Anexo:Imprimir/O Anjo Rafael

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Índice

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Cansado da vida, descrente dos homens, desconfiado das mulheres e aborrecido dos credores, o dr. Antero da Silva determinou um dia despedir-se deste mundo.

Era pena. O dr. Antero contava trinta anos, tinha saúde, e podia, se quisesse, fazer uma bonita carreira. Verdade é que para isso fora necessário proceder a uma completa reforma dos seus costumes. Entendia, porém, o nosso herói que o defeito não estava em si, mas nos outros; cada pedido de um credor inspirava-lhe uma apóstrofe contra a sociedade; julgava conhecer os homens, por ter tratado até então com alguns bonecos sem consciência; pretendia conhecer as mulheres, quando apenas havia praticado com meia dúzia de regateiras do amor.

O caso é que o nosso herói determinou matar-se, e para isso foi à casa da viúva Laport, comprou uma pistola e entrou em casa, que era à rua da Misericórdia.

Davam então quatro horas da tarde.

O dr. Antero disse ao criado que pusesse o jantar na mesa.

— A viagem é longa, disse ele consigo, e eu não sei se há hotéis no caminho.

Jantou com efeito, tão tranqüilo como se tivesse de ir dormir a sesta e não o último sono. O próprio criado reparou que o amo estava nesse dia mais folgazão que nunca. Conversaram alegremente durante todo o jantar. No fim dele, quando o criado lhe trouxe o café, Antero proferiu paternalmente as seguintes palavras:

— Pedro, tira de minha gaveta uns cinqüenta mil-réis que lá estão, são teus. Vai passar a noite fora e não voltes antes da madrugada.

— Obrigado, meu senhor, respondeu Pedro.

— Vai.

Pedro apressou-se a executar a ordem do amo.

O dr. Antero foi para a sala, estendeu-se no divã, abriu um volume do Dicionário filosófico e começou a ler.

Já então declinava a tarde e aproximava-se a noite. A leitura do dr. Antero não podia ser longa. Efetivamente daí a algum tempo levantou-se o nosso herói e fechou o livro.

Uma fresca brisa penetrava na sala e anunciava uma agradável noite. Corria então o inverno, aquele benigno inverno que os fluminenses têm a ventura de conhecer e agradecer ao céu.

O dr. Antero acendeu uma vela e sentou-se à mesa para escrever. Não tinha parentes, nem amigos a quem deixar carta; entretanto, não queria sair deste mundo sem dizer a respeito dele a sua última palavra. Travou da pena e escreveu as seguintes linhas:

Quando um homem, perdido no mato, vê-se cercado de animais ferozes e traiçoeiros, procura fugir se pode. De ordinário a fuga é impossível. Mas estes animais meus semelhantes tão traiçoeiros e ferozes como os outros, tiveram a inépcia de inventar uma arma, mediante a qual um transviado facilmente lhes escapa das unhas.

É justamente o que vou fazer.

Tenho ao pé de mim uma pistola, pólvora e bala; com estes três elementos reduzirei a minha vida ao nada. Não levo nem deixo saudades. Morro por estar enjoado da vida e por ter certa curiosidade da morte.

Provavelmente, quando a polícia descobrir o meu cadáver, os jornais escreverão a notícia do acontecimento, e um ou outro fará a esse respeito considerações filosóficas. Importam-me bem pouco as tais considerações.

Se me é lícito ter uma última vontade, quero que estas linhas sejam publicadas no Jornal do Commercio. Os rimadores de ocasião encontrarão assunto para algumas estrofes.

O dr. Antero releu o que tinha escrito, corrigiu em alguns lugares a pontuação, fechou o papel em forma de carta, e pôs-lhe este sobrescrito: Ao mundo.

Depois carregou a arma; e, para rematar a vida com um traço de impiedade, a bucha que meteu no cano da pistola foi uma folha do Evangelho de S. João.

Era noite fechada. O dr. Antero chegou-se à janela, respirou um pouco, olhou para o céu, e disse às estrelas:

— Até já.

E saindo da janela acrescentou mentalmente:

— Pobres estrelas! Eu bem quisera lá ir, mas com certeza hão de impedir-me os vermes da terra. Estou aqui, e estou feito um punhado de pó. É bem possível que no futuro século sirva este meu invólucro para macadamizar a rua do Ouvidor. Antes isso; ao menos terei o prazer de ser pisado por alguns pés bonitos.

Ao mesmo tempo que fazia estas reflexões, lançava mão da pistola, e olhava para ela com certo orgulho.

— Aqui está a chave que me vai abrir a porta deste cárcere, disse ele.

Depois sentou-se numa cadeira de braços, pôs as pernas sobre a mesa, à americana, firmou os cotovelos, e segurando a pistola com ambas as mãos, meteu o cano entre os dentes.

Já ia disparar o tiro, quando ouviu três pancadinhas à porta. Involuntariamente levantou a cabeça. Depois de um curto silêncio repetiram-se as pancadinhas. O rapaz não esperava ninguém, e era-lhe indiferente falar a quem quer que fosse. Contudo, por maior que seja a tranqüilidade de um homem quando resolve abandonar a vida, é-lhe sempre agradável achar um pretexto para prolongá-la um pouco mais.

O dr. Antero pôs a pistola sobre a mesa e foi abrir a porta.

A pessoa que batera à porta era um homem grosseiramente vestido. Trazia uma carta na mão.

— Que me quer? perguntou-lhe o dr. Antero.

— Trago esta carta, que lhe manda meu amo.

O dr. Antero aproximou-se da luz para ler a carta.

A carta dizia assim:

Uma pessoa que deseja propor um negócio ao sr. dr. Antero da Silva pede-lhe que venha imediatamente à sua casa. O portador desta o acompanhará. Trata-se de uma fortuna.

O rapaz leu e releu a carta, cuja letra não conhecia, e cujo laconismo trazia um ar de mistério.

— Quem é teu amo? perguntou o dr. Antero ao criado.

— É o sr. major Tomás.

— Tomás de quê?

— Não sei mais nada.

O dr. Antero franziu a testa. Que mistério seria aquele? Uma carta sem assinatura, uma proposta lacônica, um criado que não sabia o nome do patrão, eis quanto bastou para despertar vivamente a curiosidade do dr. Antero. Apesar de não ter o espírito propenso às aventuras, esta o impressionara a tal ponto que esqueceu por um instante a lúgubre viagem tão friamente planeada.

Olhou para o criado atentamente; as feições eram comuns, o olhar pouco menos de estúpido. Evidentemente não era um cúmplice, se é que no fundo daquela aventura havia um crime.

— Onde mora teu amo? perguntou o dr. Antero.

— Na Tijuca, respondeu o criado.

— Mora só?

— Com uma filha.

— Menina ou moça?

— Moça.

— Que qualidade de homem é o major Tomás?

— Não lhe posso dizer, respondeu o criado, porque fui para lá há oito dias apenas. Quando entrei, disse-me o patrão: "José, a tua obrigação é servir muito, falar pouco e não ver nada". Até hoje tenho executado a ordem do patrão.

— Há mais criados em casa? perguntou o dr. Antero.

— Há uma criada, que serve à filha do amo.

— Ninguém mais?

— Ninguém mais.

A idéia do suicídio já estava longe do espírito do dr. Antero. O que o prendia agora era o mistério daquela missão noturna e as singulares referências do portador da carta. Varreu-lhe do espírito igualmente a suspeita de um crime. A sua vida tinha sido tão indiferente ao resto dos homens, que não podia ter inspirado a ninguém a idéia de uma vingança.

Contudo, hesitava ainda; mas relendo o misterioso bilhete, reparou nas últimas palavras: trata-se de uma fortuna; palavras que nas duas primeiras leituras apenas lhe causaram uma ligeira impressão.

Quando um homem quer deixar a vida por um simples aborrecimento, a promessa de uma fortuna é razão bastante para suspender o passo fatal. No caso do dr. Antero a promessa da fortuna era razão decisiva. Se averiguarmos bem a causa principal do tédio que este mundo lhe inspirava, veremos que não é outra senão a falta de cabedais. Desde que estes lhe batiam à porta, o suicídio já não tinha razão de ser.

O doutor disse ao criado que o esperasse, e tratou de vestir-se.

— Em todo o caso, disse ele consigo, a todo tempo é tempo; se não morrer hoje posso morrer amanhã.

Vestiu-se, e lembrando-se de que seria conveniente ir armado, meteu a pistola no bolso, e saiu acompanhado pelo criado.

Quando os dois chegaram à porta da rua, já os esperava um carro. O criado convidou o dr. Antero a entrar, e foi sentar na almofada com o cocheiro.

Conquanto os cavalos fossem a trote largo, longa pareceu a viagem ao doutor, que, apesar das circunstâncias singulares daquela aventura, tinha ânsia por ver-lhe o desfecho. Entretanto, à proporção que o carro se ia afastando do centro populoso da cidade, o espírito do nosso viajante tomava-se de certa apreensão. Era ele mais estouvado que animoso; a sua tranqüilidade diante da morte não era resultado do valor de ânimo. No fundo do seu espírito havia uma extrema dose de fraqueza. Podia disfarçá-la quando dominava os acontecimentos; mas agora que os acontecimentos dominavam a ele, facilmente desaparecia o simulacro de coragem.

Enfim o carro chegou à Tijuca, e, depois de andar um grande espaço, parou diante de uma chácara completamente separada de todas as demais habitações.

O criado veio abrir a porta, e o doutor apeou-se. As pernas tremiam-lhe um pouco, e o coração pulsava-lhe apressadamente. Estavam diante de um portão fechado. A chácara era cercada por um muro um tanto baixo, por cima do qual o dr. Antero pôde ver a casa de habitação, colocada no fundo da chácara perto da encosta de uma colina.

O carro deu volta e partiu, enquanto o criado abria o portão com uma chave que trazia no bolso. Entraram os dois, e o criado fechando por dentro o portão indicou o caminho ao dr. Antero.

Não quero dar ao meu herói proporções que ele não tem; confesso que naquele momento o dr. Antero da Silva estava bem arrependido de ter aberto a porta ao importuno portador da carta. Se pudesse fugir, fugia, ainda correndo o risco de passar por covarde aos olhos do criado. Mas era impossível. O doutor fez das tripas coração, e caminhou na direção da casa.

A noite era clara, mas sem lua; soprava um vento que agitava brandamente as folhas das árvores.

O doutor caminhava por uma alameda acompanhado pelo criado; rangia a areia debaixo de seus pés. Apalpou o bolso para verificar se tinha a pistola consigo; em todo o caso era um recurso.

Quando chegaram ao meio do caminho o doutor perguntou ao criado:

— O carro não volta?

— Suponho que sim; meu amo o informará melhor.

O doutor teve uma idéia súbita: empregar o tiro no criado, saltar o muro e voltar para casa. Chegou a engatilhar a arma, mas imediatamente refletiu que o ruído despertaria a atenção, e a sua fuga tornava-se improvável.

Resignou-se, pois, à sorte, e caminhou para a casa misteriosa.

Misteriosa é o termo; todas as janelas estavam fechadas; não havia uma única réstia de luz; não se ouvia o menor rumor de fala.

O criado tirou do bolso outra chave, e com ela abriu a porta da casa, que tornou a fechar apenas o doutor entrou. Aí tirou o criado do bolso uma caixa de fósforos, acendeu um, e com ele um rolo de cera que trazia consigo.

O doutor viu então que se achava em uma espécie de pátio, tendo ao fundo uma escada comunicando para o sobrado. Perto da porta de entrada havia um cubículo tapado por um gradil de ferro, e que servia de casa a um enorme cão. O cão entrou a rosnar quando pressentiu gente; mas o criado fê-lo calar, dizendo:

— Silêncio, Dolabela!

Subiram a escada até acima, e depois de atravessarem um extenso corredor, acharam-se diante de uma porta fechada. O criado tirou do bolso uma terceira chave, e depois de abrir a porta convidou o dr. Antero a entrar, dizendo:

— Queira o senhor esperar aqui, enquanto eu vou dar parte a meu amo da sua chegada. Entretanto, deixe-me acender-lhe uma vela.

Efetivamente acendeu uma vela que se achava dentro de um castiçal de bronze em cima de uma pequena mesa redonda de mogno, e saiu.

O dr. Antero achava-se num quarto; havia a um lado uma cama alta; a mobília era de um gosto severo; o quarto tinha apenas uma janela, mas gradeada. Sobre a mesa havia alguns livros, pena, papel e tinta.

É fácil imaginar a ânsia com que o doutor esperou a resposta do seu misterioso correspondente. O que ele queria era pôr termo àquela aventura que tinha ares de um conto de Hoffmann. A resposta não se demorou. O criado voltou dizendo que o major Tomás não podia falar imediatamente ao doutor; oferecia-lhe quarto e cama, e adiava. a explicação para o dia seguinte.

O doutor insistiu em falar-lhe naquela ocasião, pretextando ter importante motivo de voltar à cidade; no caso de não poder o major falar-lhe, propunha ele voltar no dia seguinte. O criado ouviu-o com todo o respeito, mas declarou que não voltaria ao patrão, cujas ordens eram imperiosas. O doutor ofereceu dinheiro ao criado; mas este recusou os presentes de Artaxerxes com um gesto tão solene, que tapou a boca ao moço.

— Tenho ordem, disse finalmente o criado, de trazer-lhe uma ceia.

— Não tenho fome, respondeu o dr. Antero.

— Nesse caso, boa noite.

— Adeus.

O criado dirigiu-se para a porta, enquanto o doutor o seguia ansiosamente com os olhos. Iria ele fechar-lhe a porta por fora? Realizou-se a suspeita; o criado fechou a porta e levou a chave consigo.

É mais fácil imaginar que narrar a noite aflitiva do dr. Antero. Os primeiros raios do sol, penetrando através das grades da janela, acharam-no vestido sobre a cama, onde só conseguira adormecer pelas quatro horas da madrugada.

Ora, o nosso herói teve um sonho durante o curto espaço de tempo que dormiu. Sonhou que tendo executado o seu plano de suicídio, fora levado para a cidade das dores eternas, onde Belzebu o destinava a ser perpetuamente queimado numa imensa fogueira. O infeliz fazia as suas objeções ao anjo do reino escuro; mas este, com uma única resposta, reiterava a ordem dada. Quatro chanceleres infernais lançaram mão dele e o lançaram ao fogo. O doutor deu um grito e acordou.

Saía de um sonho para entrar em outro.

Levantou-se espantado; não conhecia o quarto em que se achava, nem a casa em que dormira. Mas pouco a pouco foi-lhe reproduzindo a memória todos os incidentes da véspera. O sonho tinha sido um mal imaginário; mas a realidade era um mal positivo. O rapaz teve ímpetos de gritar; reconheceu, porém, a inutilidade do recurso; preferiu esperar.

Não esperou muito; daí alguns minutos ouviu o ruído da chave na fechadura.

Entrou o criado.

Trazia na mão as folhas do dia.

— Já de pé!

— Sim, respondeu o dr. Antero. Que horas são?

— Oito horas. Aqui tem as folhas de hoje. Olhe, ali tem um lavatório

O doutor não havia reparado ainda no lavatório; a preocupação tinha-lhe feito esquecer a lavagem do rosto; tratou de remediar o esquecimento.

Enquanto lavava o rosto, perguntou-lhe o criado:

— A que horas almoça?

— Almoçar?

— Sim, almoçar.

— Pois eu vou ficar aqui?

— São ordens que tenho.

— Mas, enfim, estou ansioso por falar a esse major que não conheço, e que me tem preso sem que eu saiba por que motivo.

— Preso! exclamou o criado. O senhor não está preso; meu amo quer falar-lhe, e por isso é que eu o fui chamar; deu-lhe quarto, cama, dá-lhe um almoço; creio que isto não é tê-lo preso.

O doutor tinha enxugado o rosto, e sentou-se numa poltrona.

— Mas que me quer teu amo? perguntou-lhe.

— Isso não sei, respondeu o criado. A que horas quer o almoço?

— A que for do teu gosto.

— Bem, respondeu o criado. Aqui tem as folhas.

O criado fez um respeitoso cumprimento ao doutor e saiu fechando a porta.

Cada minuto que passava era para o desgraçado moço um século de angústia. O que mais o torturava eram precisamente aquelas atenções, aqueles obséquios sem explicação possível, sem presumível desfecho. Que homem seria esse major, e que lhe queria ele? O doutor fez mil vezes esta pergunta a si mesmo sem achar resposta possível.

Do criado já sabia ele que nada poderia alcançar; além de novo na casa, parecia absolutamente estúpido. Seria honesto?

O dr. Antero fez esta última reflexão metendo a mão no bolso e tirando a carteira. Restavam-lhe ainda uns cinqüenta mil-réis.

— É quanto basta, pensou ele, para conseguir deste pateta que me ponha fora daqui.

O doutor esquecia que já na véspera o criado recusara dinheiro em troca de um serviço menos importante.

Às nove horas o criado voltou trazendo numa bandeja um almoço delicado e apetitoso. Apesar da gravidade da situação, o nosso herói atacou o almoço com uma intrepidez de verdadeiro general de mesa. Dentro de vinte minutos só restavam nos pratos mortos e feridos.

Ao mesmo tempo que comia ia ele interrogando o criado.

— Dize-me cá; queres fazer-me um grande favor?

— Qual?

— Tenho aqui cinqüenta mil-réis à tua disposição, e amanhã posso dar-te mais cinqüenta, ou cem, ou duzentos; em troca disto peço-te que arranjes meio de me pôr fora desta casa.

— Impossível, senhor, respondeu o criado sorrindo; eu só obedeço a meu amo.

— Sim; mas teu amo nunca virá a saber que eu te dei dinheiro; tu podes dizer-lhe que a minha fuga foi devida a um descuido, e deste modo ficamos ambos salvos.

— Eu sou honrado; não posso aceitar o seu dinheiro.

O doutor ficou desanimado com a austeridade do fâmulo; bebeu o resto do borgonha que tinha no copo, e levantou-se fazendo um gesto de desespero.

O criado não se impressionou; preparou o café para o hóspede e foi oferecer-lhe. O doutor bebeu dois ou três goles e restituiu-lhe a xícara. O criado arrumou a louça na bandeja e saiu.

No fim de meia hora voltou o criado dizendo que seu amo estava pronto para receber o dr. Antero.

Conquanto o doutor desejasse sair da situação em que se achava, e saber o fim para que o haviam mandado buscar, nem por isso o impressionou menos a idéia de ir ver enfim o terrível e desconhecido major.

Lembrou-se que podia haver algum perigo, e instintivamente apalpou a algibeira; esquecia-se de que ao deitar-se tinha posto a pistola debaixo do travesseiro. Era impossível tirá-la à vista do criado, resignou-se.

O criado fê-lo sair primeiro, fechou a porta e seguiu adiante para guiar o mísero doutor. Atravessaram o corredor por onde haviam passado na véspera; depois entraram em outro corredor que ia ter a uma pequena sala. Aí disse o criado ao doutor que esperasse enquanto ia dar parte a seu amo, e penetrando numa sala que ficava à esquerda, voltou pouco depois dizendo que o major esperava o dr. Antero.

O doutor passou à outra sala.

Estava ao fundo, sentado numa poltrona de couro, um velho alto e magro, envolvido num largo chambre amarelo.

O doutor deu apenas alguns passos e parou; mas o velho, apontando-lhe para uma cadeira que lhe ficava defronte, convidou-o a sentar.

O doutor obedeceu imediatamente.

Houve um curto silêncio, durante o qual o dr. Antero pôde examinar a figura que tinha diante de si.

Os cabelos do major Tomás eram completamente brancos; a tez era pálida e macilenta. Os olhos vivos, mas encovados; dissera-se a luz de uma vela prestes a extinguir-se, e soltando do fundo do castiçal os seus últimos lampejos.

Os beiços do velho eram finos e brancos; e o nariz, curvo como um bico de águia, assentado sobre um par de bigodes da cor dos cabelos; os bigodes eram a base daquela enorme coluna.

O aspecto do major poderia causar menos desagradável impressão, se não fossem as bastas e cerradas sobrancelhas, cujas pontas internas vinham ligar-se na parte superior do nariz; além disso o velho contraía constantemente a testa, o que lhe produzia uma enorme ruga que, vista de longe, dava ares de ser uma continuação do nariz.

Independentemente das circunstâncias especiais em que o doutor se achava, a figura do major inspirava um sentimento de medo. Podia ser uma excelente pessoa; mas o seu aspecto repugnava à vista e ao coração.

O dr. Antero não ousava romper o silêncio; e limitava-se a contemplar o homem. Este olhava alternativamente para o doutor e para as unhas. As mãos do velho pareciam garras; o dr. Antero já as estava sentindo cravadas em si.

— Estou falando ao dr. Antero da Silva? perguntou lentamente o major.

— Um seu criado.

— Criado de Deus, respondeu o major com um sorriso estranho.

Depois continuou:

— Doutor em medicina, não?

— Sim, senhor.

— Conheci muito seu pai; fomos companheiros no tempo da independência. Era ele mais velho do que eu dois anos. Pobre coronel! ainda hoje sinto a sua morte.

O moço respirou; a conversa levava um bom caminho; o major confessava-se amigo de seu pai, e lhe falava nele. Animou-se um pouco, e disse:

— Também eu, sr. major.

— Bom velho! continuou o major; sincero, alegre, valente...

— É verdade.

O major levantou-se um pouco, apoiando as mãos nos braços da poltrona, e disse com voz surda:

— E mais que tudo, era obediente àqueles que têm uma origem no céu!

O doutor arregalou os olhos; não compreendera bem o sentido das últimas palavras do major. Não podia supor que aludisse aos sentimentos religiosos de seu pai, que era tido no seu tempo como um profundo materialista.

Contudo, não quis contrariar o velho, e procurou ao mesmo tempo obter uma explicação.

— É exato, disse o rapaz; meu pai era profundamente religioso.

— Religioso não basta, respondeu o major brincando com os cordões do chambre; conheço muita gente religiosa que não respeita os enviados do céu. Creio que o senhor foi educado com as mesmas idéias de seu pai, não?

— Sim, senhor, balbuciou o dr. Antero aturdido com as palavras enigmáticas do major.

Este, depois de esfregar as mãos e torcer o bigode repetidas vezes, perguntou ao seu interlocutor:

— Diga-me, foi bem tratado em minha casa?

— Magnificamente.

— Pois aqui vai morar a seu gosto e o tempo que lhe parecer.

— Teria muita honra nisso, respondeu o doutor, se pudesse dispor do meu tempo; há de consentir, pois, que eu recuse por enquanto o seu oferecimento. Apressei-me a vir ontem por causa do bilhete que me mandou. Que me quer V. Excia.?

— Duas coisas: a sua companhia e o seu casamento; dou-lhe em troca uma fortuna.

O doutor olhou espantado para o velho, e este, compreendendo o espanto do rapaz, disse-lhe sorrindo:

— De que se admira?

— Eu...

— Do casamento, não é?

— Sim, confesso que... Não sei como mereço essa honra de ser convidado para noivo mediante uma fortuna.

— Compreendo o seu espanto; é próprio de quem foi educado lá fora; eu cá procedo de modo contrário ao que se pratica nesse mundo. Mas, vamos: aceita?

— Antes de tudo, sr. major, responda: por que se lembrou de mim?

— Fui amigo de seu pai; quero prestar-lhe esta homenagem póstuma, dando ao senhor em casamento a minha única filha.

— Trata-se então de sua filha?

— Sim, senhor; trata-se de Celestina.

Os olhos do velho tornaram-se mais vivos que nunca ao pronunciar o nome da filha.

O dr. Antero olhou algum tempo para o chão e respondeu:

— Bem sabe que o amor é que faz os casamentos felizes. Entregar uma moça a um rapaz a quem ela não ama é dar-lhe um suplício...

— Suplício! Ora, aí vem o senhor com a linguagem lá de fora. Minha filha ignora até o que seja amor; é um anjo na raça e na candura.

Dizendo estas últimas palavras o velho olhou para o teto e ficou assim durante algum tempo como se contemplasse alguma coisa invisível aos olhos do rapaz. Depois, abaixando outra vez os olhos, continuou:

— A sua objeção não vale nada.

— Tenho outra; é justo que aqui dentro não exista a mesma ordem de idéias que há lá fora; mas é natural que os que são lá de fora não partilhem as mesmas idéias cá de dentro. Por outros termos, eu não desejaria casar com uma moça sem amá-la.

— Aceito a objeção; estou certo que apenas a vir ficará morrendo por ela.

— É possível.

— É certo. Ora, pois, vá para o seu quarto; à hora do jantar mandá-lo-ei chamar; jantaremos os três.

O velho levantou-se e foi a um canto da sala puxar pelo cordão de uma campainha. O dr. Antero teve ocasião de ver então a estatura do major, que era alta e até certo ponto majestosa.

Acudiu o criado e o major deu-lhe ordem de conduzir o doutor para o quarto.

Quando o doutor se achou só no quarto entrou a meditar na situação conforme se lhe desenhara ela depois da conversa com o major. O velho parecia-lhe singularmente extravagante, mas falava-lhe do pai, mostrava-se afável, e afinal de contas oferecia a filha e uma riqueza. O espírito do moço estava mais um pouco tranqüilo.

É verdade que ele opusera objeções à proposta do velho, e parecera agarrar-se a todas as dificuldades, por menores que fossem. Mas eu não posso ocultar que a resistência do rapaz era talvez menos sincera do que ele próprio pensava. A perspectiva da riqueza disfarçou por algum tempo a singularidade da situação.

A questão agora era ver a moça; se fosse bonita; se tivesse uma fortuna, que mal havia em se casar ele com ela? O doutor aguardou a hora do jantar com uma impaciência a que já não eram estranhos os cálculos da ambição.

O criado tinha-lhe posto à disposição um guarda-roupa, e meia hora depois serviu-lhe um banho. Satisfeitas essas necessidades de asseio, o doutor deitou-se na cama e tirou à vontade um dos livros que se achavam sobre a mesa. Era um romance de Terrail, adormeceu logo à segunda página.

Quando acordou era tarde; recorreu ao relógio, e achou-o parado; esquecera-se de lhe dar corda.

Receava que o criado o tivesse vindo chamar, e se retirasse por encontrá-lo a dormir. Era estrear mal a sua vida na casa de um homem que talvez fizesse dele aquilo de que já nem tinha esperanças.

Imagine-se, pois, a ansiedade com que ele esperou as horas.

Valia-lhe, porém, que, apesar dos receios, a sua imaginação trabalhava sempre; e era de ver o quadro que ela desenhava no futuro, os castelos que construía no ar; credores pagos, casas magníficas, salões, bailes, carros, cavalos, viagens, mulheres enfim, porque nos sonhos do dr. Antero havia sempre uma ou duas mulheres.

O criado veio enfim chamá-lo.

A sala do jantar era pequena, mas ornada com muito gosto e simplicidade.

Quando o doutor entrou não havia ninguém; mas pouco depois entrou o major, já vestido com uma sobrecasaca preta abotoada até o pescoço e contrastando com a cor branca dos seus cabelos e bigodes e a tez pálida do rosto.

O major sentou-se à cabeceira da mesa, e o doutor à esquerda; a cadeira da direita estava reservada para a filha do major.

Mas onde estava a moça? O doutor quis fazer a pergunta ao velho; mas reparou a tempo que a pergunta seria indiscreta.

E sobre indiscreta, seria inútil, porque alguns minutos depois abriu-se uma porta que ficava fronteira ao lugar em que o doutor estava sentado, e apareceu uma criada anunciando a chegada de Celestina.

O velho e o doutor levantaram-se.

A moça apareceu.

Era uma figura delgada e franzina, nem alta nem baixa, mas extremamente airosa. Não andou, deslisou da porta à mesa; seus pés deviam ser asas de pomba.

O doutor ficou profundamente surpreendido com a aparição; até certo ponto contava com uma rapariga nem bonita nem feia, uma espécie de fardo que só podia ser carregado aos ombros de uma fortuna. Pelo contrário, tinha diante de si uma verdadeira beleza.

Era, com efeito, um rosto angélico; transluzia-lhe no semblante a virgindade do coração. Os olhos serenos e doces pareciam feitos para a contemplação; os cabelos louros e caídos em cachos naturais assemelhavam-se a uma auréola. A tez era alva e finíssima; todas as feições eram de uma harmonia e correção admiráveis. Rafael podia copiar dali uma das suas virgens.

Vestia de branco; uma fita azul, presa à cintura, delineava-lhe o talhe elegante e gracioso.

Celestina dirigiu-se ao pai e beijou-lhe a mão: depois cumprimentou sorrindo ao dr. Antero, e sentou-se na cadeira que lhe estava destinada.

O doutor não tirava os olhos dela. No espírito superficial daquele homem entrava a descobrir-se uma profundidade.

Pouco depois de sentar-se, a moça voltou-se para o pai e perguntou-lhe:

— Este senhor é o que vai ser meu marido?

— É, respondeu o maior.

— É bonito, disse ela sorrindo para o rapaz.

Havia tanta candura e simplicidade na pergunta e na observação da moça, que o doutor voltou instintivamente a cabeça para o major, com ímpetos de perguntar-lhe se devia acreditar nos seus ouvidos.

O velho compreendeu o espanto do rapaz, e sorriu maliciosamente. O doutor olhou outra vez para Celestina, que o contemplava com uma admiração tão natural e tão sincera, que o rapaz chegou... a corar.

Começaram a jantar.

A conversa começou tolhida e esquerda, por causa do doutor, que caminhava de espanto em espanto; mas dentro de pouco tornou-se expansiva e franca.

Celestina era a mesma afabilidade do pai, realçada pelas graças da juventude, e mais ainda por uma singeleza tão agreste, tão nova, que o doutor se julgava transportado a uma civilização desconhecida.

Quando acabaram o jantar passaram à sala da sesta. Chamava-se assim uma espécie de galeria de onde se descortinavam os arredores da casa. Celestina deu o braço ao doutor sem que este lhe oferecesse e seguiram os dois adiante do major, que ia resmungando uns salmos de Davi.

Na sala da sesta sentaram-se os três; era a hora do crepúsculo; as montanhas e o céu começavam a despir os véus da tarde para vestir os da noite. A hora era propícia aos enlevos; o dr. Antero, posto que educado em outra ordem de sensações, sentia-se arrebatado nas asas da fantasia.

A conversa versou sobre mil coisas de nada; a moça disse ao doutor que tinha dezessete anos, e perguntou a idade dele. Depois, contou por menor todos os hábitos da sua vida, as suas prendas e seu gosto pelas flores, o seu amor às estrelas, tudo isso com uma graça que tirava um pouco da juventude e um pouco da infância.

Voltou-se ao assunto do casamento, e Celestina perguntou se o rapaz tinha dúvida em casar com ela.

— Nenhuma, disse ele; pelo contrário, tenho sumo prazer... é uma felicidade para mim.

— Que lhe disse eu? perguntou o pai de Celestina. Eu já sabia que bastava vê-la para ficá-la amando.

— Então posso contar que seja meu marido, não?

— Sem dúvida, disse o doutor sorrindo.

— Mas o que é marido? perguntou Celestina, depois de alguns instantes.

A esta pergunta inesperada, o rapaz não pôde reprimir um movimento de surpresa. Olhou para o velho major; mas este, encostado na larga poltrona em que se achava sentado, começava a adormecer.

A moça repetia com os olhos a pergunta feita com os lábios. O doutor envolveu-a com um olhar de amor, talvez o primeiro que teve em sua vida; depois pegou docemente na mão de Celestina e levou-a aos lábios.

Celestina estremeceu toda e soltou um pequeno grito, que fez acordar sobressaltado o major.

— Que é? disse este.

— Foi meu marido, respondeu a moça, que tocou com a boca dele na minha mão.

O major levantou-se, olhou severamente para o rapaz, e disse à filha:

— Está bem, vai para o teu quarto.

A moça ficou um pouco surpreendida com a ordem do pai, mas obedeceu imediatamente, despedindo-se do rapaz com a mesma descuidosa simplicidade com que lhe falara pela primeira vez.

Quando os dois ficaram sós, o major pegou no braço do doutor, e disse-lhe:

— Meu caro senhor, respeite as pessoas do céu; quero um genro, não quero um tratante. Ora, cuidado!

E saiu.

O dr. Antero ficou atônito com as palavras do major; era a terceira vez que lhe falava em pessoas ou enviados do céu. Que queria dizer com aquilo?

Pouco depois veio o criado com ordem de acompanhá-lo até o quarto; o doutor obedeceu sem fazer objeção.

A noite foi má para o dr. Antero; acabara de assistir a cenas tão estranhas, ouvira palavras tão misteriosas, que o pobre moço perguntou a si mesmo se não era vítima de um sonho.

Infelizmente não era.

Aonde iria dar aquilo tudo? Qual o resultado da cena da tarde? O rapaz temia, mas já não ousava pensar na fuga; a idéia da moça começava a ser um vínculo.

Dormiu tarde e mal; foram-lhe agitados os sonhos.

No dia seguinte levantou-se cedo, e recebeu do criado as folhas do dia. Enquanto não vinha a hora do almoço, quis ler as notícias do mundo, do qual parecia estar separado por um abismo.

Ora, eis aqui o que encontrou no Jornal do Commercio:

Suicídio. — Anteontem, à noite, o dr. Antero da Silva, depois de dizer ao seu criado que saísse e só voltasse de madrugada, encerrou-se no quarto da casa que ocupava à rua da Misericórdia, e escreveu a carta que os leitores encontrarão adiante.

Como se vê dessa carta, o dr. Antero da Silva declarava a sua intenção de matar-se; mas a singularidade do caso é que, voltando o criado para casa de madrugada, encontrou a carta, mas não encontrou o amo.

O criado deu imediatamente parte à polícia, que empregou todas as diligências a ver se obtinha notícia do jovem doutor.

Com efeito, depois de bem combinadas providências, encontrou-se na praia de Santa Luzia um cadáver que se reconheceu ser o do infeliz moço. Parece que, apesar da declaração de que empregaria a pistola, o desgraçado procurou outro meio menos violento de morte.

Supõe-se que uma paixão amorosa o levou a cometer este ato; outros querem que fosse por fugir aos credores. A carta entretanto reza de outros motivos. Ei-la.

Aqui seguia a carta que vimos no primeiro capítulo.

A leitura da notícia produziu no dr. Antero uma impressão singular; estaria ele morto deveras? Teria já saído do mundo da realidade para o mundo dos eternos sonhos? Era tão extravagante tudo o que lhe acontecia desde a antevéspera, que o pobre rapaz sentiu por um instante vacilar-lhe a razão.

Mas pouco a pouco voltou à realidade das coisas; interrogou a si e a tudo o que o rodeava; releu atentamente a notícia; a identidade reconhecida pela polícia, que ao princípio o impressionara, fê-lo sorrir depois; e não menos o fez sorrir um dos motivos que se dava ao suicídio, o motivo da paixão amorosa.

Quando o criado voltou, pediu-lhe o doutor notícia circunstanciada do major e de sua filha. A moça estava boa; quanto ao major, disse o criado que lhe ouvira de noite alguns soluços, e que de manhã se levantara abatido.

— Admira-me isto, acrescentou o criado, porque não sei que tivesse motivo para chorar, e além disso o amo é um velho alegre.

O doutor não respondeu; sem saber por que, atribuía-se a causa daqueles soluços do velho; foi a ocasião do seu primeiro remorso.

O criado disse-lhe que o almoço o esperava; o doutor dirigiu-se para a sala de jantar onde achou o major realmente um pouco abatido. Foi direito a ele.

O velho não se mostrou ressentido; falou-lhe com a mesma bondade da véspera. Pouco depois chegou Celestina, bela, descuidosa, inocente como da primeira vez; beijou a testa do pai, apertou a mão ao doutor e sentou-se no seu lugar. O almoço correu sem incidente; a conversa nada teve de notável. O major propôs que na tarde desse dia Celestina executasse ao piano alguma composição bonita, para que o doutor pudesse apreciar os seus talentos.

Entretanto a moça quis mostrar ao rapaz as suas flores, e o pai deu-lhe licença para isso; a um olhar do velho a criada de Celestina acompanhou os dois futuros noivos.

As flores de Celestina estavam todas em meia dúzia de vasos, postos sobre uma janela do seu gabinete de leitura e trabalho. Chamava ela aquilo o seu jardim. Bem pequeno era ele, e pouco tempo exigia para o exame; ainda assim, o doutor tratou de prolongá-lo o mais que pôde.

— Que me diz a estas violetas? perguntou a moça.

— São lindíssimas! respondeu o doutor.

Celestina arranjou as folhas com sua mãozinha delicada; o doutor adiantou a sua mão para tocar nas folhas também; os dedos de ambos se encontraram; a moça estremeceu, e baixou os olhos; um leve rubor coloriu-lhe as faces.

O rapaz receou que daquele involuntário encontro pudesse nascer algum motivo de remorso para ele, e tratou de retirar-se. A moça despediu-se, dizendo:

— Até logo, sim?

— Até logo.

O doutor saiu do gabinete de Celestina, e já entrava a pensar como daria com o caminho para o seu quarto, quando encontrou à porta o criado, que se preparou para acompanhá-lo.

— Tu pareces a minha sombra, disse-lhe o doutor sorrindo.

— Sou apenas um criado do senhor.

Entrando no quarto ia o rapaz cheio de vivas impressões; a pouco e pouco sentia-se transformado pela moça; até os receios se lhe dissipavam; parecia-lhe que ao pé dela não devia recear coisa nenhuma.

Os jornais estavam ainda em cima da mesa; perguntou ao criado se seu amo costumava a lê-los. O criado respondeu que não, que ninguém os lia em casa, e tinham sido assinados só por causa dele.

— Só por minha causa?

— Só.

O jantar e a música reuniram os três convivas durante perto de quatro horas. O doutor estava no sétimo céu; já começava a enxergar a casa como sua; a vida que levava era para ele a melhor vida deste mundo.

— Um minuto mais tarde, pensava ele, e eu tinha perdido esta felicidade.

Com efeito, pela primeira vez o rapaz amava seriamente; Celestina aparecera-lhe como a personificação da ventura terrestre e das santas efusões do coração. Contemplava-a com respeito e ternura. Podia viver ali eternamente.

Entretanto a conversa sobre o casamento não se repetiu; o major esperava que o rapaz se declarasse, e o rapaz aguardava oportunidade para fazer a sua declaração ao major.

Quanto a Celestina, apesar de seu angélico estouvamento, evitava falar do assunto. Seria recomendação do pai? O doutor chegou a supô-lo; mas a idéia varreu-se-lhe do espírito ante a consideração de que era tudo tão franco naquela casa que uma recomendação desta ordem só podia ter por causa um grande acontecimento. O ósculo na mão da moça não lhe pareceu acontecimento de tanta magnitude.

Cinco dias depois da sua estada ali, o major disse-lhe ao almoço que desejava falar-lhe, e com efeito, apenas se acharam os dois a sós, o major tomou a palavra, e expressou-se nestes termos:

— Meu caro doutor, já deve ter percebido que eu não sou um homem vulgar; nem sou mesmo um homem. Gosto do senhor porque tem respeitado a minha origem celeste; se eu fugi ao mundo é porque ninguém me queria respeitar.

Conquanto já tivesse ouvido do major algumas palavras dúbias nesse sentido, o dr. Antero ficou assombrado com o pequeno discurso, e não achou resposta que lhe desse. Arregalou muito os olhos e abriu a boca; todo ele era um ponto de admiração e interrogação ao mesmo tempo.

— Eu sou, continuou o velho, eu sou o anjo Rafael, mandado pelo Senhor a este vale de lágrimas a ver se colho algumas boas almas para o céu. Não pude cumprir a minha missão, porque apenas disse quem era fui tido em conta de impostor. Não quis afrontar a ira e o sarcasmo dos homens; retirei-me a esta morada, onde espero morrer.

O major dizia tudo com uma convicção e serenidade que, dado o caso de falar a um homem menos mundano, vê-lo-ia logo ali a seus pés. Mas o dr. Antero não viu na origem celeste do major mais do que uma monomania pacífica. Compreendeu que era inútil e perigoso contestá-lo.

— Fez bem, disse o moço, fez bem em fugir ao mundo. Que há aí no mundo que valha um sacrifício verdadeiramente grande? A humanidade já se não regenera; se Jesus aparecesse hoje é duvidoso que lhe deixassem fazer o discurso da montanha; matavam-no logo no primeiro dia.

Brilharam os olhos do major ouvindo as palavras do doutor; quando ele acabou, o velho saltou-lhe ao pescoço.

— Disse pérolas, exclamou o velho. Isso é que é ver as coisas. Bem vejo, sai a seu pai; jamais ouvi daquele amigo palavra que não fosse de veneração para mim. Tem o mesmo sangue nas veias.

O dr. Antero correspondeu como pôde à efusão do anjo Rafael, por cujos olhos saiam chispas de fogo.

— Ora, pois, continuou o velho sentando-se outra vez, é isso mesmo o que eu desejava encontrar; um rapaz de bom caráter, que pudesse fazer de minha filha aquilo que ela merece, e não duvidasse da minha natureza nem da minha missão. Diga-me, gosta de minha filha?

— Muito! respondeu o rapaz; é um anjo...

— Pudera! atalhou o major. Que queria então que ela fosse? Há de casar com ela, não?

— Sem dúvida.

— Bom, disse o major olhando para o doutor com um olhar cheio de tão paternal ternura, que o moço sentiu-se comovido.

Nesse momento, a criada de Celestina atravessou a sala, e passando por trás da cadeira do major abanou a cabeça com ar de compaixão; o doutor apanhou o gesto que a criada fizera só para si.

— O casamento há de ser breve, continuou o major quando os dois se acharam sós, e, como lhe disse, dou-lhe uma riqueza. Quero que acredite; vou mostrar-lhe.

O dr. Antero recusou ir ver a riqueza, mas pede a verdade que se diga que a recusa era simples formalidade. A atmosfera angélica da casa já o tinha melhorado em parte, mas havia nele ainda uma parte do homem, e do homem que passara metade da vida em dissipações de espírito e sentimento.

Como o velho insistisse, o doutor declarou-se pronto a acompanhá-lo. Passaram dali a um gabinete onde o major tinha a biblioteca; o major fechou a porta com a chave; depois disse ao doutor que tocasse uma mola que desaparecia no lombo de um livro fingido, no meio de uma estante.

O doutor obedeceu.

Toda aquela fileira de livros era simulada; ao toque do dedo do doutor abriu-se uma portinha que dava para um vão escuro onde se achavam cinco ou seis caixinhas de ferro.

— Nessas caixas, disse o major, tenho eu cem contos de réis: são seus.

Os olhos do dr. Antero faiscaram; via diante de si uma fortuna, e só dependia dele possuí-la.

O velho mandou que fechasse outra vez o esconderijo, processo que lhe ensinou também.

— Fique sabendo, acrescentou o major, que é o primeiro a quem mostro isto. Mas é natural; já o considero como filho.

Com efeito, foram para a sala da sesta, aonde Celestina foi ter pouco depois; a vista da moça produziu no rapaz a boa impressão de fazer-lhe esquecer as caixas de ferro e mais os cem contos.

Ali mesmo se marcou o dia do casamento, que devia ser um mês depois.

O doutor estava disposto a tudo de tão boa vontade, que a reclusão forçada terminou logo; o major permitiu-lhe sair; mas o doutor declarou que não sairia dali senão depois de casado.

— Depois será mais difícil, disse o velho major.

— Pois bem, não sairei.

A intenção do rapaz era sair depois de casado, e para isso inventaria algum meio; por enquanto, não queria comprometer a sua felicidade.

Celestina estava contentíssima com o casamento; era uma diversão na monotonia de sua vida.

Separaram-se depois do jantar, e já então o doutor não encontrou o criado para o conduzir ao quarto; tinha a liberdade de ir aonde quisesse. O doutor foi direito ao quarto.

A sua situação tomava um novo aspecto; não se tratava de um crime nem de uma emboscada; tratava-se de um monomaníaco. Ora, por felicidade do moço, esse monomaníaco exigia dele exatamente aquilo que ele estava disposto a fazer; tudo bem considerado, entrava-lhe pela porta uma felicidade inesperada, que nem era lícito sonhar quando se está à beira do túmulo.

No meio de belos sonhos o rapaz adormeceu.

O dia seguinte era um domingo.

O rapaz, depois de ler as notícias dos jornais e alguns artigos políticos, passou aos folhetins. Ora, aconteceu que um deles tratava precisamente do suicídio do dr. Antero da Silva. A carta póstuma servia de assunto para as considerações galhofeiras do folhetinista.

Um dos períodos dizia assim:

Se não fosse o suicídio do homem, eu não tinha assunto ameno para tratar hoje. Felizmente lembrou-se de morrer a tempo, coisa que nem sempre acontece a um marido, nem a um ministro de Estado.

Mas morrer era nada; morrer e deixar uma carta desfrutável como a que o público leu, isso é que é ter compaixão de um escritor aux abois.

Desculpe o leitor o termo francês; vem do assunto; eu estou convencido que o dr. Antero (que pelo nome não perca) leu algum romance parisiense em que viu o original daquela carta.

Salvo se nos quis provar que não era simplesmente um espírito medíocre, mas também um formidável tolo.

Tudo é possível.

O doutor amarrotou o jornal quando acabou de ler o folhetim; mas depois sorriu filosoficamente; e acabou achando razão no autor do artigo.

Com efeito, aquela carta, que ele escrevera com tanta alma, e que contava fizesse impressão no público, parecia-lhe agora uma famosa tolice.

Dera talvez uma das caixas de ferro do major para não tê-la escrito.

Era tarde.

Mas o desgosto do folhetim não foi o único; adiante encontrou um convite para uma missa por sua alma. Quem convidava para a missa? os seus amigos? Não; o criado Pedro, que, ainda comovido com a dádiva dos cinqüenta mil-réis, achou que cumpria um dever sufragando a alma do amo.

— Bom Pedro! disse ele.

E assim como tinha tido naquela casa o primeiro amor, e o primeiro remorso, teve ali a primeira lágrima, uma lágrima de gratidão pelo fiel criado.

Chamado para almoçar, o doutor foi ter com o major e Celestina. Já então a chave do quarto ficava com ele mesmo.

Sem saber por que, achou Celestina mais celeste que nunca, e também mais séria do que costumava. A seriedade quereria dizer que o rapaz já lhe não era indiferente? O dr. Antero pensou que sim, e eu, na qualidade de romancista, direi que pensava bem.

Contudo a seriedade de Celestina não excluía a sua afabilidade, nem ainda o seu estouvamento; era uma seriedade intermitente, uma espécie de enlevo e cisma, a primeira aurora do amor, que enrubesce a face e cerca a fronte de uma espécie de auréola.

Como já houvesse liberdade e confiança, o doutor pediu a Celestina, no fim do almoço, que fosse tocar um pouco. A mocinha tocava deliciosamente.

Encostado ao piano, com os olhos postos na moça, e a alma embebida nas harmonias que os dedos dela desferiam do teclado, o dr. Antero esquecia-se do resto do mundo para viver só daquela criatura que dentro de pouco tempo ia ser sua mulher.

Durante esse tempo o major passeava, com as mãos cruzadas sobre as costas, e gravemente pensativo.

O egoísmo do amor é implacável; diante da mulher que o seduzia e atraía, o moço nem tinha um olhar para aquele pobre velho demente que lhe dava mulher e fortuna.

O velho de quando em quando parava e exclamava:

— Bravo! bravo! Assim tocarás um dia nas harpas do céu!

— Gosta de me ouvir tocar? perguntou a moça ao doutor.

— Valia a pena morrer ouvindo esta música.

No fim de um quarto de hora, o major saiu, deixando os dois noivos na sala.

Era a primeira vez que ficavam a sós.

O rapaz não ousava reproduzir a cena da outra tarde; podia haver um novo grito da moça e tudo estava perdido para ele.

Mas os seus olhos, esquecidamente embebidos nos da moça, falavam melhor que todos os ósculos deste mundo. Celestina olhava para ele com essa confiança da inocência e do pudor, essa confiança de quem não suspeita o mal e só conhece o bem.

O doutor compreendeu que era amado; Celestina não compreendeu, sentiu que estava presa àquele homem por alguma coisa mais forte que a palavra do pai. A música cessara.

O doutor sentou-se defronte da moça, e disse-lhe:

— Casa-se comigo por vontade?

— Eu? respondeu ela; certamente que sim; gosto do senhor; além disso, meu pai quer, e quando um anjo quer...

— Não zombe assim, disse o doutor; não é culpa...

— Zombar de quê?

— De seu pai.

— Ora essa!

— É um desgraçado.

— Não conheço anjos desgraçados, respondeu a moça com uma graça tão infantil e um ar de tanta convicção que o doutor franziu a testa com um gesto de espanto.

A moça continuou:

— Bem feliz que ele é; quem me dera ser anjo como ele! é verdade que filha dele devo ser também... e, na verdade, sou também angélica...

O doutor ficou pálido, e levantou-se com tanta precipitação, que Celestina não pôde reprimir um gesto de susto.

— Ah! que tem?

— Nada, disse o rapaz passando a mão pela testa; foi uma vertigem.

Nesse momento entrou o major. Antes que tivesse tempo de perguntar nada, a filha correu a ele e disse que o doutor se achava incomodado.

O moço declarou achar-se melhor; mas pai e filha foram de opinião que devia ir descansar um pouco. O doutor obedeceu.

Quando chegou ao quarto atirou-se à cama e esteve alguns minutos sem movimento, mergulhado em reflexões. As palavras incoerentes da moça diziam-lhe que não havia naquela casa só um doido; tanta graça e beleza nada valiam; a infeliz estava nas condições do pai.

— Coitada! também é louca! Mas por que singular acordo de circunstâncias ambos eles estão de acordo nesta monomania celestial?

O doutor fazia esta e mil outras perguntas a si mesmo, sem achar resposta plausível. O que havia de certo é que o edifício da sua ventura acabava de esboroar-se.

Só lhe restava um recurso; aproveitar a licença concedida pelo velho e sair daquela casa, que parecia encerrar uma história sombria.

Com efeito, ao jantar o dr. Antero declarou ao major que tinha intenção de ir à cidade ver uns papéis, no dia seguinte de manhã; voltaria de tarde.

No dia seguinte, logo depois do almoço, preparou-se o rapaz para ir embora, não sem ter prometido a Celestina que voltaria o mais cedo que pudesse. A moça pedia-lhe com alma; ele hesitou por um momento; mas que fazer? era melhor fugir dali quanto antes.

Estava já pronto, quando sentiu bater-lhe à porta muito ao de leve; foi abrir; era a criada de Celestina.

Esta criada, que se chamava Antônia, representava ter quarenta anos de idade. Não era feia nem bonita; tinha umas feições comuns e irregulares. Mas bastava olhá-la para ver nela o tipo da bondade e da dedicação.

Antônia entrou precipitadamente, e ajoelhou-se aos pés do doutor.

— Não vá! sr. doutor! não vá!

— Levante-se, Antônia, disse o rapaz.

Antônia levantou-se e repetiu as mesmas palavras.

— Que eu não vá? perguntou o doutor; mas por quê?

— Salve aquela menina!

— Pois quê! ela está em perigo?

— Não; mas é preciso salvá-la. Pensa que eu não adivinhei o seu pensamento? O senhor quer ir-se embora de uma vez.

— Não; prometo...

— Quer, e eu lhe peço que não vá... pelo menos até amanhã.

— Mas não me explicará...

— Agora, é impossível; pode vir gente; mas esta noite; olhe, à meia-noite, quando ela já estiver dormindo, eu virei aqui e lhe explicarei tudo. Mas promete que não vai?

O rapaz respondeu maquinalmente.

— Prometo.

Antônia saiu precipitadamente.

No meio daquela constante alternativa de boas e más impressões, naquele desenrolar de emoções diversas, de mistérios diferentes, era de admirar que o espírito do rapaz não ficasse abalado, tão abalado como o do major. Parece que chegou a recear de si.

Logo depois que saiu Antônia, sentou-se o doutor, e entrou a conjecturar que perigo seria aquele de que era preciso salvar a pequena. Mas não atinando com ele, resolveu ir ter com ela ou com o major, e já se preparava para isso, quando o futuro sogro lhe entrou pelo quarto.

Vinha alegre e lépido.

— Ora, guarde-o Deus, disse ele ao entrar; é a primeira vez que o visito no seu quarto.

— É verdade, respondeu o doutor. Queira sentar-se.

— Mas também o motivo que me traz aqui é importante, disse o velho assentando-se.

— Ah!

— Sabe quem morreu?

— Não.

— O diabo.

Dizendo isto deu uma gargalhada nervosa que fez estremecer o doutor; o velho continuou:

— Sim, senhor, morreu o diabo; o que é grande fortuna para mim, porque me dá a maior alegria da minha vida. Que lhe parece?

— Parece-me que é uma felicidade para nós todos, disse o dr. Antero; mas como soube da notícia?

— Soube por carta que recebi hoje do meu amigo Bernardo, também amigo de seu pai. Não vejo o Bernardo há doze anos; chegou agora do Norte, e apressou-se a escrever-me para dar esta agradável notícia.

O velho levantou-se, passeou pelo quarto sorrindo, murmurando algumas palavras sozinho, e parando de quando em quando para contemplar o hóspede.

— Não acha, disse ele numa das vezes que parou, não acha que esta notícia é a melhor festa que posso ter por ocasião de casar minha filha?

— Com efeito, assim é, respondeu o rapaz levantando-se; mas, visto que o inimigo da luz morreu, não falemos mais nele.

— Tem muita razão; não falemos mais nele.

O doutor dirigiu a conversa para assuntos diversos; falou de campanhas, de literatura, de plantações, de tudo quanto afastasse o major dos assuntos angélicos ou diabólicos.

Finalmente saiu o major dizendo que esperava o coronel Bernardo, seu amigo, para jantar, e que teria sumo prazer em apresentar-lhe.

Mas a hora do jantar chegou sem que chegasse o coronel, de maneira que o doutor ficou convencido de que o coronel, a carta e o diabo não passavam de criações do major. Devia estar convencido desde princípio; e se estivesse convencido estaria em erro, porque o coronel Bernardo apresentou-se em casa às ave-marias.

Era um homem cheio de corpo, robusto, vermelho, olhos vivos, falando apressadamente, um homem sem cuidados nem remorsos. Representava quarenta anos e tinha cinqüenta e dois; vestia uma sobrecasaca militar.

O major abraçou o coronel com uma satisfação ruidosa, e apresentou-o ao dr. Antero como um dos seus melhores amigos. Apresentou o doutor ao coronel declarando ao mesmo tempo que ia ser seu genro; e finalmente mandou chamar a filha, que não tardou muito a chegar à sala.

Quando o coronel pôs os olhos em Celestina arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; tinha-a visto pequena e achava-a moça feita, e moça bonita. Abraçou-a paternalmente.

Durou a conversa entre os quatro uma meia hora, tempo em que o coronel, com uma volubilidade que contrastava com a frase pausada do major, contou mil e uma circunstâncias da sua vida de província.

No fim desse tempo, o coronel declarou que queria falar em particular ao major; o doutor retirou-se para o seu quarto, deixando Celestina, que poucos minutos depois retirou-se também.

O coronel e o major fecharam-se na sala; ninguém ouvia a conversa, mas o criado viu que só à meia-noite saiu da sala o coronel, dirigindo-se para o quarto que lhe haviam preparado.

Quanto ao doutor, apenas entrou no quarto viu sobre a mesa uma carta, com sobrescrito para ele. Abriu e leu o seguinte:

Meu noivo, escrevo-lhe para dizer que não se esqueça de mim, que sonhe comigo, e que goste de mim como eu gosto do senhor. — Sua noiva, Celestina.

Nada mais.

Era uma cartinha de amores pouco parecida com as que se escrevem em casos tais, uma carta simples, ingênua, audaz, sincera.

O rapaz releu-a, beijou-a e levou-a ao coração.

Depois preparou-se para receber a visita de Antônia, que, como os leitores se devem lembrar, estava marcada para a meia-noite.

Para matar o tempo o rapaz abriu um dos livros que estavam sobre a mesa. Acertou de ser Paulo e Virgínia; o doutor nunca havia lido o celeste romance; o seu ideal e a sua educação o afastavam daquela literatura. Mas agora tinha o espírito preparado para apreciar páginas tais; sentou-se e leu rapidamente metade da obra.

A meia-noite ouviu bater à porta; era Antônia.

A boa mulher entrou com preparação; receava que o menor ruído a comprometesse. O rapaz fechou a porta, e fez com que Antônia se sentasse.

— Agradeço-lhe o ter ficado, disse ela sentando-se, e vou dizer-lhe que perigo ameaça a minha pobre Celestina.

— Perigo de vida? perguntou o doutor.

— Mais do que isso.

— De honra?

— Menos que isso.

— Então...

— O perigo da razão; eu receio que a pobre moça fique louca.

— Receia? disse o doutor sorrindo tristemente; está certa de que ela já o não está?

— Estou. Mas pode vir a ficar, tão louca como o pai.

— Esse...

— Esse está perdido.

— Quem sabe?

Antônia abanou a cabeça.

— Deve estar, porque há doze anos que perdeu a razão.

— Sabe o motivo?

— Não sei. Eu vim para esta casa há cinco anos; a menina tinha dez; era, como hoje, uma criaturinha viva, alegre e boa. Mas nunca tinha saído daqui; é provável que não tenha visto em sua vida mais de dez pessoas. Ignora tudo. O pai, que já então estava convencido de que era o anjo Rafael, como ainda hoje diz, repetia-o à filha constantemente, de maneira que ela acredita firmemente ser filha de um anjo. Tentei dissuadi-la disso; mas ela foi contar ao major, e este ameaçou-me de mandar-me embora se eu inculcasse más idéias à filha. Era má idéia dizer à menina que ele não era o que dizia e simplesmente um desgraçado doido.

— E a mãe dela?

— Não conheci; perguntei por ela a Celestina; e soube que ela também a não conhecera, pela razão de que não tivera mãe. Referiu-me ter sabido, por boca de seu pai, que ela viera ao mundo por obra e graça do céu. Bem vê que a menina não está louca; mas aonde irá ter com estas idéias?

O doutor estava pensativo; compreendia agora as palavras incoerentes da moça ao piano. A narração de Antônia era verossímil. Cumpria salvar a moça levando-a para fora dali. Para isso o casamento era o melhor meio.

— Tens razão, boa Antônia, disse ele, salvaremos Celestina; descansa em mim.

— Jura?

— Juro.

Antônia beijou a mão ao rapaz, derramando algumas lágrimas de contentamento. É que Celestina era para ela mais do que ama, era uma espécie de filha criada na solidão.

Saiu a criada, e o doutor deitou-se, não só porque a hora era adiantada, como porque o seu espírito pedia algum repouso ao cabo de tantas e novas emoções.

No dia seguinte falou ao major na necessidade de abreviar o casamento, e por conseqüência na de arranjar os papéis.

Concordou-se que o casamento seria na capela de casa, e o major concedeu licença para que um padre os casasse; isto pela consideração de que, se Celestina, como filha de um anjo, estava acima de um padre, não acontecia o mesmo com o doutor, que era simplesmente um homem.

Quanto aos papéis, levantou-se uma dúvida relativamente à declaração do nome da mãe da moça. O major declarou peremptoriamente que Celestina não tinha mãe.

Mas o coronel, que estava presente, interveio no debate, dizendo ao major estas palavras, que o doutor não compreendeu, mas que lhe fizeram impressão:

— Tomás! lembra-te de ontem à noite.

O major calou-se imediatamente. Quanto ao coronel, voltando-se para o dr. Antero disse-lhe:

— Tudo se há de arranjar: descanse.

A conversa ficou nisto.

Mas houve quanto bastasse para que o doutor descobrisse nas mãos do coronel Bernardo o fio daquela meada. O rapaz não hesitou em aproveitar a primeira ocasião para entender-se com o coronel a fim de o informar acerca dos mil e um pontos obscuros daquele quadro que há dias tinha diante dos olhos.

Celestina não assistira à conversa; estava na outra sala tocando piano. O doutor lá foi ter com ela, e achou-a triste. Perguntou-lhe por quê.

— Eu sei! respondeu a moça; está-me parecendo que o senhor não gosta de mim; e se me perguntar por que a gente gosta dos outros, não sei.

O moço sorriu, pegou-lhe na mão, apertou-a entre as suas, e levou-a aos lábios. Desta vez, Celestina não gritou, nem resistiu; ficou a olhar embebida para ele, pendente dos seus olhos, pode-se dizer que pendente da sua alma.

Na noite seguinte, o dr. Antero passeava no jardim, justamente por baixo da janela de Celestina. A moça não sabia que ele se achava ali, nem o rapaz quis por modo nenhum chamar a atenção dela. Contentava-se em olhar de longe, vendo de quando em quando desenhar-se na parede a sombra daquele delicado corpo.

Havia lua e o céu estava sereno. O doutor, que até ali não conhecia nem apreciava os mistérios da noite, aprazia-se agora em conversar com o silêncio, a sombra e a solidão.

Quando se achava mais embebido com os olhos na janela, sentiu que alguém lhe batia no ombro.

Estremeceu, e voltou-se rapidamente.

Era o coronel.

— Olá, meu caro doutor, disse o coronel, faz um idílio antes do casamento?

— Estou tomando fresco, respondeu o doutor; a noite está magnífica e lá dentro está calor.

— Isto é verdade; eu também vim tomar fresco. Passeamos, se lhe não interrompo as reflexões.

— Pelo contrário, e eu até estimo...

— Ter-me encontrado?

— Justo.

— Pois então melhor.

O rumor das palavras trocadas pelos dois foi ouvido no quarto de Celestina. A moça chegou à janela e procurou ver se descobria de quem eram as vozes.

— Lá está ela, disse o coronel. Olhe!

Os dois homens aproximaram-se, e o coronel disse para Celestina:

— Somos nós, Celestina; eu e o teu noivo.

— Ah! que andam fazendo?

— Bem vês; tomando fresco.

Houve um silêncio.

— Não me diz nada, doutor? perguntou a moça.

— Contemplo-a.

— Faz bem, respondeu ela; mas como o ar pode fazer-me mal, boa noite.

— Boa noite!

Celestina entrou, e pouco depois fechou-se a janela.

Quanto aos dois homens, dirigiram-se para um banco de pau que ficava na outra extremidade do jardim.

— Diz então que estimava encontrar-me?

— É verdade, coronel; peço-lhe uma informação.

— E eu vou dar-lhe.

— Sabe o que é?

— Adivinho.

— Tanto melhor; evita-me um discurso.

— Quer saber quem é a mãe de Celestina?

— Em primeiro lugar.

— Pois que mais?

— Quero saber depois qual a razão desta loucura do major.

— Não sabe nada?

— Nada. Eu estou aqui em conseqüência de uma aventura singularíssima que lhe vou narrar.

O doutor repetiu ao coronel a história da carta e do recado que o chamara ali, sem ocultar que o convite do major chegara justamente na ocasião em que ele se achava disposto a romper com a vida.

O coronel ouviu atentamente a narração do moço; ouviu também a confissão de que a entrada naquela casa fizera do doutor um bom homem, quando não passava de um homem inútil e mau.

— Confissão por confissão, disse o doutor; venha a sua.

O coronel tomou a palavra.

— Fui amigo de seu pai e do major; seu pai morreu há muito; ficamos eu e o major como dois sobreviventes dos três irmãos Horácios, nome que nos davam os homens do nosso tempo. O major era casado, eu solteiro. Um dia, por motivos que não vêm ao caso, o major suspeitou que sua mulher lhe era infiel, e expulsou-a de casa. Eu também acreditei na infidelidade de Fernanda, e aprovei, em parte, o ato do major. Digo-lhe em parte, porque a pobre mulher no dia seguinte não tinha de comer; e foi de minha mão que recebeu alguma coisa. Protestou ela por sua inocência com as lágrimas nos olhos; eu não acreditei nas lágrimas nem nos protestos. O major ficou louco, e veio para esta casa com a filha, e nunca mais saiu. Acontecimentos imprevistos me obrigaram a ir pouco depois para o Norte, onde estive até há pouco. E não teria voltado se...

O coronel estacou.

— Que é? perguntou-lhe o doutor.

— Não vê um vulto ali?

— Aonde?

— Ali.

Com efeito encaminhava-se um vulto para os dois interlocutores; a alguns passos reconheceram ser o criado José.

— Sr. Coronel, disse o criado, ando à sua procura.

— Por quê?

— O amo quer falar-lhe.

— Bem; lá vou.

O criado retirou-se, e o coronel continuou:

— Não teria voltado se não adquirisse a certeza de que as suspeitas do major eram todas infundadas.

— Como?

— Fui encontrar, depois de tantos anos, na província em que me achava, a esposa do major servindo de criada em uma casa. Tinha tido uma vida exemplar; as informações que obtive confirmavam as asseverações dela. As suspeitas fundavam-se numa carta achada em poder dela. Ora, essa carta comprometia uma mulher, mas não era Fernanda; era outra, cujo testemunho ouvi no ato de morrer. Compreendi que era talvez o meio de chamar o major à razão vir contar-lhe isso tudo. Vim, com efeito, e expus-lhe o que sabia.

— E ele?

— Não acredita; e quando parece ir-se convencendo das minhas asseverações, volta-lhe a idéia de que ele não é casado, porque os anjos não casam; enfim, o mais que o senhor sabe.

— Então está perdido?

— Creio que sim.

— Nesse caso cumpre salvar-lhe a filha.

— Por quê?

— Porque o major educou Celestina na mais absoluta reclusão possível, e desde pequena incutiu-lhe a idéia de que anda possuído, de maneira que eu tenho medo de que a pobre moça sofra igualmente.

— Descanse; o casamento será feito quanto antes; e o senhor a levará daqui; em último caso, se não pudermos convencê-lo, sairão sem que ele o saiba.

Levantaram-se os dois, e ao chegarem perto da casa, saiu-lhes ao encontro o criado, trazendo um novo recado do major.

— Parece-me que está doente, acrescentou o criado.

— Doente?

O coronel apressou-se a ir ter com o amigo, enquanto o doutor foi para o quarto esperar notícias dele.

Quando o coronel entrou no quarto do major achou-o muito aflito. Passeava de um lado para outro, agitado, proferindo palavras incoerentes, com o olhar desvairado.

— Que tens, Tomás?

— Ainda bem que vieste, disse o velho; sinto-me mal; veio aqui há pouco um anjo buscar-me; disse-me que eu estava fazendo falta no céu. Creio que me vou embora desta vez.

— Deixa-te disso, respondeu o coronel; foi caçoada do anjo; descansa, tranqüiliza-te.

O coronel conseguiu fazer com que o major se deitasse. Apalpou-lhe o pulso, e sentiu-lhe febre. Entendeu que era conveniente mandar buscar um médico, e deu ordem ao criado nesse sentido.

Acalmou-se a febre do major, que conseguiu dormir um pouco; o coronel mandou preparar uma cama no mesmo quarto, e depois de ir dar parte ao doutor do que acontecera, voltou para o quarto do major.

No dia seguinte o doente levantou-se melhor; o médico, tendo chegado sobre a madrugada, não chegou a aplicar-lhe nenhum remédio, mas lá ficou para o caso de ser preciso.

Quanto a Celestina, nada soube do que havia acontecido; e acordou alegre e viva como nunca.

Mas sobre a tarde voltou a febre ao major, e desta vez de um modo violento. Dentro de pouco tempo declarou-se a proximidade da morte.

O coronel e o doutor tiveram cuidado de afastar Celestina, que não sabia o que era morrer, e podia sofrer com a vista do pai moribundo.

O major, cercado pelos dois amigos, pedia-lhes com instância que lhe fossem buscar a filha; mas eles não consentiram nisso. Então, o pobre velho instou com o doutor que não deixasse de casar com ela, e ao mesmo tempo repetiu a declaração de que lhe deixava uma fortuna. Enfim sucumbiu.

Ficou assentado entre o coronel e o doutor que a morte do major seria participada à filha depois de feito o enterro, e que este teria lugar com a maior discrição possível. Assim se fez.

A ausência do major ao almoço e ao jantar do dia seguinte foi explicada a Celestina como proveniente de uma conferência em que ele estava com pessoas de sua amizade.

De maneira que, ao passo que do outro lado da casa se achava o cadáver do pai, a filha ria e conversava à mesa como nos seus melhores dias.

Mas feito o enterro era preciso dizê-lo à filha.

— Celestina, disse-lhe o coronel, tu vais casar brevemente com o dr. Antero.

— Mas quando?

— Daqui a dias.

— Dizem-me isso há que tempo!

— Pois agora é de uma vez. Teu pai...

— Que tem?

— Teu pai não volta por enquanto.

— Não volta? disse a moça. Pois onde foi ele?

— Teu pai foi para o céu.

A moça ficou pálida ouvindo a notícia; não lhe ligava nenhuma idéia fúnebre; mas o coração adivinhava que por trás daquela notícia havia uma catástrofe.

O coronel procurou distraí-la.

Mas a moça, vertendo duas lágrimas, duas só, mas que valiam por cem, disse com profunda amargura:

— Papai foi para o céu e não se despediu de mim!

Depois recolheu-se ao quarto até o dia seguinte.

O coronel e o doutor passaram a noite juntos.

Declarou o doutor que a fortuna do major estava por trás de uma estante, na biblioteca, e que ele sabia o meio de abri-la. Assentaram os dois no meio de apressar o casamento de Celestina sem prejuízo dos atos da justiça.

Cumpria, porém, antes de tudo, arrancar a moça daquela casa; o coronel indicou a casa de uma parenta sua, para onde a levariam no dia seguinte. Assentados estes pormenores, o coronel perguntou ao doutor:

— Ora, diga-me; não crê agora que haja uma providência?

— Sempre acreditei.

— Não minta; se acreditasse não teria recorrido ao suicídio.

— Tem razão, coronel; dir-lhe-ei até: eu era um pouco de lodo, hoje sinto-me pérola.

— Compreendeu-me bem; eu não queria aludir à fortuna que veio encontrar aqui, mas a essa reforma de si mesmo, a essa renovação moral, que obteve com este ar e na contemplação daquela formosa Celestina.

— Diz bem, coronel. Quanto à fortuna, estou pronto a...

— A quê? a fortuna é de Celestina; não deve desfazer-se dela.

— Mas podem supor que o casamento...

— Deixe supor, meu amigo. Que lhe importa ao senhor que suponham? Não tem a sua consciência, que lhe não argüe coisa nenhuma?

— É verdade; mas a opinião...

— A opinião, meu caro, não é mais do que uma opinião; não é a verdade. Acerta às vezes; outras calunia, e quer a desgraça que mais vezes calunie do que acerte.

O coronel em matéria de opinião pública era um perfeito ateu; negava-lhe a autoridade e a supremacia. Umas das suas máximas era esta: "A opinião pública é um muro em branco: aceita tudo quanto lhe escrevem em cima, quer venha da mão de um garoto, quer da de um homem de bem".

Foi difícil ao doutor e ao coronel convencer a Celestina de que deveria sair daquela casa; mas enfim alcançaram levá-la para a cidade de noite. A parenta do coronel, prevenida a tempo, recebeu-a em casa.

Arranjadas as coisas de justiça, tratou-se de realizar o casamento.

Antes porém de chegar a esse ponto tão almejado pelos dois noivos, foi preciso habituar Celestina à vida nova que começava a viver e que ela não conhecia. Educada entre as paredes de uma casa isolada, longe de todo o rumor, e sob direção de um homem enfermo da razão, Celestina entrou num mundo que jamais sonhara, nem dele tinha notícia.

Tudo para ela era objeto de curiosidade e espanto. Cada dia trazia-lhe uma emoção nova.

Admirava a todos que, apesar da singular educação que tivera, soubesse tocar tão bem; ela tivera com efeito um mestre chamado pelo major, que desejava, dizia ele, mostrar que um anjo, e principalmente o anjo Rafael, sabia fazer as coisas como os homens. Quanto à leitura e escritura, foi ele mesmo quem lhe ensinou.

Logo depois que voltou à cidade, o dr. Antero teve cuidado de escrever a seguinte carta aos seus amigos:

O dr. Antero da Silva, recentemente suicidado, tem a honra de participar a V. que voltou do outro mundo, e se acha ao seu dispor no hotel de ***.

Encheu-se-lhe a sala de gente que correra a vê-lo; alguns incrédulos supuseram simples caçoada de algum homem amigo de pregar peças aos outros. Foi um concerto de exclamações:

— Não morreste!

— Pois quê! estás vivo!

— Mas que foi isto!

— Aqui houve milagre!

— Qual milagre, respondia o doutor; foi simplesmente um meio engenhoso de ver a impressão que causaria a minha morte; já soube quanto quisera saber.

— Oh! disse um dos presentes, foi profunda; pergunta ao César.

— Quando soubemos do desastre, acudiu César, não quisemos crer; corremos à tua casa; era infelizmente verdade.

— Que marreco! exclamava um terceiro, fazer-nos chorar por ele, quando talvez se achasse perto de nós... Nunca te hei de perdoar aquelas lágrimas.

— Mas, disse o doutor, a polícia parece que chegou a reconhecer o meu cadáver.

— Disse que sim, e eu acreditei.

— Eu também.

Nesse momento entrou na sala um novo personagem; era o criado Pedro.

O doutor rompeu por entre os amigos e foi abraçar o criado, que entrou a derramar lágrimas de contentamento.

Aquela efusão em relação a um criado, comparada à frieza relativa com que o doutor os recebera, incomodou aos amigos que ali se achavam. Era eloqüente. Saíram os amigos pouco depois declarando que o contentamento de vê-lo lhes inspirava a idéia de lhe dar um jantar. O doutor recusou o jantar.

No dia seguinte, os jornais declararam que o dr. Antero da Silva, que se julgava morto, se achava vivo e aparecera; e logo nesse dia recebeu o doutor a visita dos credores, que, pela primeira vez, viam ressuscitar uma dívida já sepultada.

Quanto ao folhetinista de um dos jornais que tratara da morte do doutor e da carta que ele deixara, encabeçou o seu artigo do próximo sábado assim:

Dizem que reapareceu o autor de uma carta com que me ocupei ultimamente. Será verdade? Se voltou não é autor da carta; se é autor da carta não voltou.

A isto respondeu o ressuscitado:

Voltei do outro mundo, e apesar disso sou o autor da carta. Do mundo de que venho trago uma boa filosofia: ter em nenhuma conta a opinião dos meus contemporâneos, e em menos ainda a dos meus amigos. Trouxe mais alguma coisa, mas isso importa pouco ao público.

Efetuou-se o casamento três meses depois.

Celestina estava outra; perdera aquele estouvamento ignorante que era o principal traço do seu caráter, e com ele as idéias extravagantes que o major lhe incutira.

O coronel assistiu ao casamento.

Um mês depois o coronel foi despedir-se dos noivos, voltava para o Norte.

— Adeus, meu amigo, disse-lhe o doutor; nunca esquecerei o que fez por mim.

— Eu não fiz nada; ajudei a boa sorte.

Celestina despediu-se do coronel com lágrimas.

— Por que choras, Celestina? disse o velho, eu volto breve.

— Sabe por que ela chora? perguntou o doutor; eu já lhe disse que sua mãe estava no Norte; ela sente não poder vê-la.

— Ve-la-á, porque eu vou buscá-la.

Quando o coronel saiu, Celestina pôs os braços à roda do pescoço do marido, e disse com um sorriso entre lágrimas:

— Ao pé de ti e de minha mãe, que mais quero eu na terra?

No ideal da felicidade da moça já não entrava o coronel. Ó amor! ó coração! ó egoísmo humano!