Anexo:Imprimir/O Último Concerto

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Índice

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Vi-o pela primeira vez no teatro de Santa Isabel, em Pernambuco, em uma noite em que a companhia italiana, dirigida por d. José Amat, dava o Barbeiro de Sevilha, a feiticeira pérola da coroa rossiniana.

Nada tem a minha história com a arquitetura ou com a empresa lírica do teatro pernambucano. Deixemos, pois, o edifício do Santa Isabel, que era graciosíssimo, e o empresário Amat, que ouve a esta hora os gorjeios vibrantes da Adelina Patti, para nos embebermos unicamente na essência que produziu este conto fugitivo e real, como a imagem da vida comum. Às oito horas em ponto apoderei-me da minha cadeira, pouco distante da orquestra. O regente moveu agilmente a batuta e os instrumentos entraram em campo, atacando com brio e com amor a introdução da ópera monumental.

Eu havia chegado da Corte poucos dias antes, e não estava disposto a perder a mais sutil particularidade da vida elegante de Pernambuco. Na véspera gozara os suaves eflúvios das auras do Caxangá; na antevéspera dormira em Apipucos, com as janelas do quarto abertas aos quatro ventos do céu e ao melancólico clarão da lua aventureira.

A orquestra deu-me desde o princípio a conhecer a inteligência dos professores que a compunham e do maestro que a regia. A introdução do Barbeiro, viva, cristalina, eloqüente, ora sentida como um amuo entre lágrimas, ora turbulenta como as gargalhadas de uma infância traquinas, prendia a minha atenção de turista à fiel interpretação musical da jóia de Rossini.

As senhoras nos camarotes, cheias de interesse, de pedrarias e de sorrisos, aspiravam os sons diáfanos das originais harmonias; os dillettanti sentavam-se caprichosamente limpando os vidros do binóculo e o cristal dos pince-nez indiscretos.

No meio da grandiosa ouverture, a flauta incumbida de um solo brilhante espalhou com uma etérea onda de melodias o profundo silêncio da atenção e do êxtase em todo o teatro.

Nos camarotes os leques colheram as buliçosas asas; na platéia os murmúrios e os diálogos cessaram como por encanto, à primeira nota do mágico instrumento.

A flauta era acordada por sopro de mestre, uma brisa inspirada percorria-lhe o misterioso tubo, extraindo daí cardumes de sons peregrinos que voavam em redor de todas as almas como um bando de segredos divinos.

Não pareciam notas de instrumento tangido por força humana, pois só o vento que surpreende o eco, só hálito da tarde que desperta o arvoredo possuem vozes assim, tão macias, tão brandas e tão magoadas.

As palmas na platéia e os lenços nos camarotes receberam os últimos ais do predileto instrumento.

Foi tal o sucesso, que por um minuto o regente suspendeu a orquestra em massa.

— Bravo, Salustiano! — gritavam as vozes frescas da mocidade acadêmica.

— Viva o Salustiano!

— Bis! Bis!

— O solo!

— O solo, Salustiano!

Recrudesciam as palmas, multiplicavam-se os bravos, e os aplausos, de animados que eram, chegaram a tocar a veemência do delírio.

Não houve remédio; apesar do olhar trôpego do delegado e de cinco ou seis fardas imponentes do camarote policial, o regente da orquestra voltou a página da partitura, e a meiga flauta, a adorada flauta, a flauta tentadora, ergueu-se de novo como um incenso de melodia naquele religioso silêncio do amor e da admiração popular!

Quando precipitaram-se as novas ovações, no final do solo, Salustiano levantou-se do fundo da orquestra e inclinou a cabeça comovida perante o público, arquejante de entusiasmo.

Era um rapaz de 22 a 25 anos, pálido e formoso como aquele Rafael de Lamartine, cujo retrato todos nós gravamos na nossa alma, depois da leitura das castas estrofes do mais inspirado livro deste século.

Fulgurava em seus negros olhos o tranqüilo astro do gênio, que derrama sobre as fisionomias favoritas da divindade uma aurora imortal. Ele sorria tímido quando saudou o público, e a flauta estremecia em suas mãos, como o arco da rabeca entre os dedos de Paganini na hora dos supremos triunfos.

Momentos depois, ergueu-se o pano, e Rossini, auxiliado por uma ruim companhia ambulante, apoderou-se da atenção pública.

Menos da minha; durante todo o primeiro ato não afastei os meus olhos do semblante pensativo e meigo de Salustiano.

Quatro meses depois, batia eu à porta da casa n.o 54 da rua da Roda, onde morava Salustiano em companhia de sua mãe, e de uma raquítica megera, que lhes servia de criada. Já nós nos dávamos com essa franca e cordial expansão da mocidade, tão pronta a entregar-se e a sacrificar-se entre dois sorrisos

Ele estava de cama, atacado por uma febre violentíssima. Quando me abriram a porta, saía o médico. A velha mãe do artista apertou-me as mãos afogada em lágrimas e soluços.

— Ânimo!

— É o que lhe digo — acrescentou o médico, continuando o meu pensamento; — o moço, embora gravemente enfermo, salva-se com toda a certeza.

— Deus o ouça, meu senhor!

— Mande já a receita à botica, e não se esqueça de ministrar-lhe a beberagem: um cálix de meia em meia hora.

— Vá descansado, sr. doutor

A velha apresentou-me ao descendente de Esculápio. Estendemo-nos as mãos, e ele chamando-me de parte.

— É conveniente que o senhor fique por aqui até a minha volta. A febre é traiçoeira, e se o delírio aumentar, não há braço de mulher que contenha o Salustiano.

— Com todo o gosto fico doutor. Interesso-me por este moço, e se for necessário passarei a noite inteira ao pé dele.

— Bravo. Vou mais tranqüilo, adeus. Pouco me demorarei.

Penetrei na alcova do doente, Impressionado deveras. A luz da velha lâmpada, posta discretamente na penumbra, aclarava em moles raios o silencioso aposento.

Salustiano estava lívido como um cadáver, e de sua boca entreaberta escapava-se o silvo agudo da respiração intermitente e febril. Os seus olhos meio cerrados nadavam em luz, e uma crispação nervosa sacudia-lhe às vezes o corpo da cabeça aos pés, como ao contato de uma pilha de volta.

A mãe do artista, sentada em um canto da alcova, ora limpava as lágrimas, ora desfiava, murmurando, as contas negras do rosário.

O quarto do Salustiano era um genuíno quarto de boêmio.

Na cintilante cal da parede viam-se duas ou três figuras de odaliscas e um retrato de Pergoleso. Junto à cabeceira gemia uma carunchosa estante ao peso de uma porção de livros de música e das obras completas dê Henrique Heine, seu escritor predileto.

No meio de tudo isso mortalhas de cigarros esparsas, dois cachimbos funambulescos e o busto de Petrarca, coroado de rosas e de louros.

Sentei-me defronte do doente e esperei. Um despertador colocado sobre a mesa, cheia de garrafas de medicamentos, quebrava a mudez do quarto com as suas longas e soturnas palpitações.

Pobre Salustiano! Ali estava ele talvez às portas da morte, com pouco mais de 20 anos e um surpreendente talento, digno da imortalidade na Terra e no paraíso! Ninguém o acompanhava nos seus amargurados transes, senão as dolorosas lágrimas maternas e o simples cuidado de um amigo, por assim dizer, da véspera, um amigo como se encontra tantas vezes na mocidade, entre os rumores de um festim e à beira de um túmulo insondável.

Eu me prendera pela simpatia e pela admiração ao engenhoso flautista, e desde a noite do Barbeiro de Sevilha Salustiano abriu o rol dos meus mais queridos companheiros. “A la vie! A la mort!”, como era a divisa do Antony.

Aquele dia era um sábado. O sábado, em Pernambuco, desde o toque de recolher, assemelha-se às mais formosas noites de Sevilha, em que dizem que os suspiros do amor e os suspiros das serenatas cruzam até o romper da alvorada, através dos flutuantes clarões da lua!

Enquanto eu me perdia em tristes pensamentos com os olhos fitos no busto melancólico do doente, parou pouco distante da casa um grupo, e os sons maviosos de uma flauta acompanhada a violão espalham-se lentamente na sua atmosfera.

Salustiano abriu os olhos e apertou com os dedos frios a cabeça abrasada.

Aproximei-me rápido, e a velha correu ao meu aceno. Apoderamo-nos ambos das mãos do artista.

A flauta na rua exalou mais plangente melodia, e as cordas vibrantes do violão pareceram soluçar convulsivamente.

— Ouçam! — murmurou Salustiano pondo o dedo sobre a boca. — É assim que começa o hino! O grande hino! O sublime hino!

— Salustiano!

— O hino da mocidade! — terminou ele, caindo como uma massa inerte ao longo da cama.

O médico, que entrava, examinou atentamente o pulso do doente.

A serenata estava no auge do entusiasmo.

Salustiano veio convalescer em minha companhia.

Aluguei para esse fim uma pequena e graciosa casa em Olinda, onde acondicionei a limitadíssima família do artista. Eu freqüentava nesse tempo o quarto ano acadêmico, e, depois da aula, voava ao meu silencioso sítio, em cujo limiar os dois hóspedes recebiam-me como se recebe um irmão e um filho estremecido.

Olinda é uma das mais encantadoras paragens do mundo.

Para os amigos da solidão, da paisagem e do silêncio, nada vale aquela cidade peregrina, plantada à beira d'água, e que contempla pensativa o mar, como a noiva de um marinheiro à espera da adorada vela do seu amor.

À tarde, eu e o artista sentávamo-nos em uma espécie de terraço que deitava para o nascente, e líamos alguma coisa, quase sempre o Intermezzo de Reine, de que ele era apaixonadíssimo.

E enquanto os navios singravam ao longe, e as jangadas perdiam-se na barra inflamada no horizonte, a alma daquele sublime rapaz bolava como uma gaivota nas doces ondas da inspiração e da poesia:

LV

“A floresta despertou ao som precipitado dos meus passos e eu vi as árvores agitarem os ramos, murmurando piedosamente e compadecendo-se do meu destino.

LVI

Em campos agrestes e desertos enterram-se os infelizes que se suicidam.

Ali nasce uma flor azul; chamam-lhe a flor da alma maldita.

Parei nesses campos e desprendi um suspiro. A noite estava fria e silenciosa. Aos raios frouxos da lua, eu via mover-se brandamente a flor da alma maldita.

LVII

Uma negra escuridão cobre os meus olhos, depois que os não a alumia a luz dos teus, ó meu anjo idolatrado!

A estrela do amor apagou-se para mim; vejo aberto um abismo diante dos meus passos; oh! noite eterna, sepulta-me para sempre no teu regaço!”



— E haverá melhores harmonias do que as desta protetora lira? — dizia-me o Salustiano, com os olhos úmidos e extáticos. Repara naquele brigue que aproa para nós; vê como o clarão do sol no poente envolve-o como que de uma bênção divina! Ler-se Heine, desta maneira, é gozar duas vezes a poesia; pelos olhos e pelos ouvidos! Lê, lê!

Voltando alguns capítulos do Intemezzo, eu continuava:

LVIII

“A tempestade faz gemer a frondosa ramagem das árvores, a noite está pesada e fria; eu atravesso o bosque no meu altivo e impaciente corcel. E enquanto o meu cavalo galopa, os pensamentos que me borbulham na mente transportam-me aos pés da minha amante.

Ladram os cães, aparecem os criados com archotes; eu subo a escada, fazendo tinir as minhas estridentes esporas.

Em um aposento atapetado e resplandecente com a chama de milhares de luzes, no seio de uma atmosfera serena e embalsamada, minha amante espera-me. Caio delirante entre os seus braços!

E o vento fustiga as folhas do carvalho, e elas parecem dizer no seu murmúrio lúgubre:

‘Para que te deixas dominar, louco cavaleiro, de insensatas ilusões!”

O crepúsculo, cujo véu obscuro caía lentamente sobre as ondas e envolvia a terra silenciosa, interceptava-nos a leitura do poema.

A velha, com medo do sereno, reclamava para o interior da casa a presença do filho, e terminávamos a noite, antes de nos recolhermos, ele a seguir o vôo das mariposas em redor do lampião, eu a folhear as Ordenações do Reino e os contos de Nodier.

Um dia Salustiano disse-me:

— Há um segredo na minha alma que preciso te revelar. Um segredo profundo como o mar, e perigoso como ele.

Contemplei-o atônito; nunca sua voz soara em meus ouvidos com tão fúnebre entoação, nem seus olhos despediram tão lúgubres centelhas.

— Há um segredo em minha alma! — repetiu o artista.

A natureza parecia querer ser intérprete das confidências misteriosas de Salustiano. O céu, pensativo e curioso, acendera todas as suas pupilas, e um milhão de aragens molhava a asa no mar e nas flores, à cata de segredos. As ondas sussurravam na praia alva e longa, a lua entornava o tesouro de mágicas ardentias, e no mar alto vogavam, mal surpreendidas por nossos olhos enevoados, as velas dos navios que abicavam ao porto, lutando com a maré e com os ventos contrários.

Salustiano tomou-me as mãos inquietas entre as suas:

— Crê, meu amigo, um mistério profundo me persegue como a minha sombra, como o meu sangue, como a minha alma. Dir-se-ia que Deus deu-me o gosto e o sentimento da poesia unicamente para que eu medisse o espaço que a desventura ocupa no meu coração! Amo, amo perdidamente uma mulher!

— E é essa a tua desgraça?

— É, sim; a minha desgraça está nesse amor. Não leste nunca a história de Bernardim Ribeiro e as aventuras do Tasso, pobres vermes sublimes apaixonados por uma estrela? Pois eu sou como eles. Estou apaixonado por uma estrela!

Salustiano ergueu os olhos ao céu, respirando sofregamente.

— Que estrela? — perguntei eu, gracejando. — Vésper, Mercúrio, Saturno, Minerva, Vênus, Júpiter? Estarás apaixonado por Júpiter, Salustiano?

— Júpiter, o rei dos raios? Justamente! O meu astro fulmina, meu caro, arrasa, pulveriza, incendeia! Tu a conheces; é a mulher mais bela do mundo; e decerto o anjo mais desejado do céu.

— Oh!

— Não rias. Poupa-me o teu espírito hoje, e deixa que esta confissão corra pacífica e suave como todas as confissões em que entra a alma.

— Está dito. Conta-me a tua paixão.

— Não é propriamente uma paixão mundana; não é o amor; não é o desejo; não é o entusiasmo; não é o coração. É o êxtase e o misticismo. Encontrei-a um dia... Mas para que recordar-te coisas que não podem te interessar absolutamente?

— Continua!

A velha chamou o filho por duas ou três vezes. Caía o sereno com o terno raio das estrelas.

— Eu sou pobre, como sabes; pobríssimo até; sou um miserável...

— Grande termo! Um miserável!

— Um miserável na extensão da palavra. O burguês que encontra na gaveta uma moeda de vintém, e na mesa uma côdea de pão, é mais feliz do que eu. Muito mais feliz.

— Estás hoje digno de um taquígrafo!

— Ri-te, tu que possuis um pai, uma família e tens um correspondente que te compra livros. Em vão, meu filho, em vão tentarás devassar com a vista impotente o negro abismo em que se estorce a miséria! Ser proletário é pouco; sentir a dor dessa lepra é que é horrível. Eu a sinto, Luís! Sinto-a com as maiores torturas e com as mais amargas lágrimas!

Minha alma pendia dos lábios vibrantes do artista, como um virtuose das cordas trêmulas de uma rabeca ou do tubo de uma flauta Inspirada.

— A minha estrela, esse astro fatal que conduz os poetas e os artistas, iluminou-me o espírito e arremessou-me ao canto obscuro de uma orquestra, em cujo trabalho mal chegavam minhas mãos a arrecadar o pequeno óbolo para o sustento desta infeliz mulher que me deu a vida. Como eu invejei, como eu invejo Bellini, Rossini, Mercadante, Donizetti, Beethoven e os outros mestres! Esses foram os prediletos do Senhor, e as suas inspirações, bafejadas pelo sopro divino, impuseram-se ao mundo com o fulgor dos fenômenos e a grandeza dos milagres!

— Espera, Salustiano. Para ti é que o futuro reserva palmas e coroas. Verás.

— Porque sou moço; não é verdade? Deixa-te disso. Eu nasci com a desventura amarrada às costas, como o caramujo com a inseparável concha. Esta desventura atroz é a minha existência; sem ela, eu morreria, embora nadasse em mares de dinheiro e me reclinasse aos coxins da opulência. Há quem venha ao mundo para ser banqueiro, quem venha para ser poeta, artista, bandido, parricida ou milionário. É o destino, meu caro. O destino inexorável e fatal. Quanto a mim, vim ao mundo com a seguinte sina: amar a glória impossível e a mulher mais impossível ainda. Eis o caso do canto de Heine ou de Murger: um grilo amante da estrela Vênus!

— E a tua flauta, louco!

Os olhos do artista chamejaram na sombra.

— A minha flauta? É a minha perdição, é a minha tortura, é o meu abismo! Que de dores tenho tragado por causa dela, Deus do céu! Foi em uma noite da Traviata — continuou ele, com a voz vacilante e a face lívida, como um condenado que se confessa no último degrau do cadafalso -, em uma noite em que o teatro estava cheio até a última galeria e uma atriz festejada incumbia-se pela primeira vez do tipo da Violeta. Ela estava no teatro...

— Ela?

— Não me perturbes! — exclamou Salustiano torcendo-me a mão nervosamente. — Ela estava no teatro. Bem defronte de mim; risonha, coberta de flores, de brilhantes e de cetins voluptuosos...

No fundo do camarote o pai contemplava-a com um olhar meigo e persistente. De seus olhos escuros escapava-se a irradiação de um céu inteiro, quando a noite vai calma e o mar adormece aos melancólicos afagos do vento! Por mais que meus olhos a procurassem, ela entregava-se venturosa aos meneios do seu leque e às frases perfumadas que um ou outro elegante, nos intervalos, dirigia-lhe em furtiva visita. Subiu o pano no quarto ato. Toda a sua alma embebeu-se no feiticeiro poema das lágrimas e das amarguras que em cena se desenrolava. Da pupila úmida desprendia-lhe um terno lampejo, e sua boca entreaberta deixava escapar suspiros mais chorosos e puros do que todas as melodias de Verdi... Incumbido do acompanhamento da célebre romanza final, estremeci tomando a flauta, como um assassino quando levanta o punhal sobre um peito indefeso. As luzes do salão multiplicaram-se à minha vista ansiosa; os aromas invadiram-me vertiginosamente; orquestra, teatro, luzes, público, Verdi, artistas, tudo desapareceu ante meus olhos paralisados, e só ela, ela só, erguia-se na noite tempestuosa de minha alma, à semelhança de um astro que rompe o nevoeiro da chuva ou o sorriso de uma mãe que transparece através de nossas mais tormentosas lágrimas!...

A prima-dona volvia o olhar assustado para a orquestra; o regente agitava a batuta; o povo murmurava... Que tinha eu com esse mundo estúpido, incapaz de compreender-me?

O sangue fervia-me nas artérias; a luz fugia de meu espírito; palpitava-me sôfrego o coração, e com a vista cravada nela, que, como todos, me contemplava indiferentemente, deixei cair das mãos a flauta inútil, saboreando o prazer inefável da minha ventura, das minhas dores, dos meus triunfos e das minhas alegrias simbolizadas naquela criança esplêndida e cruel! Arrancaram-me das mãos o maldito instrumento, e não sei como continuou o espetáculo.

No dia seguinte lembrei-me da ridícula cena, enquanto minha mãe chorava à cabeceira de minha cama e o médico estudava-me o pulso e a cabeça.

— Salustiano! — exclamou a velha pela centésima vez. Levantamo-nos ambos e dirigimo-nos ao interior da casa.

O artista disse-me ainda quase ao ouvido:

— Eu te hei de mostrar. Se morrer em breve, crimina-a porque morro por causa dela.

— Ora!

— Morro.

Salustiano T., ao autor.

A bordo do Cruzeiro do Sul, 20 de outubro de 186... Meu caro Luís. — Vou deixar-te esta carta na agência dos paquetes nacionais, no Ceará, em cujo porto fundearemos amanhã, se não falharem os cálculos do comandante Alcoforado. O mar está furioso; o vapor joga como um endemoninhado e o vento norte assovia arrogantemente nas gáveas e nos mastros despovoados.
Que tristeza, meu caro! Que tristeza apodera-se de minha alma e que dolorosíssima saudade! Desventurada existência de artista! Hei de estar sempre exposto a todos os perigos e contrariedades para conseguir um pouco de pão, enquanto os imbecis comem à farta em lautos banquetes.
Na realidade, vale a pena correr atrás da glória. Porque, digamos em confidência, eu amo a glória e o triunfo com uma fatal persistência e um inaudito arrojo. Que queres? É o único meio de aproximar-me a ela. A glória é uma escada de luz que devora o espaço aberto entre as ervas e as estrelas.
O mar geme neste momento como um moribundo impenitente. O vento diz coisas lúgubres, zunindo de encontro aos capacetes flutuantes das ondas, e o horizonte estende-se sobre nossas cabeças, escuro e fúnebre como uma ameaça.
O comandante por muito favor concedeu-me o seu beliche, onde eu escrevo-te estas mal amanhadas linhas. O Byron foi um doido quando teceu ditirambos engrandecendo o enjôo, e o meu adorado Henrique Heine no mar do Norte mentiu dando ao Oceano qualidades que o pobre velho nunca teve nem terá. Poetas! Poetas! Desculpa se te toco na ferida.
Tens ido ao Caxangá? Tens ido a Apipucos? Dá lembranças ao fotógrafo alemão que me fez o supremo beneficio de me ceder um retrato, companheiro hoje da minha saudade e das minhas veementes aspirações.
É o retrato dela! Imagina que felicidade! O retrato dela, pensativa e formosa como um anjo que está recordando-se das primaveras eternas do céu!
Sei que teimas em saber o nome da minha feiticeira. Desculpa-me o mistério. Tenho eu próprio medo de pronunciá-lo a sós, aqui mesmo, no meio do mar e da noite. Poderiam as ondas levá-lo e, espalhando-o em ouvidos indiscretos, revelarem o meu criminoso segredo ao mundo.
Procura-a nas melhores reuniões, nos melhores bailes, nas mais suntuosas festas, que a encontrarás com certeza. Ela e a alma da beleza, e ao seu contato não há quem deixe de sentir a influência magnética que os seres privilegiados exercem geralmente.
Amaldiçoado e bendito amor! Por que motivo a sociedade e o destino separaram-nos um do outro com tanta crueldade! Ah! meu amigo! Eu daria satisfeito metade de meu sangue para poder cair, rojar-me aos pés dela beijando entre lágrimas de divina alegria as margens do seu vestido perfumado, ouvindo em êxtase a sua voz, que me perdoasse.
Tenciono demorar-me no Pará o tempo suficiente apenas para dar alguns concertos e matar os desejos da minha mãe: ela ansiava por esta viagem; é uma paraense dos quatro costados, que necessita de vez em quando saborear as aragens natais de suas virgens florestas, sob pena de morrer aos poucos de nostalgia e de tristeza.
Pobre mãe!
Anteontem fez um dia soberbo e o mar estava manso como a lanugem de uma ovelha... Encostado à amurada do vapor, pus-me a contemplar o firmamento e uma velinha branca que bordejava nas vaporosas plagas do horizonte. Lembrei-me de Olinda, e senti mais do que sempre a tua falta, meu bom, meu único amigo! Qual será o destino que o céu me reserva? A ventura não foi criada para mim, e parece-me que as coroas do meu triunfo eram entrançadas com os goivos melancólicos da morte.
Antes que me esqueça, devo dizer-te: não estou bom, creio mesmo que estou bastante doente. Vem a bordo um médico, o dr. Ramos, da Bahia, a quem pedi que me auscultasse e aconselhasse. Disse-me que eram cismas minhas.
Cisma! Pode ser, mas afianço-te que há momentos em que tenho medo de ficar doido. Correm-me nuvens nos olhos, e um frio de morte apodera-se de meu corpo todo. Um cortejo extravagante, imagens burlescas, e sérias, pensamentos lúgubres e joviais, todo esse imbroglio rodeia-me em sonhos e quando estou acordado, a ponto de me aterrorizar.
No meio disso, porém, através dessas tempestades absurdas, fulgura o rosto e irradia o sorriso daquela mulher como o arco da aliança, como os primas da minha existência, submersa em um dilúvio de lágrimas. Adeus; é tarde, e sinto-me fatigado. Lamenta-me e estima-me, hei de mandar-te contar os meus sucessos ou desastres no Pará. Deus não há de ser mau para mim, que dizes? Conceder-me-á a suprema ventura de morrer na terra em que ela habita, respirando pela última vez os ares que lhe dão vida, mocidade e beleza.
Recomenda-me ao Colas e ao Coimbra do Santa Isabel. Aperta-te as mãos o teu velho e saudoso amigo

Salustiano T.

”

Nessa como em mais duas ou três cartas que Salustiano me escreveu, o espírito do artista parecia vacilar; raras vezes seguia um pensamento judicioso, e desde o momento em que sua pena lembrava a mulher adorada, vinha logo adiante uma fileira de palavras extravagantes, apaixonadas, dolorosas, que refletiam o estado anormal daquela miraculosa alma, tão digna de pairar na serena atmosfera da glória e da riqueza.

Fui uma noite ao Clube Pernambucano. Intrigava-me deveras o mistério dentro do qual o artista metera o seu amor, com o ciúme da concha quê acoita a pérola e da onda que sepulta as bagas do coral.

A mocidade impelia-me à descoberta do segredo, e nessa noite a nova diretoria do Clube abria os elegantes salões com um opulento baile.

Entrei às 11 horas e percorri avidamente com os olhos o grande salão festivo, em que cruzavam-se gazas, casacas, diamantes, flores e sorrisos. A orquestra enchia o ar de harmonias arrebatadoras; um denso aroma de cravos e rosas pejava a tépida atmosfera; e os leques adejavam como asas fugazes em plena primavera de amor.

Passava no turbilhão uma menina formosa, de olhos mortos e seio ofegante. Será esta?, perguntava eu a minha alma curiosa. Mais adiante outra curvava-se sorrindo à palavra lisonjeira do cavalheiro. Será aquela? Ou aquela outra, que arrasta com o aprumo de uma rainha a longa cauda dos vestido de cetim azul orlado de flores de ouro?

À uma hora da madrugada recrudescia o meu afã e o mistério ainda se conservava coberto pelas suas mil dobras, ante o mau espírito quase desanimado. Dei o braço a um amigo e fomos à janela principal receber o ar frio da noite.

Conversavam vivamente duas meninas, duas crianças de 15 a 18 anos, no vão da janela. E não voltas tão cedo para a cidade? — perguntava a que parecia mais moça.

— Não. Eu adoro aquele sossego! Faz bem ao coração! Olha, esta vida de barulhos e de testas cansa afinal! Houve tempo em que, se papai me tirasse da cidade, eu morreria!

A outra rui-se maliciosamente, batendo-lhe com o leque no rosto Ela ergueu os ombros nus, com um desdém esplêndido e levantou os olhos ao céu. Era uma admirável criatura, alva e contornada como um busto grego. Os cabelos enroscavam-se-lhe em volta da fronte alta, formando na nuca um tufo espesso que se desmanchava em ondas revoltas. Vestia uma simples toalete branca, envolta em primorosas rendas, e da cintura à fímbria roçagante deslizavam-se-lhe duas orlas de trepadeiras rubras como lágrimas de sangue.

Seus lábios meio abertos pareciam estar sempre aspirando os aromas de um mundo desconhecido.

— Conheces esta moça? perguntei em voz baixa ao meu amigo.

— Já a vi no teatro e nos Apipucos, creio eu. Mas no clube é a primeira vez!

Um sujeito pingue e condecorado chegou-se ao grupo formado pelas duas meninas, trazendo no braço um forte albornoz de caxemira cor de pérola.

— Vamos?

A esplêndida criatura voltou-se rapidamente.

— Oh! papai! Vamos!

Um dos diretores do baile aproximou-se agitado.

— Quê! Já, sr. comendador?

— Estou incomodada! — acudiu a menina com certa impaciência, recebendo a capa, e curvando-se para o velho estender-lha nos adoráveis ombros.

Voltou-se à companheira, e beijando-a nas duas faces:

— Agora, até quando?

— Breve!

— Qual! Não há mais teatro lírico! Só aí é que podia ver V. Exa.! — disse ela gracejando.

Senti um aperto íntimo e brusco.

— É ela; não há dúvida — exclamei.

Momentos depois, parou um carro à porta do Clube, e a formosa, ao subir o estribo, leve como uma visão, abandonava à brisa traiçoeira, que a conduzia até nós, uma vaga de perfumes provocadores.

Os cavalos fustigados arrebataram o cupê com uma velocidade pasmosa. Retirei-me também do baile, lutando entre as suspeitas que me assaltavam.

Antes de deitar-me, escrevi ao Salustiano as seguintes linhas.

“Descobri o teu segredo. Tens razão, pobre Bernardim! Estás apaixonado por uma princesa!”

Deixei de receber inteiramente cartas do Salustiano. Esperei três, quatro, cinco vapores da linha do norte. Fui a bordo do Tocantins, com cujo comandante dava-me há tempos, e pedi-lhe notícias do artista.

— Na capital não está — disse-me o comandante. A propósito, tenho aqui jornais do Pará. Quer consultá-los? Pode ser que o orientem de qualquer forma!

Abri os jornais e corri ansiosamente à seção dos espetáculos. Em vão! Não havia vestígio do nome de Salustiano.

— Mas de que Salustiano fala o senhor?

— De um músico, um flautista, que partiu no Cruzeiro para o Pará.

Um passageiro, interpelado pelo comandante, declarou-me que Salustiano dera concertos na capital, onde fora muito festejado, e que partira para o interior da província pouco tempo depois, em companhia de sua mãe.

— E conheceu-o? — perguntei com crescente interesse.

— De vista apenas. Assisti a dois concertos dele. É um gênio!

— Um gênio, tem razão. Foi muito aplaudido pelo povo?

— Excessivamente. Era enchente certa no teatro toda vez que se anunciava um concerto do Salustiano.

— Obrigado!

Voltei à terra impressionado.

Onde estaria aquele mau amigo, aquele admirável talento, cuja imagem perseguia-me com a persistência incansável da figura da mulher amada, que não nos abandona um minuto sequer? Nessas vacilações de espírito agitei-me durante dois meses largos e aborrecidos.

Raiou o dia do carnaval, e o teatro de Santa Isabel anunciou pomposos bailes de máscaras.

No domingo gordo à noite dirigia os meus passos para o largo da Princesa. A fachada do formoso edifício do Santa Isabel, iluminada e florida, trazia-me à mente as misteriosas festas do serralho, em que em uma hora se goza tudo quanto se chega a saborear em dois anos nas cinco partes do mundo.

Os mascarados atropelavam-se à porta e o saguão regurgitava de povo. A música derramava no ar calmo da noite os seus inúmeros encantos e as suas infernais tentações.

Ornado apenas com a máscara insulsa que a natureza me concedeu, recebi o meu bilhete de ingresso e afastei a mole ruidosa para entrar no salão.

Entrei.

Não havia começado o baile ainda. Cruzavam-se os máscaras e os curiosos em várias direções, e a orquestra, incumbida de atiçar os sentidos populares, repetia, tentando os folgazões, a primeira parte de uma quadrilha provocadora.

Despejavam os lustres torrentes de fogo; dos vasos acondicionados junto aos grandes espelhos escapavam-se vagas de aromas diabólicos; o segredo preparava no meio de toda essa perigosa atmosfera as suas cem garras diamantinas e os seus irresistíveis filtros.

Às dez horas em ponto formou-se a quadrilha, e o maestro Colas acenou com a imperial batuta à sua harmoniosa falange.

O que é o carnaval, sabem todos os que não têm vivido dentro de um ostracismo imbecil, separados da humanidade turbulenta e ativa.

O baile de máscaras é o resumo do baile da vida.

O dominó, o pierrô, o debardeur, o polichinelo representam excelentemente a criatura humana fardada de vários matizes e sujeita aos indecifráveis sentimentos que a acometem.

A loucura toma a vanguarda nesses pleitos revolucionários e brilhantes; o espírito da mordacidade, da injúria ou da intriga, é sombra do veludo e do cetim, exercita-se contra as vítimas que o acaso lhe sugeriu, e bloqueia o senso comum de uma maneira insuportável.

Os camarotes começaram a se encher desde as nove horas. Às dez e meia abriu-se um na segunda ordem, e apareceu-me ante os olhos curiosos... quem? A desconhecida do clube em todo o fulgor de sua imensa beleza.

Trajava um vestido de cetim verde-claro com fofos alvos, e na cabeça sustinha um toucado de margaridas e palmas verdes. Um colar de esmeraldas e pérolas acariciava-lhe o colo palpitante.

Correu com o binóculo a platéia, examinou os camarotes e disse, sorrindo ao velho, que a seguia como uma sombra, não sei o que, que o fez também sorrir.

Depois da quadrilha marcava o programa uma valsa. O delírio subia nota por nota a escala do entusiasmo e da loucura. Cresciam os perfumes, multiplicavam-se os movimentos dos pares dançantes, e a poeira que os pés levantavam no turbilhão enevoava o espaço, aclarado vertiginosamente por oitocentos tubos de gás.

Ela, à semelhança dos cisnes que nadam, e das estrelas que brilham, deixava-se guiar indiferentemente pelas cambiantes ondas em que seu espírito se embalava. Parecia-me a figura de Hebe nos resplendores do paraíso, desmanchando ao furacão dos ventos e das harmonias a basta cabeleira desgrenhada.

Seus olhos seguiam as danças sem luzirem de febre ou de interesse natural na mocidade; seu peito largo e nu respirava como de costume, e o leque abria-se mansamente como uma nuvem alva sobre os seus lábios distraídos.

Alguns máscaras procuraram com ditos tolos e lembranças banais arrancar-me à espécie de misticismo que me subjugava; meus olhos, porém, fitavam-se religiosamente sobre aquela criatura, que, a meu ver, era a depositária da existência, de uma das mais preciosas existências da Terra.

Lembrei-me do Salustiano. Onde estaria àquela hora o inspirado artista? Ele daria de bom grado metade dos dias futuros, unicamente para acompanhar como eu os ziguezagues caprichosos que o leque da elegante descrevia em redor de sua casta formosura!

A meia-noite o delírio tocou a meta; a dança macabra entrava na festa estendendo os seus braços medonhos e insaciáveis.

Ergui-me de um canto onde me sentara, quase escondido por uma multidão de espectadores, e dirigi-me ao saguão. Um polichinelo, cheio de guizos, deteve-me o passo e enlaçou-me a cintura

— Que fazes aqui?

Achei originalíssima a pergunta, e desatei uma gargalhada.

— Não deverias aqui vir! — continuou ele com a voz esganiçada e vibrante. — Isto é o turbilhão, meu caro, o turbilhão em que ela aparece como o santelmo no meio dos naufrágios!

Esforcei-me por me desvencilhar do abraço.

— Espera um pouco, impertinente folhetinista, e olha para aquele camarote!

O dedo enluvado designava-me o camarote da menina do clube, a Laura do Salustiano, a Laura ou a Beatriz, a inspiração que ia matando os sonhos e as alegrias do meu desventurado artista.

— Repara, repara naquela tranqüilidade, e naquele indiferentismo! Assim fazem as estrelas, não é verdade? Quando as ondas espumam e fervem loucamente! Malvada! E há entre nós, entre cancanistas e valsistas, palhaços e macacos, um homem que vive por ela, vive, sofre, agoniza e morre!

— Quem é esse homem? — acudi eu intrigado.

— É um homem! Rara avis! Bípede implume, segundo Platão, estupor de vícios, segundo Voltaire. Ele corre talvez arrebatado pelos furores da dança, contemplando-a através do prisma fatídico deste baile celebrado em honra do nascimento do diabo!

O polichinelo apertava-me a cintura em risco de partir-me as costelas.

— Mas, admira a sua beleza! — prosseguiu ele dando à voz o tom da súplica e da humilhação -, admira-a agora, agora que ela se debruça do camarote como um anjo que espia as misérias da Terra! Tra la la, la, la! bonita valsa, sim senhor, bonita valsa de Auber! Quatro bemóis, quatro bemóis tem esta valsa! Andante! Tra la la!

— É um ébrio! — pensei comigo. — Com licença, meu espirituoso polichinelo, eu já volto.

— Não te deixo, não! Hás de ouvir-me até o fim! E dá graças a Deus, mal-aventurado, que estás ouvindo um moribundo!

A voz estrangulava-lhe na garganta opressa. Mais de 20 pessoas nos cercavam curiosas.

— Aquela menina que tu vês, pura, branca, meiga, tranqüila, é o cadafalso em que se degolam uma por uma as ilusões de uma existência inteira! Eu armo-a! — articulou ele em um soluço, sufocando a frase em meu ouvido.

Arrastei-o para fora da sala. Ele seguiu-me trêmulo e as suas luvas queimavam com o calor das mãos febricitantes. No botequim arrancou-se de meu braço por um violento esforço e saltou sobre o balcão. Todos voltaram-se para ele, alegres, como se esperassem um chorrilho de sandices.

— Eu morrerei! — gritava o polichinelo, emprestando à voz variadíssimos tons. — Eu morrerei por causa dela, mas que importa? Com todos os diabos! Que importa? Que importa?

O botequim enchia-se, à proporção que o máscara gesticulava falando.

— Vocês todos olham-me contentes, e nenhum de vocês é capaz de me entender. Vão dançar, imbecis. Dancem até arrebentar! Pulem! Saltem! Estorçam-se, aniquilem-se, oh foliões do grande carnaval! Oé! Oé!

O caixeiro servia conhaque a um freguês. O polichinelo curvou-se rápido, e, apoderando-se do cálice cheio, engoliu o espírito em meio segundo.

Pungiu-me cruel desgosto vendo-o cambalear.

A orquestra no salão chamava os dilletanti para nova dança. O botequim esvaziou-se pouco a pouco. O polichinelo continuou com movimentos mais frenéticos:

— Dancem, dancem, felizes idiotas! Para vocês é que se inventou o carnaval!... Oé! O carnaval, a asneira, os pulos, a toleima! Offenbach, Strauss, Schulloff, Goria, Ravina, Arditi e os outros! Dêem lembranças, marotos, à bela dos olhos grandes e das tranças flutuantes! Ela me mata, mas eu amo-a! Tra la le li! Adoro-a!... Sinto por aquela criatura um...

Subitamente o polichinelo virou-se para a porta que desembocava no saguão e, estendendo os braços, ficou hirto, pasmo e inteiriçado como um espectro... Segui-lhe os movimentos e notei que entre as pessoas que se retiravam vinha uma moça, coberta por um longo albornoz, cor de pérola.

Temi conhecer a verdade. Lancei-me ao máscara que, preso de um violento ataque, despenhava-se de cabeça baixa como um corpo decapitado.

Eu e algumas pessoas presentes arrancamo-lhe os disfarces que o desfiguravam...

Por baixo daquelas barbas ásperas e ridículas apareceu-nos o lívido rosto de Salustiano inanimado.

Até as quatro horas da manhã Salustiano ardeu em um a febre implacável. Eu havia-o conduzido para a minha casa na cidade, sem saber mesmo onde habitava a mãe do artista, ou se ela estaria no Recife àquela hora.

O médico que receitou ao doente era o antigo facultativo que eu pela primeira vez encontrara na casa da rua da Roda. Ministrou-lhe uma simples beberagem e exigiu-me o maior cuidado com o enfermo.

— Este rapaz acaba mal! – disse-me ele tristemente. — É a sina dos artistas e dos poetas — continuou com um doce sorriso: — o corpo humano não pode suportar por muito tempo os vôos da essência divina.

— E haverá perigo?

— É de crer que não. Isto passará com facilidade... mas depois? Quem sabe se amanhã um novo excesso virá prostrá-lo deveras? Pobre Salustiano!

Quando o médico se retirou, sentei-me à cabeceira do doente. Contemplei então o rosto macilento, úmido pelas transpirações da febre, e fiz uma idéia dos sofrimentos por que passava a desventurada alma daquele louco ideal. Tremiam-lhe os lábios abrasados, de vez em quando, como se articulassem um nome, uma oração querida. As mãos cadavéricas, cruzadas sobre o peito ofegante, pareciam já as de um defunto à espera das fúnebres dobras do seu derradeiro lençol.

Auxiliou-me um companheiro de casa, A. R. (lerá ele estas páginas?), a verter o remédio através dos dentes cerrados convulsivamente.

Aos primeiros clarões da manhã Salustiano abriu os olhos e volveu-os em redor de si com espanto e terror. Apertei-lhe a mão ardente e pronunciei em voz baixa o seu nome. O artista olhou-me longamente, sem pestanejar, e com os sobrolhos unidos, como quem se esforça por atrair à memória lembranças fugidas. De súbito, porém, fechou os olhos e tornou-se imóvel, qual se o torpor da moléstia o petrificara completamente.

Descansei a mão sobre o seu peito; o coração batia brusco e precípite como o de uma criatura arquejante.

Decorreram alguns minutos em que eu, com a vista no céu, em cujos flocos vaporosos a madrugada estendia as suas harmônicas luzes, me entreguei às pesarosas cogitações que o estado de Salustiano suscitava-me ao espírito preocupado.

Um som flébil e suave partiu o silêncio do gabinete, espécie de rumor de asas invisíveis ou de suspiros de criança, que sonha com os brincos do paraíso.

Outro som, mais outro, outros ainda sucediam-se sem intermitência, com uma angélica melodia. Voltei-me para o doente e vi que era de sua boca adormecida que as notas se desprendiam...

Nuvem rosada subia-lhe das faces à fronte inspirada e seus lábios frementes, como as cordas sonoras de uma harpa, reproduziam os sons sem que a harmonia perdesse o mínimo compasso e a menor partícula de doçura.

Os lábios despediram notas mais rápidas e seguidas, entrelaçavam-se os ais e as melodias com uma formosura igual à dos concertos das aves escondidas na sombra, à hora do crepúsculo, que é quando a natureza enlanguesce e os pássaros cantam os triunfos do dia que desmaia.

Assim, em cardumes misteriosos, em serenos adejos em vôos peregrinos e castos, o artista criava, sonhando talvez com a glória, um dos seus mais caprichosos poemas musicais. Eu pendia extático dos lábios vibrantes, e meu coração banhava-se nas águas lustrais daquelas harmonias com uma ânsia sobrenatural.

Pouco a pouco os sons diminuíram, estremeceu a boca terminando o suspiro da última nota, e o silêncio foi interrompido apenas pelos sussurros da natureza que despertava.

Os campanários soavam em todas as igrejas e a luz entrando pelas janelas aclarava ao mesmo tempo a cabeça imóvel de Salustiano e a roupa de polichinelo, envolta em trapos e guizos, aos pés da cama.

Como chegara ele ao Recife sem que ninguém o esperasse ou pressentisse sequer?

Contou-me tudo a velha a quem procurei no dia seguinte e com quem conversei largamente, depois do restabelecimento de Salustiano.

— Este rapaz é doido, meu senhor — disse-me ela.

Quando chegamos ao Pará fomos muito bem recebidos por todo mundo, e até os jornais falaram de meu filho como se pode falar bem de um artista. Salustiano parecia estar satisfeito, alegre, trabalhava até cedo, quando não tocava no teatro, e todas as tardes ia com os amigos passear pelos arredores, donde voltava corado e forte. Imagine a minha felicidade! Nesse tempo, ele lhe escreveu?

— Algumas poucas cartas, sim.

— Deu concertos no teatro, onde foi muito aplaudido, coberto de coroas, versos, flores que era um deus-nos-acuda! Não sei quem lhe mandou uma carta daqui do Recife (nós estávamos fora de Belém) que o fez ficar triste de um momento para outro que nem um castigo do céu!

A pobre mulher enxugou os olhos molhados de lágrimas, enlaçando as mãos com um movimento de dor.

— Uma carta?

— É verdade; uma carta amaldiçoada!

— E a senhora não conseguiu fazê-la ler por alguém, para saber o que sucedia?

— Qual! Ele rasgou-a logo depois, e ficou branco como uma cera. Na véspera de seguir para o sul o vapor, Salustiano escreveu a noite inteira. Foi ele mesmo pôr a carta na agência do lugar, e, voltando a casa, nem quis comer, nem quis sair mais do seu quarto. Tinha-se tratado um concerto em casa particular e não houve forças humanas que o fizessem tocar naquela noite.

— É célebre!

— Veio segunda carta; ele acabou de a ler e disse-me que partíamos para o Recife no primeiro vapor.

“— Já!” — perguntei-lhe admirada.

“— Se me quer bem, minha mãe, vamos embora.”

— Fiz-lhe a vontade; embarcamos no Paraná, que fundeou em Pernambuco mesmo no domingo de entrudo. O mais, o senhor sabe...

— E ele compôs alguma coisa lá? Trabalhou?

— Ah! É verdade. Salustiano está fazendo não sei que música, que eu se pudesse punha no fogo até lhe ver as cinzas!

— Não diga isso!

— E então, meu senhor? é uma dor de coração ver o rapaz como sofre quando põe-se sozinho a cantar, a escrever e a tocar na flauta tudo aquilo. Sua, treme, fica amarelo, e já chegou uma vez a desmaiar nos meus braços!

— Não terá ele alguma paixão que oculta à senhora?

— Eu sei! Se tem, renegada seja a mulher que está o matando.

— Havemos de salvá-lo! Descanse!

— Agora estou mais tranqüila porque sei que o senhor e o sr. dr. R. são seus amigos às direitas!

— Pode crê-lo. O que couber em nossas forças empregaremos a favor dele!

Entrava o Salustiano da rua. Acompanhei ao quarto e sem mais preâmbulos:

— Deixa-me ver o retrato de que me falaste na tua carta.

Ele olhou-me enleado.

— Perdi-o!

— Pior! Deixa-me ver o retrato da moça que me mostraste na noite de Carnaval.

— Pelo amor de Deus não fales tão alto! — murmurou ele voltando-se para a porta entreaberta.

— Deixas ou não?

— Para quê?

— Para convencer-me da verdade. Em Olinda prometeste-me dizer o seu nome; é inútil; eu o sei na ponta da língua.

O artista aproximou-se-me palpitante.

— Pois é ela, sim, é ela mesma! — exclamou em um tom submisso e humilde.

— Com quem te correspondias tão em segredo do Pará para Pernambuco?

— Foi minha mãe que...?

— Não te importes. Qual era esse grande amigo por quem esqueceste aquele que te fala neste momento?

— Oh! Perdoa-me, vou contar-te tudo; é o coração em pedaços que tu exiges, pois bem; ficarás satisfeito. Votei-te sempre a mais decidida amizade, e, acima de tudo, uma gratidão profunda. Mas um acanhamento invencível apoderava do meu espírito e do meu coração, quando tinha de dirigir-me a ti nessa mal-aventurada rede em que embrulhei a minha existência. Receei as tuas censuras, aliás justíssimas, e...

— Procuraste outro confidente.

— Não procurei; ele já havia surpreendido o meu segredo. Queres saber quem é?

— Dispenso o nome de um mau amigo!

— Mau amigo!?

— Péssimo, traidor, cruel amigo! Todo aquele que não te arredar do precipício a que te arrojas fatalmente, não merece ser contemplado no rol dos verdadeiros amigos. E o que te dizia ele em uma carta que tanto te impressionou?

— Dizia-me que ela fora pedida em casamento.

— E tu tencionaste imediatamente assassinar o noivo, não é verdade?

— Não gracejes. Nunca em minha vida senti tormento igual ao que a notícia me trouxe. Cuidei morrer de desespero!

— Bom. Responde-me agora; foste ao baile de máscaras na certeza de a encontrares no teatro?

— Fui. Dou-me muito com o Zebedeu, o bilheteiro do Santa Isabel. Soube por ele que o comendador alugara um camarote para essa noite, e...

— O mais, meu ex-polichinelo, poderei contar melhor do que tu!

— Não me recordes coisas que eu resgataria feliz com o preço de meu sangue.

— Queres — resgatar o passado?

— Esquecendo-a? Não!

— Ouve-me, esplêndido louco. Estás matando a fogo lento tua mãe!

O artista empalideceu e fitou-me. amedrontado.

— O que esperas desse amor, Salustiano? O que esperas de semelhante empresa? Pois não tens certeza ainda do impossível que te separa, a ti, artista e pobre, duas vezes condenado, daquela moça milionária, aristocrática e filha de um comendador, quase barão?

— Tenho; mas amo-a...

— Compreendo, descendente de Pirro, compreendo os teus entusiasmos pela formosura dessa menina! És artista, e os artistas possuem o dom supremo de analisar a beleza através dos prismas celestiais. Mas, em nome do senso comum, em nome de teu futuro, em nome de tua...

— Basta, pelo amor de Deus! Se minha mãe nos ouvisse!

— Infeliz mulher! Ainda há pouco amaldiçoava à minha vista a criatura que te faz sofrer!

— E o que devo eu fazer então?

— Esquecê-la!

— Impossível!

— Queres um conselho? Carrega uma pistola até a boca, dirige à casa dela e depois de declarar-lhe o teu imenso amor, faz saltar os miolos ao teto!

— Seria melhor isso! — acudiu ele com um olhar sinistro.

— Se as almas são na realidade imortais, e se é certo que elas se reúnem em outro mundo, uma hora depois do teu suicídio, a alma de tua mãe iria queixar-se no céu da ingratidão de seu filho!

— Santo Deus! Queres enlouquecer-me!

— Responde-me, Salustiano; o que pretendes da mulher que adoras? Dize!

— Um olhar, ou um sorriso! Um sorriso dela seria a minha eterna felicidade!

— Se ela te contemplasse embevecida no meio dos teus triunfos artísticos, com toda a sua mocidade, com todos os seus sorrisos inocentes e o seio arquejante de entusiasmo e vida?

Ele tremia da cabeça aos pés e acompanhava as minhas palavras como quem assiste a uma revelação divina.

— Se isso acontecesse, tu fugirias dela para sempre e tentarias esquecê-la um dia? Juras?

— Juro — balbuciaram os lábios deslumbrados do artista.

Corri ao interior da casa e tomei pela mão a velha, surpresa e assustada. Conduzia-a ao pé do filho, sem lhe dizer uma palavra.

— Jura pela vida de tua mãe, Salustiano — exclamei eu, reunindo todas as minhas forças.

Ele curvou-se subjugado, e repetiu inundando as mãos vacilantes da velha de beijos e de lágrimas:

— Juro pela vida de minha mãe.

Como certas plantas enfezadas e maninhas, que ao primeiro raio do sol espalham ao ar fulgurante os novos botões de recém-nascida primavera, a alma de Salustiano começou a expandir-se feliz e animada, aspirando os ventos odorosos da mocidade, e expondo-se às irradiações solenes do astro do futuro.

Não era o mesmo aquele rapaz franzino, nervoso e apaixonado. Seus olhos cobriam-se de uma luz magnética, e de sua boca, outrora silenciosa, as frases espirituosas e vivas voavam em bandos infatigáveis.

A principio assustou-me a rápida metamorfose. Estaria curado? Estaria salvo? Por um desses raros, mas conhecidos fenômenos psicológicos, o espírito do meu louco amigo voltaria aos arraiais antigos, donde fora banido pelas Eumênides insaciáveis do amor e da juventude?

Um dia surpreendi-o à mesa do trabalho. Assim que me viu, debruçou-se sobre o papel de música que enchia, escondendo-o com o temor com que o ladrão oculta as provas do crime.

— Salustiano, tu me enganas!

— Eu te engano?

— Engana-me, sim. Que diabo estavas aí a fazer de tão monstruoso e negro, que a minha presença amedronta?

— Estou preparando a minha salvação — disse ele com um sorriso banhado em torturas e lágrimas. — Não era Isso o que querias? Não me preveniste ontem de que em breve eu daria o meu concerto de despedida?

— Bom, bom; copias músicas perfeitamente!

Os olhos do artista fuzilaram como o flanco tempestuoso da nuvem.

— Não copio músicas, não! Componho a última parte do Hino da Mocidade. Hino da Mocidade! Deverá intitular-se Hino do Desespero!

— Quê!

— Olha, Luís — acrescentou ele, apertando-me as mãos com um carinho fraternal -, há momentos em que tenho vontade de expor-me à tua maldição, aos desprezos do mundo, aos desprezos dela — dela, entendes? -, e como um alienado que escapasse às prisões do hospício, arremessar-me a seus pés pedindo-lhe a morte, já que a vida não quer me abandonar!

Seus olhos úmidos como os da ovelha moribunda fitaram-se dolorosamente em meu rosto.

— Quebras o teu juramento?

— Nunca. Sinto-me com forças de carregar o Atlas às costas e bater-me com o mundo inteiro!

— Nesse caso...

— Nesse caso, pensas tu, é facílimo afrontar o meu amor e a minha desventura? Eu nem sei, meu caro! Os tremendos sacrifícios importam a existência da criatura humana!

— Mas, qual era a tua intenção, se eu não te falasse?

— Matar-me.

— E tua mãe?

— Foi o que me prendeu à beira da cova, a idéia de torturar o coração de minha mãe. Desventurada mulher! Eu que por uma lágrima dela verteria sorrindo, gota a gota, todo o suor do meu corpo e todo o sangue de minhas veias!

— Bravo, Salustiano! És uma bela alma!

— Não sou, não, porque arremessei-me ao indefinido, cuidando marchar em estrada simples e comum.

— Privilégio dos privilegiados, meu caro! Se nascesses recebedor de impostos ou agente dos correios, nunca saborearias o indizível prazer de te expor à morte por uma visão ou uma quimera fugitiva!

— Perfeita visão, é verdade.

— Perfeitíssima! Nem ela te conhece!

— Não falemos mais dessas coisas que me atormentam. Vamos entrar em questões mais sisudas. Foste chamado à lição na academia?

— O que estavas escrevendo? Pergunto-te de novo.

— Nada; uma despedida às fantásticas delicias da arte.

— Tão cedo, meu poeta, foges ao afago das tentadoras musas?

— A arte é um inferno, e o artista é o maior e o primeiro de todos os condenados. A arte diz "voa" e prende os braços daquele a quem aponta os brilhantes horizontes, com torrentes mais pesadas que o universo. Mais vale a obscuridade que a luz nestes casos; prefiro a posição do morcego à da borboleta.

— Mau gosto!...

— As dores que eu tenho engolido e as mágoas que me acompanham São mais numerosas do que os astros que brilham nas eternas constelações. Não te rias! Para ti que és feliz, que vives satisfeito, que não amas, tudo corre às mil maravilhas, sem tropeços, nem cuidados. Mas eu! Eu, cujos dias são pesados, um por um, na balança das aspirações impossíveis, esforço-me como um miserável nos tortuosos labirintos da minha existência, e se não fosse... o que tu sabes, a esta hora estarias acompanhando a minha última viagem!

— Louco!

— Louco! Louco! Chama-me louco, e tens razão, porque não sentes o que eu sinto! Sabes o que eu escrevia?

Salustiano revolveu freneticamente os seus papéis de música, e estendendo-nos ante os olhos ávidos:

— Este Hino — exclamou ele — é a minha desgraça e a minha glória! Todos os meus pensamentos, todos os meus êxtases, suspiros, encantos, entusiasmos, desilusões, quimeras, sonhos, febres, arrojos, quedas e ascensões de mocidade e de talento, estão aqui, neste papel escuro, nestas folhas garatujadas, que o primeiro varredor lançaria ao lixo se as encontrasse à porta da casa!

— Sobre estas folhas chorei eu muitas noites, e muitos dias erguia o meu pensamento anelante como o poeta que traduz o último canto de uma epopéia, o matemático que descobre a solução de um problema estupendo, e o mineiro que arranca da terra convulsa o diamante envolto em sangue, suor e lodo! É o Hino da Mocidade! O Hino! O grande Hino da Mocidade!

Todo o seu corpo vacilava, como ao choque de uma carga elétrica, e os seus cabelos negros em redor da testa larga e pálida voavam flutuantes, à semelhança das nuvens obscuras que a tempestade revoluciona.

— Desde o dia em que vi pela primeira vez aquela mulher, uma harmonia selvagem surgiu do meu coração desvairado, e meus olhos começaram a descobrir, através das lágrimas do meu amor, o sombrio e fulgurante fantasma da glória! Arremessei-me à mesa do estudo e compus, compus, com o desespero do pobre que procura uma côdea de pão ou do astrólogo que persegue no céu a cauda de uma estrela!

As notas safam-me em borbotões, lavas, coriscos, raios, soluços, cóleras, que sei eu?! Um completo extermínio e uma completa vitória de harmonias! Hás de ouvir na flauta o Hino da Mocidade! É um furacão! É um tenor, é um naufrágio!

Tentei reproduzir as ânsias e as venturas supremas de minha alma deslumbrada! Às vezes, crê, às vezes a correnteza de minhas dores assemelhava-se à corrente caudalosa dos rios, quando a tormenta ruge e o relâmpago ensangüenta os ares! Outras vezes, era o murmúrio da fonte que se parecia com o suspiro do meu amor, o sussurro das flores ao afago da noite e ao resplendor das estrelas! As notas embebiam-se no papel; os compassos galopavam-me ante os olhos ardentes como uma legião de demônios e de fadas! Tudo entorpecia-me os sentidos! Tudo me agitava, erguia-me, torturava-me, incendiava-me, enregelava-me, pois tudo me inspirava como se Deus estivesse atrás de mim!

Repetidas crispações nervosas acometiam-lhe os membros e o suor brilhava escorrendo por sua face macilenta.

— Eu executarei esta música sagrada e maldita adiante dela! Não é o que tu exiges? Não é o que exige o mundo?

— Ouve-me, Salustiano!

— Não te ouço, não! Deixa-me contar-te tudo, já que o meu destino por tua causa...

— Por minha causa?!

— Por causa de minha mãe — acudiu ele, abrandando a voz -, deteve-se em frente de suas mais fogosas esperanças!... o Hino da Mocidade será acariciado por aqueles ouvidos divinos, e as vozes da flauta angustiada confundir-se-ão no esplêndido concerto de primavera e de inocência, que rompe do seu coração sublime! Oh! Feliz! Três vezes feliz e três vezes desgraçado, artista que te sepultas com as tuas próprias mãos suicidas!

Apertei em meus braços.

— Meu amigo!

— Quando é o concerto? — perguntou ele, transformando-se de súbito.

— De hoje a 15 dias, pouco mais ou menos.

— Tenho tempo. Vou estudar!

— Mas por tua honra, vê o que fazes!

— Se da prova final eu me salvar, acredita que conquistei o mais gigantesco de todos os triunfos.

Salustiano contemplou o céu profundo e luminoso:

— Felizes os que não têm mãe! — murmurou ele surdamente.

— Estás louco!

— Felizes! Porque esses podem morrer.

Nos programas espalhados para o seu concerto, Salustiano fez inserir a seguinte epígrafe:

CONCERTO DE DESPEDIDA À ARTE

em benefício
do artista Salustiano Tenório

Procurei no dia em que os jornais publicaram o primeiro anúncio:

— Que diabo vem a ser concerto de despedida à arte?

Ele pareceu perturbar-se levemente com a pergunta.

— Nada. É um meio apenas de chamar concorrência. Sou americano, meu caro! Pertenço à propaganda civilizadora do pufe!

Não é preciso pufe para ti. O teatro vai encher-se pelo simples fato de te apresentares ao público de flauta em punho.

— Obrigado; mas é conveniente formar a estrada para se andar a gosto; o talento só, caro mio, se realmente eu o tenho, pode conseguir, e já não é pouco, morrer à fome em qualquer cantinho imundo e negro!

— Mau! Começas com as tuas descrenças oratórias!

— Não falemos mais disso. Gostaste do programa?

— Gostei. Estou ansioso por ouvir-te executar as variações dos Puritanos, de que o Colas fez-me ontem as mais laudatórias ausências.

— Bom amigo aquele! Mandou-me oferecer a orquestra grátis para o concerto.

— Decididamente teimas em não me revelar um ou dois trechos do Hino, antes da execução em público?

— Decerto, para causar-te surpresa.

— Creio que seria difícil.

— Como? Se nunca tu?...

— É o que tu pensas. Parece-me que cantarolaste alguma coisa do famoso Hino na noite do Carnaval, enquanto dormias, ardendo em febre.

— Maldita noite! Causa de todas as minhas desventuras!

— Olha, tenho às vezes ímpetos de desligar-te do teu juramento, Salustiano. Palavra de honra!

— Cuidas que me arrependi!

— Que dúvida!

— Não me arrependi, não; mas sofro as dores de uma operação horrenda! Imagina! É o mesmo que arrancarem-me, vivo e palpitante, com tenazes ardentes o coração do peito!

— Mas ficarás salvo depois?

— Salvo!

Um pálido sorriso vagou-lhe na boca desmaiada, e o suspiro cortou o lábio em tímidos arpejos. Imediatamente, porém, o rubor coloriu-lhe as faces mórbidas e um tremor nervoso sacudiu bruscamente.

— Vou trabalhar! — exclamou ele.

— Por que não cedes a algum copista a tua música? Salustiano olhou-me com o espanto de um homem que surpreende as primeiras palavras de um doido.

— É que o copista poderia errar um ou dois compassos — volveu ele, moderando-se instantaneamente.

Deixei-o no gabinete, de pena empunhada, e fui a negócio, no Recife.

Só os delicados afagos de uma mesada iminente teriam o poder de afastar-me de Salustiano. O correspondente esperava-me.

Era a segunda vez que eu penetrava no edifício do teatro de Santa Isabel, depois da famosa noite de domingo de Carnaval.

O teatro estava todo iluminado, e na zona diáfana em que se derramavam miríades de estrelas de gás, flutuavam flâmulas e estandartes, prodigalidade excessiva da parte do empresário, em honra ao Salustiano, o beneficiado da noite.

Enchia o povo o saguão, e as carruagens enfileiravam-se no largo. Batiam oito horas quando entrei. A muito custo conquistei a minha cadeira e corri os olhos por todos os camarotes. Havia um desocupado, quase unido ao cenário, na segunda ordem.

Os músicos preparavam os instrumentos, e o regente Colas ainda não tomara posse da cátedra presidencial.

Marquei a cadeira e saí. O porteiro da caixa, meu conhecido desde épocas mais felizes, não pôs dúvida em ceder-me ingresso.

— Hoje não entra aqui ninguém – disse-me ele entre um sorriso de incredulidade e um olhar de mistério.

— Oh! oh!

— Foi mesmo o sr. Salustiano quem deu essa ordem.

— Mas eu....

— Oh! O senhor, é outra coisa. A casa é sua!

— Obrigado, respeitável cérbero!

Salustiano estava no camarim, enluvado, encascado, frisado, mas lívido como um defunto.

Com a cabeça firmada nas mãos hirtas, ele parecia esquecer-se completamente do lugar em que se achava, e de tudo quanto o cercava naquele momento. Ardiam duas velas sobre a mesa, cheia de potes de carmim, pó de arroz, escovas, barbas postiças, plumas multicores e os demais utensílios de teatro, de que tantos príncipes e monarcas se têm servido durante o reinado de cinco atos de melodrama!

Chegavam até o camarim os sons variados da orquestra que se afinava. O contra-regra bateu palmas e o regente sentou-se de batuta erguida. Começava o espetáculo por não sei que comédia traduzida do francês. No primeiro e no último intervalo fazia-se ouvir a flauta do Salustiano; nos outros a atenção pública ia repartir-se entre os talentos mais ou menos festejados de vários músicos pernambucanos.

A ouverture na orquestra fez estremecer o busto pendido do meu taciturno amigo. Salustiano ergueu a cabeça, correu a mão sobre a testa úmida, como quem fustiga uma asa agoureira, e, vendo-me, aumentou-lhe a cadavérica palidez.

— Tenho medo — disse ele com a voz surda e vacilante. — Medo!

— Medo!?

— Sim, meu amigo — continuou o artista apertando-me vivamente as mãos entre as suas. — Sinto o terror na minha alma. Olha, o jogador que expõe em última parada o derradeiro pecúlio de seus filhos, não sofre o que eu padeço agora!

— Anima-te, rapaz! Deixa estas coisas para os romances de capa e espada!

— Não brinques, pelo amor de Deus! Passei um dia horrível hoje! Estive quase a transferir o concerto. Esqueci-me até, acredita! Esqueci-me da primeira nota da música!

— Logo te entusiasmas! O artista, Salustiano, é como o cavalo de batalha (salvo a comparação), cria fogo quando ouve o primeiro clamor das trombetas guerreiras, e aspira o sangue dos feridos! Quando soarem as palmas que te receberem, ganharás alento, e o artista ocupará triunfante o lugar do homem!

— Deus te ouça!

Ela não veio ainda.

— Antes não venha, meu filho! Vendo-a, a flauta cairá das minhas mãos covardes, e eu próprio rolarei no tablado como uma massa inerte!

— Ou erguer-te-ás na asa da inspiração, meu poeta, ascendendo ao paraíso da arte, do amor e da mocidade!

Os olhos dele fulguravam através das pestanas negras como a cauda do fuzil no meio da borrasca.

— Fala-me, que me dás vida!

— Joga-se hoje o grande lansquenet da tua existência, sublime mentecapto! Pede ao céu que o teu doublé seja em ouros, que é justamente a cor do sol e da fortuna!

Rindo-se o artista, respondeu-me com uma energia fora do comum na sua natureza lânguida e doentia.

— Estás no teatro, minha mãe e o R.; tudo se fará.

— O R. ainda não chegou, parece-me, mas ele virá com toda a certeza. Adeus; coragem, coragem!

— Reza por mim.

— Farei o possível; mas nota que eu sou herege... na arte.

Quando de novo entrei na platéia, volvi os olhos para o camarote, até então desocupado. Dessa vez estremeci vendo na frente, com o alvo braço nu pousado no parapeito do camarote, a tão esperada senhora dos destinos do beneficiado. Ela estava fulgurante de beleza e de juventude. Sua boca vermelha e voluptuosa entreabria-se em um sorriso admirável, e de seus olhos negros, como o crime, escapavam-se irresistíveis cintilações. Cobria-a um longo vestido de cetim azul, e em seus cabelos cintilava, como diabólicas pupilas, uma chuva de diamantes, formando um diadema. Da mão dela pendia um grande cacto, borrifado ainda de sereno.

Subiu o pano. Enquanto se representava a comédia, uma comédia fútil e banal, olhei para o camarote e vi que ela conversava, rindo com o velho, meneando a esplêndida cabeça, soberana e pura como a da Palas mitológica.

Caiu o pano e eu dirigi-me à caixa do teatro. Salustiano enfiava em surdina, na flauta, escalas sobre escalas; os sons trêmulos e chorosos entrelaçavam-se como os ais melancólicos de um rio à noite, ou os murmúrios do vento entre as ramas espessas do arvoredo sombrio.

— Ela está aí!

— Já a vi! — exclamou o artista, com a alegria de um cego que torna a contemplar o disco incendiado do sol.

— Ânimo!

— Por ora, tudo irá bem, creio eu. Pouco trabalho tenho. Para mais tarde é que peço forças ao céu. O Hino foi composto com o pensamento nela, e tremo à idéia de não poder interpretá-lo com alma!

— Mas tu cambaleias, desgraçado!... Se te sentes mal, transforma-se o programa.

— Qual! Na hora das grandes catástrofes ou dos grandes triunfos, a criatura humana é menor e mais vacilante que o átomo!

A orquestra deu o sinal. Corri à minha cadeira. Pouco depois dirigi os olhos para o camarote; ela tinha-os presos no palco.

Subiu o pano.

Fez-se um profundo e religioso silêncio em todo o teatro. Salustiano entrou em cena no meio de uma salva geral de palmas, enquanto o regente da orquestra entregava-lhe, em nome dos professores de música pernambucanos, uma gentil coroa de louros.

Estava pálido o artista como um sentenciado que aguarda o golpe do carrasco; estremeciam-lhe os membros visivelmente, e por duas vezes a flauta, conduzida à boca, resvalou mal suspensa dos dedos oscilantes.

O público, sem compreender aquela súbita comoção, procurou animar o seu predileto artista, fazendo-lhe soar de novo ao ouvido profusão de palmas e de bravos.

Só eu possuía o segredo, o lúgubre segredo de tão misterioso enleio. Salustiano não havia ainda erguido os olhos para o camarote fatal, e tentando descobrir o sentimento que se apoderava dela naquele instante, notei com desgosto que a sua misteriosa beleza, à semelhança da formosura das esfinges, não revelava a mais sutil comoção ou o menor abalo.

A orquestra lembrou o motivo dos Puritanos e deu começo ao acompanhamento. O maestro Colas não despregava a pupila ardente do semblante demudado de Salustiano.

Finalmente, depois de um supremo esforço, a flauta deixou voar as primeiras notas, tímidas, assustadas quase em murmúrio, como um enxame de mistérios suaves que têm medo de ser surpreendidos. Pouco a pouco foi ganhando alma o instrumento e entusiasmo o artista; pouco a pouco as notas mais firmes e vibrantes percorreram em deliciosas escalas os tesouros harmoniosos desse poema dos Puritanos, tão solene, no meio dos seus poéticos arroubos, e tão poético, em meio de suas lágrimas arrebatadoras!

A platéia prorrompeu em retumbantes aplausos.

Cai o pano, e dirigindo eu a vista ansiosa para o camarote, reparei que ela espalhava do lábio coralino aquele desdenhoso sorriso, que jamais a abandonava.

Fiquei indignado. Pois quê! Não haveria nada capaz de perturbar a eterna monotonia de tão peregrina formosura?! Seria realmente insensível essa menina a tudo quanto o céu formou para eletrizar as almas e produzir no coração humano o choque dos santos entusiasmos e dos irresistíveis delírios?!

Alva, tranqüila, primorosa, como a mais bem contornada estátua de mármore, obra do cinzel de Fídias, ela resistia com a impassibilidade das rochas ao fragor das palmas, que saudavam o artista inspirado, e as ondas de harmonias divinas que flutuavam através das luzes e do aroma, ora arquejantes como beijos insaciáveis, ora meigas, castas, puras e ternas, como um suspiro entre lágrimas ou as orações de um moribundo.

Fui encontrar o Salustiano no camarim, abatido e mudo.

— Creio que dou parte de fraco — disse-me ele. — Não posso mais.

— Saíste perfeitamente nos Puritanos.

— Pessimamente, deves tu dizer.

— Hás de permitir que eu não saúde com grandes exclamações a tua, aliás graciosíssima, modéstia!

— Graceja, graceja, inexorável amigo! Oxalá não te arrependas do passo que deste!

— Salvando-te?

— E terei eu forças bastantes para arrostar tão tremenda prova sem sucumbir nela?

— A imaginação dos artistas e dos poetas, Salustiano, é como o vidro do microscópio; faz de uma pulga um elefante.

— Tu é que pretendes transformar em rosas os espinhos que me cercam, mas meteste-me em uma empresa impossível!

— A propósito, quem vai tocar agora?

— Ninguém. O Roberto canta a Serenada do D. Pasquale.

— Eu tenho dito por aí cobras e lagartos a respeito do teu Hino.

— Maior será a desilusão do público!

— Veremos!

— Responda-me seriamente: não fizeram fiasco as variações dos Puritanos?

— A tua comoção serviu até de alvo aos aplausos, como viste!

— Palmas de compaixão!

— Estás insuportável, distintíssimo maestro!

Entrava no camarim a mãe do Salustiano. Mudamos de conversa. Dois minutos depois, fui ocupar o meu lugar nas cadeiras. O camarote estava vazio.

— Teria ela ido embora? — perguntei a mim mesmo com terror.

O R., que veio me falar, disse-me que ela e o pai passeavam no salão. Descansei. Enquanto se cantou a Serenada, e dois artistas, um violinista e outro perfeito violoncelista ocuparam a atenção pública, nem ela nem o velho dignaram-se vir ao camarote.

Desceu o pano, e eu dirigi-me ao saguão para fumar.

O tema da conversa entre todos era o Salustiano.

— Tiraria a sorte grande? perguntava um interlocutor a outro. – Despede-se da arte!

— Não sei. Ali está quem nos pode dizer alguma coisa.

Referiam a mim. O que fizera a pergunta era meu conhecido; encaminharam-se na minha direção, e o curioso questionou-me acerca da despedida à arte, anunciada pelo flautista.

— Ele anda doente — acudi eu, encontrando felizmente a tempo uma resposta banal; — quer tratar-se; vai para os sertões do Ceará um destes dias. Eis a explicação do anúncio!

— Coitado! Mal podia suster-se em cena, há pouco!

Salustiano fechara-se no camarim, através de cuja porta ainda pude ouvir os sons flébeis de sua flauta, recordando um ou outro motivo da música.

A mãe do artista, que se sentara junto aos bastidores, chamou-me.

— Parece-me que ele não está bom! — disse-me ela com cuidado.

— Por quê?

— Não sei, veja.

Salustiano abriu a porta do camarim e saiu com a flauta na mão. Realmente causava dó olhar-se para o pobre moço. Um terno sorriso, o sorriso do martírio resignado e do glorioso sofrimento aclarava-lhe como luz celestial os traços desfigurados.

Ele padecia atrozmente; sua alma a custo sustentava os ímpetos do coração opresso, e a sua inteligência por um esforço quase sobrenatural acudia às urgentes necessidades de momento; a flama do talento sobrepujava as aflições profundas da existência dilacerada.

— O que sentes tu?

Tive desejos de arrastá-lo do teatro; dir-se-ia que ele agonizava.

— Nada. Uma debilidade passageira.

— Acabemos com isto, Salustiano! És ou não és um homem? Tens ou não tens força suficiente para saltar sobre o ridículo que o teu misterioso sofrimento pode provocar ante os olhos do público?

— Ridículo; acreditas que seja ridículo isto?

E o artista espalhou por um nervoso movimento os cabelos revoltos, como um brioso corcel que se prepara para o combate.

— Acredito que o povo não sabe acompanhar as peripécias extravagantes de tua vida, e não poderá, portanto, desculpar-te as heróicas pusilanimidades. Cada um pagou o seu bilhete de cadeira, platéia, camarote ou galeria no honesto e louvável intuito de ouvir a tua flauta e admirar o teu talento. Ora, é pouco airoso apresentares-te como tipo de romance perante uma multidão pouco amiga, neste momento, de coisas imaginárias ou poéticas.

— Basta. Eu não te envergonharei, nem me envergonharei também. Vai descansando — continuou ele rapidamente e empurrando-me com brandura; — não tarda a subir o pano... vai! Oh! É verdade; conduz minha mãe ao camarote.

A velha persistia em ficar na caixa; Salustiano, enfadando-se, obrigou-a a subir para a terceira ordem onde lhe havia reservado um lugar.

Quando eu me apoderei da minha cadeira, a orquestra executava os prelúdios da ouverture. Percorria a sala do teatro, dos últimos camarotes às últimas gerais, uma espécie de ruído surdo e abafado, tal como acontece na atmosfera, carregada de eletricidade, quando através do pavilhão das nuvens a tempestade prepara-se para assombrar a natureza. Comecei a ter sérios receios pelo sucesso do Salustiano. Seria eu culpado ou não por haver insistido com o artista em levar-se a cabo uma empresa tão difícil e escabrosa? Arrependia-me da minha idéia, e o meu coração febril pulsava-me violentamente dentro do peito abrasado.

Terminavam os últimos sons da orquestra quando ela chegou à frente do camarote. Sua mão enluvada e graciosa sustentava sempre o hastil do cacto, cujas pétalas o calor das luzes e da noite fazia arrufar em um melindroso recato.

Ergueu-se o pano. A orquestra marcou os primeiros compassos do acompanhamento e as palmas vibrantes saudaram a aparição do Salustiano. Os olhos dele e os olhos dela encontraram-se de súbito e um flamejante clarão perpassou o rosto do artista, que se hasteou glorioso como um cetro triunfante.

A flauta, unida vertiginosamente aos lábios, desprendeu um trilo rápido, fugaz, lancinante, que parecia ferir os ouvidos na passagem. Em seguida as notas imponentes atacaram a introdução do Hino com um valor e uma sonoridade admiráveis. Todas as vistas estavam presas em cena, e um silêncio de morte pairava no ambiente luminoso. A pele úmida de Salustiano brilhava com as luzes e a flauta arquejava-lhe nas mãos convulsas. Com o busto meio pendido do camarote, a formosa criatura seguia a música, animando-se pouco a pouco de nota a nota, de compasso a compasso, como uma floresta virgem que desperta ao cântico matutino dos pássaros, e aos primeiros raios do sol no oriente. Entrou finalmente o Hino, o grande, o festivo, o indizível, o maravilhoso Hino da Mocidade! Era ele! Era a música, que em surdina cantarolavam os lábios túmidos e febris do artista na noite do Carnaval! Os sons tumultuosos e doces, tranqüilos e revolucionários, calmos e tempestuosos, enroscavam, serpenteando na atmosfera, serenos às vezes como a espiral de um perfume, e outras vezes arrogantes, amedrontadores, esplêndidos e voluptuosos como as iras, os gemidos e os beijos de um gigante.

A platéia inebriada e pasma estendia as mãos para a cena... Salustiano crescera a meus olhos; crescera prodigiosamente, assumindo a portentosa figura de um semideus. Ele batia-se com a sua criação, lutava com o seu talento, arcava com a fortaleza de sua alma, impetuoso, ardente, indomável, indescritível! As notas voavam no encalço cristalino de outras notas, confundindo-se em turbilhões, entrechocando-se, devorando-se, esvaindo-se em uma só e imensa harmonia!

Minha imaginação aterrorizada e acariciada a um tempo, via desenrolar-se, ante os seus olhos sôfregos, quadros de diversos matizes e cores, qual se o instrumento do artista fosse uma varinha encantada a cujo toque criavam-se novos mundos e abria-se de par em par o mitológico domínio das feiticeiras e dos duendes.

Galopavam corcéis de crinas flutuantes e dorso luzidio, cobertos de esmeraldas e rosas, montados por fogosas amazonas, cujo capacete de prata luzia ao clarão melancólico da lua!... O bando ruidoso fugia envolto na poeira argentina da noite, fazendo retinir no espaço radiante o choque das lanças sobre o dono dos animais, e o ruído das armaduras de ouro picando o ventre abrasado dos insaciáveis corcéis!

Imediatamente transformava-se o panorama e um grande lago, afagado pelos vislumbres da cadente madrugada, estendia até os confins do horizonte. Cortava a água um batel tripulado por anjos e seguido por uma falange de cisnes e garças, de asa espalmada.

Depois era uma floresta cheia de harmonias e sombras; depois a luta de dois gladiadores ofegantes; depois um templo majestoso em cujos altares celebrava o oficio divino, enquanto o órgão despejava a sua invisível urna de melodias e místicas emanações!

Contemplei a heroína de todos esses triunfos; ela pendia do camarote, trêmula, assustada, palpitante, de boca entreaberta, seio exausto e colo estendido, como se conhecesse que era a alma desse miraculoso Hino, e quisesse submergir-se no abismo luminoso que a atraía, fatalmente.

Salustiano tocava a meta do incompreensível. Não era a música de Verdi aquilo! Apaixonada e brilhante! Nem os soluços de Bellini; nem os caprichos provocadores de Rossini; nem a imponente inspiração de Meyerbeer, nem a chorosa loucura de Donizetti reveladas nas lágrimas de Lucrécia ou nos angustiados arroubos de Lúcia. Era o Hino da Mocidade! A alma de um artista feita em pedaços e ascendendo gigantescamente ao horizonte no meio de súplicas, de orações e de blasfêmias sublimes! As harmonias subiam, subiam, enovelavam-se, entrelaçavam-se como serpentes impalpáveis, e desfaziam-se de ímpeto como um dilúvio de estrelas e de raios!...

Salustiano cambaleava e o sopro estava quase a abandoná-lo.

O povo em pé entregava-se ao magnetismo daquela música, sem saber se ela o despedaçava ou comovia. Era a vitória do gênio! O triunfo irradiante da arte!

Enfraqueceram pouco a pouco as notas; diminuíram os sons, desenrolando-se como um colar de pérolas desmanchado; e em um último esforço, a derradeira harmonia ergueu-se palpitante do tubo da flauta e do peito do artista! O delírio fez explosão nesse momento! Os gritos, as palmas, os lenços, as flores coroavam tumultuosamente o intérprete da mocidade, e ela, à semelhança do aloés quando rompe do seio fecundo da terra, desprendendo um brado de entusiasmo, deixou cair aos pés do artista o cacto, úmido com as lágrimas que lhe choviam dos olhos deslumbrados.

Salustiano veio quatro vezes consecutivas à cena. Em todas elas unia aos lábios a flor, que era o resumo de todas as suas angústias, de todas as suas glórias, esperanças, desconforto, futuro e vida!

Quando eu corri à caixa, fui a tempo de recebê-lo entre os meus braços. O suor gotejava-lhe da fronte, e um calafrio intenso percorria-lhe o corpo forçando a contrair as mãos geladas.

A caixa foi invadida por grande parte do povo que reclamava o artista em altos brados.

Ele agarrou-me a mão e com a voz sibilante e breve:

— Vem! — exclamou.

Arremessou-se ao camarim e fechou a porta sobre nós. Sem me dar tempo de evitar-lhe o rápido movimento, despedaçou contra a parede a flauta, origem de seus recentes e deslumbrantes triunfos.

— Salustiano!

— Cumpro a minha promessa! E antes que me arrependa, olha!

Seus dedos nervosos rasgaram os papéis de música onde fora escrito o Hino, e ele lançou-se nos meus braços, chorando como uma criança. Batiam à porta do camarim, e a voz da velha chamou o artista.

Salustiano enxugou os olhos, afastou para longe os fragmentos da flauta e da música, dizendo-me ainda:

— Amanhã ou depois partirei deste céu e deste inferno. O destino permitiu, ao menos, louvado seja Deus, que caísse uma flor nas ondas do meu naufrágio!

E beijou respeitosamente as úmidas pétalas do cacto.