quase total.

E não sofria dor, constrangimento de espécie alguma.

No terreiro abaixo, ao pé do engenho, os pretos estavam a malhar um resto de fegão que ficara de julho. Cantavam. A toada distante chegava a Barbosa, amortecida, em quebros suaves, como os das vozes angélicas de um harmônium. Do teto pendia uma jardineira de vidro com um epidendron fragans: Barbosa hauria com delícias os eflúvios embriagantes das flores da orquídea.

Na boca tinha ainda o ressaíbo suave, quente do vinho húngaro generoso.

A um canto do forro, aranhas domésticas fabricavam as teias: Barbosa distinguia-lhes bem os movimentos hábeis das pernas longas, esguias, nodosas, verdadeiros dedos de tísico.

Veio uma mosca, e pousou-lhe na face: com uma hiperestesia que chegava a ser um padecimento, ele sentia o prurido das patas do inseto. Quis enrugar a pele do rosto para afugentá-lo, não pôde.

E a percepção de tudo era clara, a inteligência perfeita.

Lembravam-lhe, acudiam-lhe de tropel à memória as metamorfoses mitológicas de homens, de mulheres em árvores, em rochedos.

O sonho extravagante da imaginação doentia dos poetas helenos era traduzido em realidade palpitante, era excedido no domínio dos fatos pela ação misteriosa do veneno americano.

— Oh, pensava Barbosa, não poder eu ditar a alguém o que em mim se está passando, descrever o gosto desta morte gradual, em que a vida esvai-se como um líquido que se escoa. Que sou eu neste momento? Uma inteligência que sente e quer, presa em um invólucro morto, cativa em um bloco inerte... O espírito, o conjunto das funções do cérebro, está vivo, dá ordens; o corpo está morto, não obedece. Tenho um pé na existência e outro no não-ser. Alguns minutos mais, e tudo estará acabado, sem sofrimento, sem dor... Já entrevejo o nirvana búdico, o repouso do aniquilamento...

— Manduca! Manduca!

Era a voz do pai que o chamava.

Barbosa ficou triste: queria responder e não podia.

— Teresa!

— Sinhô!

— Onde está Manduca? Você não o viu?

— Vi, meu sinhô. Ele está aí no quarto dele. Estava se banhando. Ainda há pouco Pedro e José saíram com a banheira.

— Que diabo, não responde... Só se está dormindo.

E o coronel dirigiu- se ao quarto, entrou.

Ao dar com o filho nu da cintura para cima, estendido de costas na cama, pálido, imóvel, olhos abertos, fixos, o coronel deu um salto.

— Manduca! Que é isso Manduca?!

E agarrando, abraçando o filho, sacudia-o nervosamente.

O corpo de Barbosa, flácido, quente, cedia aos esforços do pai, como um cadáver antes da rigidez.

E o cérebro, ativo, lúcido, em exercício pleno de funções, vivia, compreendia, sentia, tinha vontade, queria falar, queria responder ao pai; mas já não tinha orgão, estava isolado do mundo.

— Meu filho morreu! Meu filho morreu! bradou o coronel, e saiu desatinado, correndo com as mãos na cabeça.

A esses gritos deu-se um como milagre.

A velha entrevada firmou as mãos nas guardas da chaise-longue, fez um esforço supremo, ergueu-se, caiu de joelhos e começou a engatinhar para o quarto do filho, movendo as juntas quase anquilosadas de um modo que seria ridículo, se não fosse horroroso.

Em camisa, em uma seminudez indecente, escorregando pelo assoalho, às sacadas, aos solavancos, como um inseto mutilado, foi, chegou onde estava o filho, abeirou-se-lhe da cama, levantou-se; agarrou-se no colchão, guindou-se com dificuldade dolorosa, abraçou o corpo por sua vez, colocou-lhe nos lábios os seus lábios de velha, moles, franzidos, frios.

Aos beijos da mãe, beijos que não podia retribuir, Barbosa sentiu-se tomado de um sentimento estranho de uma ternura filial que nunca dantes conhecera.

Mãe! Pai!

Por que se não devotara com todas as suas poderosas faculdades a minorar os sofrimentos daquele casal de velhos, a suavizar-lhes as misérias da senectude?!

Descrente de amigos, descrente de amantes, descrente da esposa, ateu, farto do mundo, enjoado até de si, fora pedir aos gelos da ciência exclusivista a morte, a extinção dos últimos afetos.

Tomara-se egoísta, tomara-se cruel.

E tinha ainda o que lhe prendesse ao mundo: tinha pai, tinha mãe, tinha a quem se devotar, tinha para quem viver!

Que vingança cruel a da natureza!

Entregara-o de mãos atadas aos caprichos de uma mulher histérica que se lhe oferecera, que se lhe dera, como se teria oferecido, como se teria dado a qualquer outro, a um negro, a um escravo de roça, não por amor psíquico, mas para satisfazer a carne faminta...

Repleta, farta, essa mulher o abandonara.

Nas cinzas quase frias das suas crenças mortas ateara-se o lume do amor, o fogo da fé brilhara um momento, mas prestes se extinguira, e a escuridão voltara mais tétrica.

Lenita fora procurar e achara um homem vil que lhe vendia o nome para coberta do erro, que a aceitava por esposa, desonrada, grávida...

Grávida... Ela estava grávida, ele ia ser pai...

E ela fugia dele, levava-lhe o filho e ainda o ludibriava, descrevia-lhe em cínica missiva as suas observações de viajante, as suas impressões de artista! Fazia ainda mais, dava-lhe parte do seu enlace com o minotauro prévio e consciente, informava-o de que o seu filho, o filho dele, Barbosa, tinha de dar o nome augusto de pai a um homem sem brios, a um chatim refece de honra.

E ele morria, por amor dessa mulher, morria porque ela lhe quebrantara o caráter, morria porque ela o prendera nos liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe tomara impossível... Covarde!

O remorso personificado na figura lastimosa e quase hedionda de sua desgraçada mãe ali estava sobre ele, abraçando-o, devorando-o, bebendo-lhe os últimos alentos.

Oh! ele queria viver!

E não era impossível.

Se houvesse quem entendesse de fisiologia, quem estabelecesse a respiração artificial, até que fosse completamente eliminado o veneno, arredar-se-ia a morte, a vida voltaria.

Mudassem as circunstâncias, outrem fosse o paciente, e Barbosa salvava-o.

Mas por si, para si, nada podia fazer: enclausurado no corpo, como o lepidóptero na crisálida, estava impotente, estava aniquilado: nem sequer lhe era concedido o consolo triste de pedir, de implorar o perdão da pobre mãe, da mísera entrevada, a quem a angústia curara em um momento.

A placidez da morte sem dor, da morte pela paralisia dos nervos motores, converteu-se em um suplício atroz, pavoroso, para cuja descrição não tem palavras a linguagem humana.

Morto e vivo!

Tudo morrera: só vivia o cérebro, só vivia a consciência e vivia para a tortura...

Por que não ter despedaçado o crânio com uma bala?

A paralisia invadiu os últimos redutos do organismo, o coração, os pulmões, sístole e diástole cessaram, a hematose deixou de se fazer. Um como véu abafou, escureceu a inteligência de Barbosa, e ele caiu de vez no sono profundo de que ninguém acorda.

  1. Est Deus in nobis, agitante calescimus illo.
  2. « Fecha a porta. »
  3. « — Jeronymo, vôce pensou bem no que vôce vai facer, rapaz?

    —Pensei, mestre.» —Então você que mesmo alistar-se na irmandade de S. Miguel das Almas?

    —Quero mestre.»

    A palavra mganga é termo africano: significa senhor do tempo, distribuidor de chuva; e, por extensão, theologo, sacerdote, mestre.